Robinhood, rebelião ingênua e indispensável

Longe de aprofundar a democracia, o populismo de plataforma se transforma em uma farsa — embora altamente lucrativa.

23/02/2021
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A trama do GameStop, por ter causado tamanho estrago nos mercados globais, não é apenas uma fábula de investidores individuais idealistas humilhando um punhado de fundos de hedge — mesmo que a maré tenha mudado na terça-feira seguinte, com uma queda nas ações da GameStop. Por um lado, parece uma sequência não anunciada aos tumultos de 6 de janeiro no Capitólio, nos EUA: ambos acontecimentos foram encabeçados por hordas de viciados em redes sociais furiosos e desbocados, sitiando algumas das instituções mais sagradas do detestado establishment.

 

Mas enquanto os manifestantes de Washington foram universalmente condenados, os que lideraram a cruzada virtual contra Wall Street se saíram muito melhor. Defendendo as ações de empresas decadentes e em dificuldades contra os gananciosos fundos de hedge, acabaram conquistando alguma simpatia no corredor político. 

 

A lição principal a ser tirada desses dois protestos, ao menos para a contracultura digital, parece clara. Hoje, os verdadeiros xamãs da rebelião antiestablishment são os mestres nas artes de negociar ações e derivativos, e não aqueles que escalam muros e erguem bandeiras dos Estados Confederados. É possível que a revolução seja vista em lives, tuitada e televisionada — mas é uma boa ideia manter um backup daquela planilha de Excel.

 

O fato de que a cruzada pela GameStop pareça dignificante se deve em parte por causa da reputação bastante controversa — pra dizer o mínimo — da indústria de fundos de hedge. Mas também há outra razão, menos óbvia, para essa aclamação na esfera pública: muitos de nós estamos encantados pela retórica da “democratização” que acompanhou o aumento do surgimento de plataformas de corretagem online baratas.

 

Uma delas — chamada Robinhood — forneceu a infraestrutura digital crucial por trás da rebelião do GameStop, pois permitiu que pessoas comuns comprassem ações de empresas por pequenas quantias de dinheiro, a partir de seus telefones. A missão da Robinhood, repetida por seus fundadores ad nauseam nos últimos anos, era “democratizar as finanças”.

 

A princípio, pode parecer apenas uma consequência natural da grandiosa missão abraçada por fundos-índices como o Vanguard no início dos anos 1970. Naquela época, a ideia era criar instrumentos financeiros seguros que tornariam simples — e barato — às pessoas comuns investirem no mercado de ações sem ter que acumular muito conhecimento específico ou expertise.

 

Já a Robinhood não se mostra apenas como outra daquelas firmas de corretores tediosas e passageiras da Wall Street. Quer ser vista como uma força revolucionária e disruptiva do Vale do Silício. Ser visto como uma plataforma digital faz maravilhas para a valorização de uma empresa desse tipo: seu benchmark [avaliação de desempenho] é a Amazon, não um fundo mútuo desconhecido. 

 

A retórica do Robinhood de democratização precisa ser vista sob uma luz um pouco diferente. Sua herança vem mais do Uber, Airbnb e WeWork [imobiliária para espaços corporativos compartilhados] do que da Vanguard ou BlackRock. Todas essas plataformas digitais prometem “democratizar” uma coisa ou outra — transportes, acomodação, espaço de trabalho — e fazê-lo rápido.

 

Logo, essa indústria nascente, com sua doce promessa de democracia como serviço, não podia mais se conter: a busca global pela democratização do passeio do cachorro, da babá, de fazer sucos de laranja e de dobrar roupas lavadas veio com tudo. Isso foi permitido com a ajuda de capitalistas de risco e vários investidores institucionais que, pressionados pelo legado de baixa taxa de juros da crise financeira global, estavam ficando cada vez mais sem ideias de onde estacionar seu dinheiro.

 

Mas essa não é a história completa: o movimento de “democratizar” tudo também foi impulsionado por faróis inabaláveis da democracia liberal como o governo da Arábia Saudita. Em parceria com o SoftBank do Japão, ele ajudou a financiar esse mito, despejando bilhões em empresas como Uber e WeWork

 

Essa enorme entrada de dinheiro, combinada com modelos de negócios genuinamente novos que tornavam gratuitos certos serviços pelos quais anteriormente se pagava, criou uma ilusão de progresso e mobilidade social. Muitas plataformas digitais ou eram fortemente subsidiadas por seus patrocinadores endinheirados ou não cobravam nada; a receita perdida seria compensada pela venda de serviços mais avançados e monetização dos dados do usuário. 

