O que esperar dos EUA sob Biden

Equipe do presidente sugere EUA de volta ao “velho normal”: guerras, espionagem, desigualdade, espaço para que corporações explorem e devastem.

20/01/2021
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Joe Biden
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Joe Biden e os administradores do “Estado profundo” [“deep state”] e do Império estão voltando ao poder. Trump e seu círculo de bufões, racistas, vigaristas e fascistas cristãos se preparam, taciturnos, para deixar o cargo. As empresas farmacêuticas dos EUA estão começando a distribuir as vacinas para mitigar o pior surto de covid-19 do mundo, que resultou em mais de 2.600 mortes por dia. A América, como diz Biden, está de volta, pronta para ocupar seu lugar à cabeceira da mesa. Na batalha pela alma da América, ele nos garante, a democracia prevaleceu. Progresso, prosperidade, civilidade e uma reafirmação do prestígio e poder americanos estão a algumas semanas de distância, como nos foi prometido.

 

Mas a verdadeira lição que deveríamos tirar da ascensão de um demagogo como Trump — que recebeu 74 milhões de votos — e de uma pandemia, que nossa indústria de saúde voltada para o lucro se mostrou incapaz de conter, é que estamos perdendo o controle como nação e como espécie. Demagogos ainda mais perigosos surgirão a partir das políticas imperiais e neoliberais que o governo Biden adotará. Pandemias muito piores varrerão o globo com taxas de infecções e mortalidade mais elevadas — resultado inevitável de nosso consumo contínuo de animais e produtos de origem animal, e da destruição desenfreada do ecossistema do qual dependemos para viver, nós e as demais espécies.

 

Reinhold Niebuhr escreveu que: “um dos aspectos mais patéticos da história humana, é que cada civilização passa a se expressar de forma mais pretensiosa, a combinar seus valores particulares e universais de forma mais convincente e a reivindicar a imortalidade de sua existência finita no exato momento em que a decadência que os leva à morte já começou.”

 

Quase todas as nomeações de Biden vieram exclusivamente de círculos do Partido Democrata e da elite corporativa, responsáveis pela enorme desigualdade social; por acordos comerciais, desindustrialização, polícia militarizada; pelo maior sistema prisional do mundo e por projetos de “austeridade” que aboliram programas sociais como o de bem-estar; pela retomada da Guerra Fria com a Rússia, pela vigilância governamental generalizada, pelas intermináveis guerras no Oriente Médio, pelo empobrecimento da classe trabalhadora e sua respectiva privação de direitos. O Washington Post revelou que “cerca de 80% dos funcionários da Casa Branca e da agência que Biden anunciou possuem a palavra “Obama” em seu currículo, oriundos de empregos anteriores na Casa Branca ou das campanhas de Obama”. Bernie Sanders, aparentemente rejeitado em seus esforços para tornar-se secretário do Trabalho no governo Biden, já expressou sua frustração com as indicações do democrata eleito. Os democratas da Câmara negaram à deputada Alexandria Ocasio-Cortez uma cadeira no Comitê de Energia e Comércio, por causa de seu apoio ao Green New Deal. A mensagem do governo Biden para os progressistas e populistas de esquerda é muito clara: “finja-se de morto”.

 

A lista de novos funcionários do governo inclui o general aposentado Lloyd J. Austin III, que está sendo nomeado secretário de Defesa. Austin faz parte do conselho da Raytheon Technologies e é sócio da Pine Island Capital, uma empresa que investe na indústria bélica e que também envolve Antony Blinken, nomeado de Biden para secretário de Estado. Blinken, que foi vice-conselheiro de segurança nacional e vice-secretário de Estado, é um forte defensor do Estado de apartheid de Israel. Foi um dos arquitetos da invasão do Afeganistão e do Iraque, e defensor da derrubada de Muammar Gaddafi na Líbia, que resultou em mais um estado falido no Oriente Médio.

 

Espera-se que Janet Yellen, ex-presidente do Federal Reserve no governo de Barack Obama, assuma como secretária do Tesouro. Yellen, como presidente do Conselho de Consultores Econômicos (CEA) de Bill Clinton e, mais tarde, como membro do conselho do Federal Reserve, apoiou a revogação da Lei Glass-Steagall, que levou à crise bancária de 2008. Ela apoiou o Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (NAFTA) e também fez lobby por uma nova métrica estatística com o fim de reduzir os pagamentos aos idosos no Seguro Social. Yellen apoiou a “flexibilização quantitativa” que forneceu trilhões em empréstimos praticamente sem juros para Wall Street, empréstimos usados para resgatar bancos e corporações e para realizar compras massivas de ações — enquanto as vítimas da fraude financeira eram abandonadas.J

 

O ex-secretário de Estado, John Kerry, será o Enviado Especial para questões climáticas. Kerry defendeu a expansão maciça da produção interna de petróleo e gás, em grande parte por meio de fraturamento hidráulico e, de acordo com as memórias de Obama, trabalhou obstinadamente para convencer aqueles preocupados com a crise climática a “oferecer concessões em subsídios para a indústria de energia nuclear, e a explorar novos litorais norte-americanos, para a perfuração offshore de petróleo”.

