Precisamos respirar: diálogos necessários sobre o racismo à brasileira

19/06/2020
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
justicia_desaparecidos.jpg
Protesto contra racismo no Rio
-A +A

A discussão que será apresentada aqui, parte de inquietações e provocações pessoais e já teorizadas por inúmeros sujeitos negros e negras acadêmicos ou não acadêmicos e tem por objetivo trazer à tona indignações acerca do racismo cada vez mais escancarado mundialmente.

 

Sim. Ainda é preciso falar sobre racismo. Confesso que não aguento mais falar sobre isso, no entanto, um dia a mais e um dia a menos, nós não temos Sossego!

 

Desde o ocorrido com o menino Miguel venho tentando respirar, não chorar, não generalizar e não perder a fé no ser humano. Miguel na sua infinita humanidade e possibilidade de ser e existir neste mundo, teve a sua vida interrompida em meio a valores racistas e individualistas.

 

Na verdade, essa sensação de interrupção dos (as) nossos (as) corpos, carregamos nas costas e na pele, desde o período da escravização. Crescidos (as) e marcados (as), intentamos lograr e lutar pelo direito a vida, a vida em sua magnitude como qualquer outro indivíduo, negro ou não negro. Desde cedo compreendemos que a sorte não anda conosco. Parece que este mundo não foi feito para nós. Como nos lembra Munanga em seu livro “Negritude, usos e sentidos”, nas teorias racistas científicas e religiosas, nós negros e negras, somos filhos de Caim, somos filhos e filhas da besta. Assim blasfemou o Deputado Marco Feliciano, em seu Twitter no dia, 31 de março de 2011, negros são seres amaldiçoados “Africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé e, Sobre o continente africano repousa a maldição do paganismo, ocultismo, misérias, doenças oriundas de lá: ebola, aids, fome… etc.”

 

Assim também o nosso atual Presidente da República destilou o seu ódio racial e a ignorância de modo escancarado afirmando que a nossa raça não vale seis arrobas e que cessaria políticas públicas, tais como o reconhecimento e a titulação das terras quilombolas. Assim disse: “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles.  Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola. Onde tem uma terra indígena, tem uma riqueza embaixo dela. Temos que mudar isso daí”.

 

Essa e outras tantas narrativas discursivas e de ódio estão materializadas na revogação do estatuto do desarmamento (que permite a liberação para a posse de armas, o incentivo a arma de fogo por todos os cidadãos. É importante referenciarmos o endurecimento com a violência nas favelas dentre outros. Obtém-se agora licença para matar. Na verdade, sempre tiveram. De capitães do mato a policiais armados, estamos condenados e marcados nas periferias, nos grandes centros urbanos e nas ruralidades em conflitos e disputas.

 

Aqui não é os Estados Unidos. Lá, como dizem os livros e os filmes, a dimensão racial foi dura, sangrenta, a segregação deu-se de modo violento, visível. Aqui o nosso mito é não temos racismo. Lá sim. Aqui não. O racismo aqui é brando, só aparece algumas vezes uma notícia ou outra de assassinato nas periferias. Nada incomum. É assim mesmo. Todo negro é um bandido a priori. Só pode estar ali para roubar, traficar. E, convém lembrar que bandido bom é bandido morto! Tem que fazer isso mesmo. Categoricamente é mais cômodo dizer “ele mereceu”.

 

No Brasil, pelo fato do racismo ser visto como ser sutil e velado isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto como nos Estados Unidos. Racismo faz vítimas de qualquer maneira. (Kabengele Munanga).

 

Quando vemos nossos corpos lidos e estereotipados cotidianamente, sabemos que o mito da democracia racial e a mestiçagem não colou muito bem por aqui. O mito pode servir de uso para a desculpa ou não culpabilização da branquidade sobre as sequelas do racismo estrutural e os seus privilégios na sociedade brasileira desde a escravização. Para nós o mito da democracia racial não cola! O sangue que corre em sua artéria não é o mesmo quando nos deparamos a sangue - frio e vemos os nossos corpos sendo retirados desse mundo. A cor da pele chega primeiro e com ela o olhar estereotipado da punição, da repulsa e negação.

 

De novo reporto uma constatação de Kabengele Munanga, na qual diz que o nosso racismo à brasileira, é um crime perfeito1. Enquanto crime perfeito não se tem culpados. É bom lembrar que ainda não sabemos quem mandou matar a vereadora e ativista Mariele Franco (mulher negra, periférica e lésbica) e o pedreiro Amarildo.

