''Ao não se solidarizar com as manifestações contra o racismo, Donald Trump degrada ainda mais a imagem de seu país''

12/06/2020
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Manifestação contra a violência policial e o racismo em Washington, em 7 de junho
Foto: Olivier Dourliery/AFP
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Crônica. Pequeno diálogo sino-americano relatado pelo Financial Times. A um porta-voz do Departamento de Estado que na semana passada em Washington denunciava as restrições às liberdades impostas a Hong Kong, uma autoridade do Ministério das Relações Exteriores da China em Pequim respondeu com um tweet vingativo: "Eu não consigo mais respirar."

 

Em poucas palavras, a resposta nos lembrou esta verdade: política externa é política doméstica - e vice-versa. A capacidade de um país defender seus interesses e promover seus valores no exterior também depende de sua situação interna.

 

As imagens do policial branco esmagando o pescoço de um homem negro, algemado e jogado ao chão em Minneapolis, Minnesota, viajaram o mundo. A última frase dita por George Floyd - "Não consigo mais respirar" - antes de sucumbir à pressão da polícia tornou- se o símbolo universal da persistência do racismo na sociedade americana. O funcionário chinês foi certeiro ao dizer a seu colega do Departamento de Estado: você não tem lição de moral para nos dar.

 

A imagem de Minneapolis supera todas as outras realidades. Ela apaga com vivacidade o fato de que o policial será julgado por assassinato. Nada diz sobre a independência do judiciário (mesmo que ele seja permeável ao dinheiro), a liberdade de imprensa ou [acerca] do direito de se manifestar nos Estados Unidos - tudo o que não existe na China.

 

Mas é assim que a imagem comanda. Ele pesará sobre a capacidade dos Estados Unidos de encarnar a democracia e denunciar nos outros a autocracia. Vai se tornar um dos elementos da batalha entre Pequim e Washington para dominar o século. A política externa americana passa por Minneapolis. E, ao não se solidarizar com a grande onda de manifestações contra o racismo que se seguiram à morte de George Floyd, Donald Trump degrada ainda mais a imagem de seu país - para o deleite de Pequim.

 

Soldados brancos contra crianças negras

 

Em sua época, outro presidente republicano, Dwight Eisenhower, reagiu de maneira diferente. Foi em 1957, em um momento decisivo da luta dos negros norte-americanos pela igualdade de direitos civis, relata a historiadora Mary L. Dudziak ao The New York Times. Naquele momento, o episódio também teve consequências para a política externa norte-americana, então inteiramente ocupada com a Guerra Fria entre os Estados Unidos e a URSS. O governador do Arkansas, um dos estados do sul do país, o democrata Orval Faubus se recusava a implementar uma decisão da Suprema Corte sobre a proibição da segregação escolar. Faubus mobilizou a guarda nacional local para impedir que nove crianças negras ingressassem para o início das aulas na escola pública da capital do estado, Little Rock. Imagem forte: soldados brancos armados contra crianças negras com mochilas escolares.

 

Em Moscou, a imprensa soviética a agarra, publica, comenta e estigmatiza. Na ONU, o representante dos Estados Unidos, John Foster Dulles, se preocupa: "Estamos perdendo votos, nossa política externa está em ruínas." As imagens de Little Rock - mas isso será verdadeiro durante toda a luta norte-americana negra pela igualdade cívica na década de 1960 - abalaram muitos países, particularmente africanos, que Washington queria reunir no campo anti-soviético. Eisenhower reage, manda a Guarda Nacional de volta para as casernas e envia paraquedistas da 101ª Divisão Aerotransportada para escoltar as crianças negras até a escola.

 

Trump é incapaz de gesto semelhante. Ele moldou a imagem dos Estados Unidos hoje: mais de 110.000 mortos por Covid-19, dezenas de milhões de desempregados, um presidente que apela ao exército para "dominar" as ruas norte-americanas, teatro de manifestações de anti-racistas. Na batalha ideológica em curso entre a China e os Estados Unidos, entre autocracia e democracia, o presidente oferece a Xi Jinping, seu colega chinês, o retrato de um país dividido e enfraquecido, atormentado por velhos demônios, os mesmos que Trump trabalha para reviver com fins eleitorais. O impacto estratégico não é desprezível. Como se "sentissem" a diminuição dos Estados Unidos, China, Rússia e Irã multiplicaram provocações nos últimos três meses em direção a Washington - no Mar da China, em Hong Kong, no Mediterrâneo, na Venezuela .

 

Capacidade de sedução

 

A diplomacia da imagem não diz tudo. Não explica o poder intocado dos Estados Unidos - econômico, tecnológico, monetário, cultural. A economia dos EUA criou 2,5 milhões de empregos em maio. Para aqueles que calculam o soft power perdido pelo país, deve-se lembrar que os líderes comunistas chineses mandam seus filhos para Harvard, onde a filha de Xi Jinping estudou, não para Pequim, Moscou ou Teerã.

 

Mas o elo entre as patologias interiores dos Estados Unidos e sua capacidade de projetar seu poder para fora permanece. É uma coincidência que, no auge dos tempos sombrios que os Estados Unidos passaram no início dos anos 70, quando os motins raciais e as manifestações contra a Guerra do Vietnã se combinaram, a política externa tenha mudado? Havia então uma prioridade, o fogo em casa: a Guerra Fria deslizava em direção a uma détente (relativa) com a URSS.

 

Barack Obama entendeu isso. Ele acreditava que a democracia norte-americana deveria ser restaurada por dentro antes de exaltar seus valores lá fora. Ele julgava que a atratividade de um dos países mais ricos do mundo também dependia do desempenho de seu sistema de saúde e seguridade social. Manter a liderança dos EUA no cenário internacional, pensava ele, pressupunha curar algumas das feridas do país. Donald Trump, seu sucessor, se ocupa em despejar sal nas feridas. Para ser reeleito em novembro, ele divide os Estados Unidos - o medo de alguns contra a cólera de outros.

 

- Alain Frachon - Colunista do Le Monde

 

12/06/2020

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/-Ao-nao-se-solidarizar-com-as-manifestacoes-contra-o-racismo-Donald-Trump-degrada-ainda-mais-a-imagem-de-seu-pais-/6/47801

 

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/207196?language=es
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