 

Avril Haines, antiga vice-chefe da CIA de Obama, vai se tornar a Diretora de Inteligência Nacional de Biden. Haines supervisionou a expansão do programa de drones assassinos de Obama no exterior e apoiou a nomeação de Gina Haspel para chefe da CIA, apesar do envolvimento direto de Haspel no programa de tortura que a CIA levou a cabo em suas prisões secretas espalhadas pelo mundo inteiro. Haines se refere a Haspel como “inteligente, compassiva e justa”. Brian Deese, o executivo encarregado da “pasta climática” da BlackRock, empresa que investe fortemente em combustíveis fósseis, inclusive carvão, e que atuou como ex-assessor econômico de Obama na defesa das medidas de austeridade, foi escolhido para dirigir a política econômica da Casa Branca.

 

Neera Tanden, ex-assessora de Hillary Clinton, foi escolhida para dirigir o Escritório de Administração e Orçamento. Tanden, como chefe do thinktank do Partido Democrata, o Center for American Progress, levantou milhões em dinheiro obscuro proveniente do Vale do Silício e de Wall Street. Seus doadores incluem a Bain Capital, Blackstone, Evercore, Walmart e a indústria bélica Northrup Grumman. Os Emirados Árabes Unidos, aliados próximos da Arábia Saudita na guerra do Iêmen, também deram entre US$ 1,5 milhão e US$ 3 milhões ao thinktank. Quase sempre, ela ridiculariza Sanders e seus partidários ao aparecer nas notícias ou nas redes sociais. Também propôs uma aliança na plataforma democrata pelo bombardeio do Irã.

 

A manutenção dessas guerras profundamente impopulares e de políticas neoliberais onerosas pelo governo Biden será acompanhada por uma demonização acirrada da Rússia, mais recentemente acusada por ataques cibernéticos. Esses democratas corporativos se utilizarão de uma nova Guerra Fria com a Rússia para desacreditar os críticos internos e estrangeiros, e desviar a atenção da estagnação política e da pilhagem corporativa do país. Isso permitirá que a MSNBC e o New York Times, que passaram dois anos lutando contra conspirações vazias do Russiagate, divulguem um fluxo diário de rumores de forte apelo emocional junto de acusações obscuras sobre a Rússia. Celebridades da televisão fechada, como Rachel Maddow, vão falar toda noite “comentando” a Rússia, enquanto ignoram a corrupção no governo Biden. A única razão pela qual o Partido Democrata não culpou a Rússia de fraudar a eleição em 2020, ao contrário de 2016, é porque Trump foi derrotado.

 

Biden, após perder para Bernie Sanders nas primárias do Partido Democrata em Nevada, onde Sanders obteve mais que o dobro dos votos, imediatamente jogou a carta da Rússia, dizendo à CBS News: “os russos não querem que eu seja o indicado, eles gostam do Bernie”. Hillary Clinton foi quem começou esse jogo sujo quando atacou a candidata presidencial do Partido Verde em 2016, Jill Stein, chamando-a de “ativo russo”; em 2020, fez a mesma acusação contra o deputado Tulsi Gabbard. Os democratas precisam de um inimigo, real ou fictício, e o Vale do Silício e os grandes fabricantes não permitirão que eles ataquem a China.

 

Mais do mesmo significa: mais desastre. Se quisermos recuperar uma sociedade aberta e salvar os ecossistemas, devemos abolir esse domínio corporativo sobre o poder político e econômico global. Se quisermos evitar doenças zoonóticas como a COVID-19, gripe suína, gripe aviária, encefalopatia espongiforme bovina (doença da vaca louca), Ebola e SARS, precisamos parar de consumir animais e suas secreções corporais. Devemos abolir a agricultura industrial e adotar uma dieta vegana; e manter os combustíveis fósseis no solo.

 

O desmatamento de florestas para o pastagens e a formação de vastas extensões de terras agrícolas para o cultivo de monoculturas — que alimentarão animais destinados ao consumo humano — são responsáveis por até 91% da destruição da floresta amazônica desde 1970. A perda de florestas é um dos principais fatores para a mudança climática. A agricultura animal é a principal causa de zonas mortas nos oceanos. Os oceanos podem ficar sem peixes em 2048. A cada minuto, 3 mil toneladas de fezes são produzidas por animais criados para a alimentação humana; e isso só nos Estados Unidos. A destruição contínua do habitat natural, juntamente com as enormes fazendas industriais que usam 80% dos antibióticos nos EUA e incubam patógenos resistentes a medicamentos que se espalham para as populações humanas, pressagiam novas formas de uma Peste Negra.