 

“Amarildo Dias de Souza (Rio de Janeiro1965/1966 - Rio de Janeiro2013) foi um ajudante de pedreiro e brasileiro que ficou conhecido nacionalmente por conta de seu desaparecimento, desde o dia 14 de julho de 2013. Os principais suspeitos no desaparecimento de Amarildo eram da própria polícia. Em 2016, 12 dos 25 policiais militares denunciados pelo desaparecimento e morte de Amarildo foram condenados em primeiro grau, e no segundo grau, oito condenações foram mantidas, enquanto quatro foram absolvidos”. Fonte Wikipédia2.

 

Lembramos também dos 80 tiros de fuzil disparados por engano em abril de 2019:

“O músico e segurança Evaldo dos Santos Rosa, 51 anos, levava a família para um chá de bebê de uma amiga quando teve o carro alvejado por mais de 80 balas disparadas por militares que patrulhavam a Estrada do Camboatá, no bairro de Guadalupe, zona oeste do Rio de Janeiro. Fonte Jornal El Pais.

 

“Foram diversos, diversos disparos de arma de fogo efetuados, e tudo indica que os militares realmente confundiram o veículo com um veículo de bandidos. Mas neste veículo estava uma família. Não foi encontrada nenhuma arma [no carro]. Tudo que foi apurado era que realmente era uma família normal, de bem, que acabou sendo vítima dos militares”, afirmou o delegado em entrevista”. Fonte: Portal G13.

 

Afinal, o que um homem negro estaria fazendo de errado dirigindo o seu próprio carro dito de luxo? No nosso racismo de cada dia, só poderia ser um ladrão, só poderia ser um bandido! Parece até que as armas já possuem um alvo definido antecipadamente.

 

Todas as ocorrências citadas acima, além das semelhanças não são meras coincidências. Nada de novo por aqui! Relegados a própria sorte desde o pós escravidão, somos corpos indignos de vida e de dignidade. Corpos presas fáceis. Corpos baratos. Corpos comerciáveis. Corpos intragáveis nos espaços públicos – aos olhares curiosos nos shoppings, universidades, restaurantes. Corpos vigiados. Corpos descartáveis. Corpos puníveis. Corpos interrompidos sem dó, sem culpa, sem clemência e sem piedade. E aqui nem o RG e a identidade vale.

 

Quantas vezes já passamos por situações nas quais o devir negro é colocado a Prova e em xeque: você mora aqui? Onde está a sua patroa? O que você faz aqui? Você veio limpar? Mãos ao alto! Não importa onde você esteja, você será sempre um bichinho estranho, suspeito ou suspeita: achei que era um bandido, achei que era empregada.

 

A branquitude raramente passa por isso. A branquitude raramente pensa sobre isso. O privilégio da branquidade é ser uma norma, enquanto norma não precisa ser questionada, colocada a prova. Não precisa justificar a sua presença aqui ou ali. Não precisa justificar e exigir a sua existência. Possuem passe livre. Liberdade de ir e vir.

 

Para quem gosta de filmes e queira entender do que estamos falando, sugiro assistir o filme “O ódio que você semeia”. Para quem ainda tem dificuldade de ver e entender as nuances do racismo, sugiro ver e mapear quantas são as pessoas trabalhando na sua universidade como professoras e professores, pesquisadores, pesquisadoras. Quantos somos no quadro dos serviços de limpeza, na cozinha, nos cargos políticos...Quantos somos como empregadas domésticas, ou nos postos de trabalho mais subjugados e mal remunerados.

 

Quantos casos como George Floyd, Miguel, Marieles, João, Marias... Quantas vidas ainda precisarão serem interrompidas para enfrentarmos com seriedade as sequelas da escravidão, do racismo estruturalmente estruturado e enraizado?

 

Como existe racismo sem raça? Certamente, boa parte das pessoas já presenciou, ou ouviu dizer sobre alguém que foi discriminado por sua cor da pele. O racismo perfeitamente arquitetado baliza as nossas relações raciais e sociais. Se reproduz de modo inquestionável e naturalizado em um pacto de silêncio, no qual opera de modo hediondo, sem culpados, sem punição. Sem mimimi, como nos diz Jurema Werneck, racismo é máquina de moer gente!!! Racismo é coisa séria! Racismo mata.

