Provocações sobre as últimas ondas de protesto no Brasil

De direita envergonhada para direita enraivecida?

15/06/2020
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Protestos são o grande problema no momento,
estão começando a colocar as mangas de fora”
(
Bolsonaro, 2020).

 

Esta foi a fala do atual presidente Jair Bolsonaro após a onda de protestos contra seu governo, no dia 07 de junho, em resposta aos diversos casos de racismo que eclodiram a nível global, bem como aos ataques antidemocráticos encabeçados por grupos bolsonaristas nos últimos meses. Estes que vem ocupando as ruas de algumas capitais, como São Paulo, Rio de Janeiro, e Brasília, manifestando-se a favor do fechamento do STF, contra a operação fake news, além do esforço em criminalizar manifestações ANTIFA ou demais organizações com ideologias similares.

 

Foi massiva a resposta por parte da esquerda. Mesmo em um período de pandemia, as ruas do Brasil foram ocupadas por manifestações cuja tônica foi a luta contra o racismo. No final de semana anterior, algumas capitais foram ocupadas por torcidas organizadas de times de futebol de forma uníssona, pautaram o antifascismo.

 

Quais são os custos para se manifestar em um contexto de pandemia? Muitos. Nas redes sociais, os dias que antecederam os protestos foram permeados, por um lado, por diversos posts, análises, vídeos e discussões acaloradas sobre os perigos de sair às ruas e ser acometido pelo covid-19; por outro, havia a problematização de que o isolamento não é uma opção para a maioria da população que está circulando, para setores mais vulneráveis que estão tentando manter o sustento, como entregadores de comida, caixas de supermercado, farmacêuticos, dentre outros.

 

As formas de ação estão limitadas sim, porém, a pandemia não desmobilizou os indivíduos, apenas não há condições para que as ações se sucedam com a mesma frequência que antes acontecia no Brasil, por hora não se sabe se essas manifestações duraram sustentando assim o confronto nas ruas. Outro fator que ajuda a equacionar isso é o sentimento de urgência, a angústia e a necessidade de exprimir descontentamento, além de mostrar o quanto a disputa de narrativas precisa ser enfrentada para além das redes sociais, envolvendo as ruas.

 

Desde que se iniciaram as medidas de isolamentos no Brasil, percebe-se que manifestações de trabalhadores da área da saúde foram mais expressivas, denunciando assim o descaso à saúde pública brasileira. Questões como as péssimas condições de trabalhos, faltas de materiais, estiveram em evidência, além da ineficiência do atual governo que se reflete na instabilidade do Ministério da saúde, esse que já presenciou a rotatividade de três ministros em menos de um ano e seis meses de governo. O Sistema Único de Saúde (SUS) teve destaque em tais manifestações, por um motivo muito simples: não é segredo, para ninguém, a intenção do atual governo em privatizar o sistema de saúde no Brasil.

 

Outras agendas estiveram/estão em evidência durante esse período de isolamento, como a falta de políticas de enfrentamento à violência doméstica, que se potencializou neste período no Brasil e no mundo; secundaristas também se manifestaram pedindo o adiamento do ENEM nas redes sociais e na Esplanada dos Ministérios em Brasília; a agenda racial também está na tônica dos movimentos que eclodiu nas manifestações recentes.

 

Percebe-se uma internacionalização de pautas – questão que não é nova no que tange os eventos de protestos no Brasil, como o caso da Marcha das Vadias que se iniciou no Canadá e foi replicada no Brasil, sendo que aqui temos pautas que fazem alusão às desigualdades de gênero, feminicídio, estupros, violências de todos os níveis[1].

 

A agenda racial está no centro do debate nas últimas semanas, principalmente pelo ocorrido em Minneapolis (EUA), quando um policial branco matou asfixiado George Floyd, homem negro. O fato levou a ondas de protestos pelo mundo e motivou diversas discussões nas redes sociais. Concomitante no Brasil, o filho negro de uma empregada doméstica, Miguel Otávio, morreu ao cair de um prédio de luxo no Recife, enquanto estava aos cuidados da patroa, branca. Esse é apenas um das centenas de exemplos de casos em que o racismo se sobressai, infelizmente. Além da questão de que o Brasil é um dos países que mais mata a população negra[2], o que reafirma que motivos para nos manifestarmos contra o racismo não nos falta!

 

Um debate impulsionado nas redes sociais pela Érica Malunguinho (Psol), primeira mulher transexual eleita a deputada estadual de São Paulo, chamou atenção, pois a mesma exprimiu seus incômodos – os quais são totalmente válidos, sobre como equalizar as pautas referentes ao racismo e ao fascismo sem deixar que nada venha a se sobrepor e abafar a outra. Se evidencia o incômodo de Érica sobre como, em diversos momentos no Brasil, se sub posicionam o racismo a uma pauta antifascista, apesar de saber que são inseparáveis. Segundo a deputada, há um movimento de apagamento ou de escolhas do que será prioridade, sendo que raça, classe e gênero deveriam se entrelaçar. Trata-se de um desafio posto há tempos, para que haja um equilíbrio e que possamos avançar em todas as pautas.