 

A crença de que podemos manter os níveis atuais de consumo, especialmente de produtos animais, com expansão capitalista, guerras imperiais, dependência de combustíveis fósseis e subserviência abjeta a um poder corporativo ilimitado, que solidificou a pior desigualdade de renda na história da humanidade, não é uma espécie de esperança, mas uma auto-ilusão suicida. As políticas do governo Biden e da elite governante global não nos conduzem para as grandes terras iluminadas pelo sol de um novo futuro glorioso, mas para a miséria econômica, para inúmeras migrações climáticas, ondas de novas e piores pandemias — das quais o vírus da covid-19 é apenas um precursor moderado –, com o colapso irreversível de sistemas ecológicos e formas aterrorizantes de colapso social, autoritarismo e neofascismo.

 

O aquecimento global é inevitável. Não pode ser interrompido. Na melhor das hipóteses, pode ser retardado. Muito provavelmente, nos próximos 50 anos, a Terra irá se aquecer a níveis que tornarão inabitáveis regiões inteiras do planeta. Dezenas, talvez centenas de milhões de pessoas serão deslocadas. Milhões de espécies serão extintas. Cidades litorâneas ou próximas da costa, como Nova York e Londres, ficarão submersas.

 

Os oceanos absorvem grande parte do excesso de CO² e do calor da atmosfera. Esta absorção vem aquecendo e acidificando as águas do oceano muito rapidamente, resultando na desoxigenação dos oceanos. Das cinco extinções em massa que a Terra sofreu e das quais temos conhecimento, cada uma delas foi precedida por, pelo menos, uma parte do que os cientistas climáticos chamam de “trio mortal”: aquecimento, acidificação e desoxigenação dos oceanos. A próxima grande extinção da vida marinha já está em curso, sendo a primeira em cerca de 55 milhões de anos.

 

Não se trata de derrotismo. É realismo. Parece que ganhamos quatro anos com a eleição de Biden, mas se não utilizarmos seu mandato com sabedoria — pois não há nada nas nomeações de Biden que ofereça qualquer perspectiva otimista — estaremos apenas reconstruindo uma pobre aldeia Potemkin, que em breve será arrasada pelos vendavais políticos e furacões ambientais que vêm se formando ao nosso redor.

 

Uma das lições que aprendi cobrindo guerras e revoluções como correspondente no exterior, é que os sistemas político, econômico e cultural erguidos por qualquer sociedade são muito frágeis. A fachada do poder permanece no lugar — como vi na Europa Oriental durante as revoluções de 1989 e mais tarde na Iugoslávia — mesmo muito depois da podridão terminal ter consumido as fundações. Essa fachada engana a sociedade fazendo-a pensar que as estruturas de autoridade permanecem sólidas, imunes ao colapso. Assim, quando chega o colapso, que deveria ter sido previsto há muito tempo, ele parece repentino e incompreensível. O caos que se segue é assustador e desnorteia a todos. A dissonância cognitiva entre a percepção do poder e sua rápida dissolução alimenta a auto-ilusão.

 

Como testemunhei na antiga Iugoslávia, ela cria o que os antropólogos chamam de “cultos de crise”, bem como teorias de conspiração bizarras, fascismo e a adoção de uma violência embrionária para purgar a sociedade daqueles demônios culpados pelo desastre nacional. O ódio torna-se a forma mais elevada de patriotismo. Os vulneráveis são usados como bodes expiatórios. Intelectuais, jornalistas e cientistas, que se apoiam em um mundo baseado em fatos, são desprezados. As elites e as estruturas governantes perdem toda credibilidade. Este colapso costuma ser o portal para um mundo de niilismo e fantasia sangrenta.

 

Após quatro anos de mentiras, o aumento da violência racista, da incompetência, da corrupção desenfreada, e o fracasso escancarado em lidar com uma crise nacional de saúde, Trump expandiu sua base em 11 milhões de votos. Só isso deveria acender uma grande luz vermelha de alerta. Pior ainda, 70% dos eleitores de Trump, 51 milhões de norte-americanos, acreditam que os “democratas da esquerda radical” e o Estado profundo roubaram as eleições por meio de “fraude eleitoral”, incluindo a importação de um software de votação venezuelano, cédulas ilegítimas e a destruição em massa das cédulas de votos para Trump, que teria sido realizada por funcionários eleitorais.