 

A negligência da patroa com o filho da empregada, além de descuido e irresponsabilidade, foi também racismo! Será que essa negligência aconteceria se fosse outra criança, não negra, filha de outra pessoa, que não fosse a sua empregada? Acredito que não!

Sua mãe estava ali em prol de angariar recursos financeiros. Não tinha privilégio e luxo de ficar em isolamento cuidando dos seus e de si, assim como outras empregadas domésticas do país. O pedido para que a sua patroa ficasse alguns minutos no cuidado de seu filho foi em vão. Miguel queria encontrar a mãe, sem paciência a patroa o colocou no elevador. Sem saber onde apertava, se perdeu, perdeu a sua vida.

 

Volto ao título proposto nesta paper: precisamos respirar.

 

É um imperativo categórico de uma exigência do direito à vida. A respiração para viver.

 

Se eu fosse a mãe de Miguel, choraria com ele em meus braços. Sei que ele levaria um pedaço de mim, da minha esperança, da minha condição de mulher negra e de mãe. Tentaria conter a minha raiva e o ódio. Tentaria buscar a justiça. Não aquela que só pedirá que a agressora seja punida, mas a justiça de todos os irmãos pretos e pretas que neste momento tem as suas vidas interrompidas e exigem o direito a respirar e viver com dignidade.

 

Talvez teria também uma desesperança no mundo. Teria medo de ser mãe preta, mãe de um jovem negro, por temer que este ou esta morra em meu colo por uma bala “não perdida e não por engano”.

 

Neste lugar de mãe e mulher negra, faz-me recordar da coragem e dor de mães negras escravizadas que lançaram os seus filhos ao mar, de modo a não vê-los penando no período escravocrata. O mesmo medo de hoje, de ver seu filho sair à noite, se assustar com o barulho e ter que acordar com o mesmo em alguma notícia de operação policial. Não saia de casa! Se proteja, não faça nenhuma reação que possa assustar o policial. É uma dor que não passa.

 

Enquanto irmã não sei como faria para consolar a minha mãe.

 

E você, o que faria?

 

Proposições:

 

De algum modo concordamos com a manutenção com o status quo. O que fazer?

 

É preciso ter raiva a justa raiva como diria Paulo Freire, de modo a indignar, gritar, exigir a respiração, o pulsar e o direito à vida, sem as mordaças de outrora, sem algemas de hoje.

 

É necessário urgentemente, provocar a indignação, afrontar, sair do romantismo, do idealismo, puritanismo, do politicamente correto e da cegueira cômoda, que não se incomoda, que não se move para além dos nossos privilégios.

 

Como já disse Florestan Fernandes, um dos maiores problemas no Brasil para a discussão e superação do racismo, é o preconceito em dizer que existe preconceito racial neste país. Ha vergonha, assim como há isenção da culpa, da responsabilidade, da luta pelo humanismo, e, isso impossibilita a inclusão da pauta antirracista em boa parte dos que lutam por justiça social.

 

É preciso desacostumar e naturalizar mortes negras, vidas negras.

É preciso encarar o racismo; e não esconde-lo debaixo do tapete.

É preciso interseccionar as opressões.

 

Que não deixemos de falar sobre racismo apenas em lives, palestras, textos acadêmicos quando uma situação ganhe visibilidade nas mídias, como, por exemplo, no caso de George Floyd nos Estados Unidos e Miguel no Brasil. Que seja uma constante na ideia tão cara na construção do bem viver. Vidas negras importam. Quais vidas negras importam? Quando vidas negras importam? Que a comoção não seja seletiva, exibicionista e pontual.

 

Não sei como as hasthgs poderiam somar ao ativismo presente nas periferias, no rap, nos slams, na educação formal: da Educação Infantil ao Ensino Superior. Considero que é um caminho e uma obrigação.

 

Por fim, não preciso ser negro ou negra para assumir a luta antirracista.

 

Quem já fez ou foi cúmplice de alguma atitude discriminatória e racista que jogue fora as suas pedras, questione os seus privilégios, assuma sua responsabilidade na luta antirracista. Ou, quem não tiver cometo esse pecado que não atire a primeira pedra, o primeiro disparo, o primeiro tiro, a retirada do último suspiro de alguém.

 

- Maria Simone Euclides é Professora Adjunta da Universidade Federal de Viçosa, Pesquisadora filiada a Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e da Latin American Studies Association (LASA)

 

2 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Amarildo. Acesso em: 18/06/2020

https://www.alainet.org/pt/articulo/207353?language=es
Subscrever America Latina en Movimiento - RSS