 

Observa-se a exposição de dilemas: Como agir? Como confrontar o poder com um contrapoder? O coronavírus é um grande problema, mas temos outros problemas colocados também: Racismos, retrocessos, discursos pró intervenção militar, além do atual presidente que é um problema em si. A extrema-direita tem ido às ruas todos os domingos desde que se iniciou o período de isolamento, em meados de março de 2020. No formato de carreatas ou até mesmo acampando: vide o acampamento dos 300[3], comandado pela ativista Sara Winter – essa que se autointitula ex-feminista e que ocupava a pasta da maternidade no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, coordenado pela ministra Damares Alves.

 

O acampamento dos 300 é um exemplo de mobilizações da extrema-direita, principalmente para se pensar quais pautas têm tido visibilidade nos discursos, reivindicações e do quanto replicam ações de supremacistas brancos norte-americanos. Em suas performances, os 300 trazem simbologias que fazem alusão a Ku Klux Klan[4], como a marcha que fizeram no dia 31 de maio, a qual pedia o fechamento do STF. Suas construções de narrativas públicas estão pautadas, principalmente, na suposta ameaça comunista, criando uma visão de mundo que opera como conspiração e que nessa lógica, exige organização, pois ‘o inimigo vai corroer e destruir os costumes’, e isso deve ser combativo com luta e se for preciso: sangue – parafraseio Sara Winter.

 

Qual é o impacto das mobilizações de esquerda na suposta hegemonia da extrema direita? Percebe-se que a extrema direita se encontra bem confortável em disseminar discursos de ódio. A direita que antes sentia vergonha de se expor, nos últimos anos passou de direita envergonhada à direita enraivecida, destilando ressentimento. Sobre esse aspecto Fraser e Jaeggi (2020) pontuam que o ressentimento sempre está combinado com um sentimento de impotência, e esse sentimento é um dos condicionantes que alimentam o autoritarismo de todos os tipos, incluindo o fascismo.

 

Por outro lado, houve um movimento de queda do apoio popular ao atual presidente Bolsonaro. As recentes mobilizações chegam no momento em que parcelas importantes de apoio deste começam a tecer discursos mais crítico, apontando descontentamento comas medidas e atuações do governo, sobretudo devido à queda/saída de Sérgio Moro.

 

Embora o cenário não permita vislumbrar respostas, potencializa questionamentos como: a esquerda conseguirá reconstruir um projeto de ação? Quais têm sido os impactos disso tudo à democracia brasileira? Qual será a centralidade das estratégias da extrema-direita? O atual contexto abrirá uma janela para que as forças armadas venham ‘estabelecer a ordem’?[5] O que irá se consolidar nesse processo em relação à renovação discursiva de ambos os lados?

 

Precisamos lidar com as urgências mesmo em um contexto de crise sanitária, polarização e consolidação da extrema-direita. Há uma necessidade colocada de ir além de conversas vagas sobre a crise que a democracia se encontra e buscar construir novas narrativas e ações que sejam capazes de responder e alterar a atual conjuntura. Nancy Fraser (2020) sobre a complexidade da crise que estamos vivenciando afirma que:

 

Devemos retornar a ideia de uma “crise geral”. Quando muitas vertentes e interpretações diferentes de crise convergem, faz sentido falar de uma crise geral de ordem social. Nesse caso, o que enfrentamos não é nem “meramente” uma crise econômica, nem uma crise ecológica, nem uma crise política ou social, por mais série que cada uma delas possa ser em si e por si mesma. Trata-se de um “complexo de crise” abrangente, no qual todas essas vertentes se juntam (p. 183).

 

Se, para Jair Bolsonaro, os últimos protestos são um problema, pois ‘estão colocando as mangas de fora’, que esse venha a visualizar não apenas as mangas, mas o corpo como um todo… o corpo negro, o corpo feminino. Afinal, se afetos como o ódio mobilizou e mobiliza a extrema-direita, o sentimento de urgência que, para muitos, é sentido na pele e alma, deve ser catalisador de quem não se alinha com pautas que flerta descaradamente com um projeto neofascista.

 

- Camila Carolina H. Galetti é Graduada em Ciências Sociais (UEM), mestra e doutoranda em Sociologia Política (UnB).

 

[1] Sobre a Marcha das Vadias, em minha dissertação de mestrado defendida na Universidade de Brasília (2016), eu discuto a Marcha das Vadias no Brasil, seu caráter, formação, impacto e etc. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/21011

[2] Para mais informações sobre o tema: https://www.geledes.org.br/tag/genocidio-da-populacao-negra/

[3] Neste final de semana (13-06) o acampamento foi desmontado pela Polícia Militar do DF.

[4] Organização norte-americana que defende correntes reacionárias, racistas e extremistas, tais como supremacia branca, nacionalismo, anti-imigração.

[5] Sobre o aspecto da ordem, gostaria de relembrar o quanto o fascismo na Itália pontuava isso. Nas palavras de Leandro Konder: Mussolini podia ter um jeito de palhaço, mas o movimento que lançara e dirigia se mostrara capaz de tomar o poder, de liquidar a esquerda, acabar com as greves e impor a ordem ao país: ele demonstrara na prática (aparentemente) a superioridade do seu idealismo, dos seus mitos patrióticos e voluntaristas (2009, p. 80).

 

Referências

 

FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: Uma conversa na teoria crítica. São Paulo, Editora Boitempo, 2020.

KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. São Paulo. Editora Expressão popular, 2009.

 

14/06/2020

Revista Espaço Acadêmico política

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/207234?language=en

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