 

126 membros republicanos da Câmara juntaram-se a uma ação movida por 18 procuradores estaduais republicanos pedindo à Suprema Corte que anulasse a vitória de Biden. A grande maioria dos senadores republicanos recusou-se a reconhecer os resultados das eleições após a votação de novembro. Os eleitores do Colégio Eleitoral foram forçados em vários estados a entregar seus votos às legislaturas estaduais sob guarda armada. Cerca de duas dúzias de manifestantes armados, carregando bandeiras americanas e gritando “Parem o roubo!”, atacaram a casa da secretária (democrata) do Estado de Michigan, Jocelyn Benson. Setecentos membros do grupo nacionalista branco, os Proud Boys, tomaram as ruas de Washington no último fim de semana para protestar contra o suposto roubo da eleição, desencadeando mais de três dezenas de prisões, quatro esfaqueamentos, a vandalização de quatro igrejas negras, e a destruição e queima de faixas e símbolos do movimento Black Lives Matter.

 

Trump pode até ir embora em breve, mas ele deixa em seu rastro um partido que é abertamente autoritário, que despreza as normas democráticas, é inimigo da ciência e dos discursos baseados em fatos, e que tentou dar um golpe de Estado. Da próxima vez, eles não serão tão desorganizados e ineptos. Esta hostilidade à democracia por um dos dois partidos governantes, apoiado por milhões de americanos, muitos dos quais foram traídos por Biden e pelos líderes do Partido Democrata, não se dissipará, mas aumentará, principalmente agora, com o martelo do deslocamento econômico esmurrando o país e despejando milhões de norte-americanos.

 

Esse ataque corporativo à cultura, jornalismo, educação, artes, universidades e pensamento crítico por décadas, marginalizou as pessoas que denunciam essa realidade, transformou-as em ignoradas. Essas cassandras, excluídas do debate nacional, são consideradas desequilibradas, deprimentes e apocalípticas. O país é consumido por uma mania de esperança, que nossos senhores corporativos oferecem muito generosamente, às custas da verdade. É essa esperança delirante que nos condenará.

 

O escritor austríaco Stefan Zweig, que, com um punhado de outros escritores e artistas, tentou desesperadamente alertar sobre a loucura suicida da Primeira Guerra Mundial, escreveu sobre o que chamou de “superioridade mental dos derrotados”. Sua peça anti-guerra Jeremias, baseada no profeta bíblico homônimo, que proferiu advertências em vão, ilustrava que aqueles que enfrentam a realidade, por mais amarga que seja, são capazes de suportá-la e superá-la.

 

“Desperta, cidade condenada, para que possas salvar a ti mesma”, grita o profeta na peça de Zweig. “Descuidados, despertem de suas pesadas sonolências, para não serem mortos durante o sono; despertem, pois as paredes estão se desintegrando e esmagarão vocês; despertem.”

 

Mas as advertências de Jeremias, chamado de “profeta que chora”, foram ignoradas e ridicularizadas. Foi atacado, acusado de desmoralizar o povo. Havia conspirações contra sua vida. Quando o exército babilônico capturou Jerusalém, Jeremias, assim como Julian Assange, já estava na prisão.

 

“Sempre me atraiu mostrar como qualquer forma de poder pode endurecer o coração de um ser humano, como a vitória pode trazer rigidez mental a nações inteiras, e contrastar isso com a força emocional da derrota penetrando dolorosa e terrivelmente na alma”, escreveu Zweig em seu livro de memórias, O Mundo de Ontem (The World of Yesterday). “No meio da guerra, enquanto outros celebravam o triunfo cedo demais, provando uns aos outros que a vitória era inevitável, eu estava sondando as profundezas da catástrofe e procurando uma maneira de sair delas.”

 

Não podemos usar a palavra esperança enquanto nos recusarmos a enfrentar a verdade. Toda esperança enraizada na auto-ilusão é fantasia. Devemos tirar o filtro de nossos olhos para ver o perigo diante de nós. Devemos dar ouvidos às advertências de nossos próprios profetas. Devemos destruir os centros de poder que nos atraem, e que atraem nossas crianças, feito o Flautista de Hamelin, para a inevitável condenação. Dia após dia, as paredes vêm se fechando ao nosso redor. O mal radical que enfrentamos é tão real sob Trump, quanto será sob Biden. E se esse mal radical não for esmagado, o mundo futuro será de tormento e de morte em massa.

 

- Chris Hedges, jornalista e professor, escreveu 11 livros, incluindo "Days of Destruction, Days of Revolt", em parceria com o cartunista Joe Sacco. No ScheerPost

 

Tradução de Simone Paz

 

19/01/2021

https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/o-que-esperar-dos-eua-sob-biden/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/210599?language=es

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