 

O inevitável processo de “democratização”, alardeado por todas as plataformas como suposta evidência de sua própria natureza socialmente progressista, muitas vezes era o resultado de aritmética simples. Em casos como o WeWork, a matemática nem fazia sentido. Se a Robinhood, que agora arrecadou mais 3,4 bilhões de dólares, vai ter mais sorte, teremos que esperar para ver.

 

Para a maioria dessas empresas, as doces promessas de “democratização” tornaram essa matemática irrelevante, pelo menos no curto prazo. Isso explica como a indústria da tecnologia emergiu como o principal alavancador do populismo ao redor do mundo.

 

Isso pode parecer um exagero. Enquanto tendemos a guardar a temida “palavra com P” aos Bannon, aos Orbáns e aos Erdogans desse mundo, conseguimos pensar em Bezos ou Zuckerberg — e o exército de negociadores ações da Robinhood — nesses termos?

 

Podemos e devemos. Com o mundo de olhos fixos no populismo ao estilo de Trump — primitivo, tóxico, nativista –, perdemos totalmente de vista o papel dessas plataformas na emergência de outro tipo, um tanto distinto: sofisticado, cosmopolita, urbano. Com origem no Vale do Silício, esse “populismo de plataforma” avançou ao desvelar forças reacionárias escondidas que estavam no caminho do progresso e da “democratização” — tudo ao liberar os poderes das tecnologias digitais. 

 

O populismo de plataforma é impulsionado pela insistência quase conspiratória de que o mundo não é o que parece. As empresas estabelecidas — táxis, hotéis, fundos de hedge — mudaram as regras do jogo de maneira a favorecer seus próprios interesses. Só acabando com elas alguém poderá colher todos os benefícios que as tecnologias digitais fizeram possíveis. Para esse fim, as plataformas prometem libertar as forças do capitalismo de maneira a civilizar esses vestígios selvagens da civilização anterior, pré-digital. 

 

Muito da rigidez das empresas pré-digitais é resultado das regulamentações impostas por estados democráticos (mesmo que capitalistas). No entanto, no universo às avessas do populismo de plataforma, resistir às regulamentações democráticas submetendo-as à pressão econômica sustentada da competição capitalista é uma evidência incontestável de “democratização”. Daí a resistência de alguns deles à legislação que os exigiria a tratar seus trabalhadores da economia gig como empregados reais. 

 

Também não importa que boa parte da retórica do populismo de plataforma seja falso, e que seus vencedores finais serão o SoftBank e a Arábia Saudita. O populismo de plataforma, sem nenhuma ideologia política própria que seja coerente, tem a ver com processos, não com resultados. O objetivo é provar que, apesar de todas as maquinações dos burocratas do governo com seus regulamentos incômodos, nossa vontade individual ainda está viva e atuando. Definitivamente, ela não serve para cumprir qualquer agenda política específica de longo prazo.

 

Assim, muitos dos rebeldes que enfrentam a indústria de fundos de hedge certamente estão cientes de que seus próprios ganhos são temporários e passageiros. Mas quem poderia negar a eles o prazer de reafirmar sua própria agência ao “colar-se ao homem”, ao mesmo tempo sabendo que os únicos ganhos de longo prazo desse processo seriam atribuídos a outros fundos de hedge e gestores de ativos, como a BlackRock, que estima-se que tenha ganhado bilhões com a corrida da GamesStop? Longe de aprofundar a democracia, o populismo de plataforma se transforma em uma farsa — embora altamente lucrativa — apresentação de teatro.

 

- Evgeny Morozov é cientista social, pesquisador e escritor, originário da Bielorrúsia. Estuda, em especial, as implicações econômicas, sociais e políticas das novas tecnologias. Autor de "The Dark Side of Internet Freedom. No The Guardian

 

Tradução: Gabriela Leite

 

22/02/2021

https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/robinhood-rebeliao-indispensavel/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/211080?language=en
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