O “Fluxograma de Marillac” e a economia de Francisco

09/06/2020
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Sítio IESAI – Piranguinho, MG
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Ela queria ser santa. Desde menina, a vocação para a vida religiosa clamava em sua alma. Irmã Maria do Carmo Costa foi referência para muitas comunidades por sua sabedoria e serenidade, principalmente na hora de sua morte. Por convicção, acreditou na medicina alternativa, nas plantas medicinais e nas terapias herdadas dos povos indígenas e tradicionais e com eles aprendidas.

 

Marillac era seu nome de batismo na Igreja católica. Fundou o Instituto de Educação para a Saúde Integral (Iesai). Como enfermeira religiosa, diretora da Escola de Enfermagem Wenceslau Braz (EEWB) e madre superiora da Congregação das Irmãs de GAP (Itajubá-MG), trabalhou para implementar a cura pela água, pelas terapias preventivas e pela boa alimentação agroecológica.

 

Antes de falecer, acometida pelo câncer, presenteou-me com um exemplar da Bíblia. Na dedicatória, o recado:

 

“Minha querida Amyra, o melhor presente para a festa da vida é a Palavra de Deus! Nela você encontrará o que seu coração busca: a paz, a serenidade, o sentido da vida, o Amor Incondicional de Deus! Com carinho e amor, sua tia Ir. Maria do Carmo Costa. 16/07/2004”.

 

Foi o que fiz: em um momento de profunda angústia, sem saber para que lado seguir nesta caminhada, resolvi ler a Bíblia sem o apoio de clérigo ou teólogo. Quando comecei a ler o Gênesis, lembrei-me do “Fluxograma de Marillac”.

 

Maria do Carmo desenhou um fluxograma para explicar as doenças da humanidade no plano material e espiritual e a transformação através da cura. Dizia-me: “Amyra, tudo foi redimido, mas nem tudo foi curado. Cristo caiu no fundo do poço para que todos(as) caiam nele!”.

 

Para Maria do Carmo, esse Deus não tinha gênero. Era pai/mãe/providência.

 

O “Fluxograma de Marillac”, como denominei seu gráfico, propunha uma Igreja contemporânea, feminina, materna e compreensiva. Nele, Maria do Carmo criticava duramente a Igreja católica por sua postura patriarcal e conservadora. Para ela, esta é a verdadeira razão pela qual tantos fiéis estão se afastando da doutrina. Eu mesma me tornei muçulmana por questões de identidade étnica e cultural. Ela me entendeu e apoiou sem questionar ou criticar. Ela era ecumênica e bebia de diferentes fontes para inspirar-se.

 

Ela pedia, em orações, a transformação da Igreja e agia, em sua pregação, para que isso acontecesse no caminho da cura, do perdão e da compreensão. O fluxograma e suas palavras de bom senso pautaram minha trajetória profissional quando rompi com a ortodoxia econômico-financeira e passei a combater, com conhecimento de causa, as mazelas do sistema financeiro. Seus ensinamentos passaram a ser o “princípio norteador” de meu trabalho como economista, professora e ativista, apoiando as “lutas emancipatórias dos povos”.

 

Ao ler a Bíblia, do livro do Gênesis até “os Livros Proféticos”, ficou clara a mensagem do “Fluxograma de Marillac”: era necessária a ruptura. Sem a ruptura, não seria possível a transformação; desta forma, retornaríamos ao caminho da dor (guerra e doenças) e não do amor (paz e cura). Parei por aí. Não me sentia capaz de continuar sem suporte. Aquilo estava me torturando.

 

Um mês depois dessa leitura, o papa Francisco nos brinda com a Encíclica Ecológica. Não acreditei no que li. Cada palavra soava como a fala de Maria do Carmo e seu fluxograma. Mesmo que ainda se mantenha o conservadorismo em relação a alguns tabus, ali estava o suporte de que eu necessitava para compreender a mensagem de minha amada tia, orientadora e matriarca da família.

 

Muito se tem escrito, analisado e debatido sobre a encíclica ecológica do papa Francisco (Laudato Si). Porém, aqueles que conheceram Maria do Carmo e com ela conviveram, entenderão a magnitude deste posicionamento para “aclarar as ideias” neste momento de crise econômica e sociopolítica mundial.

 

Maria do Carmo nos ensinou que, sem cura, o perdão não se sustenta, pois o ódio, a miséria e a tragédia se perpetuarão pela dor. 

 

Ao nos presentear com a encíclica ecológica, o papa Francisco nos convida à reflexão e valida o chamamento que já constava nas súplicas do coração amoroso e maternal de Marillac.

 

Em comunhão com os princípios de Marillac, a colega economista italiana Alessandra Smerilli, religiosa da Congregação Filhas de Maria Auxiliadora (salesianas), analisa o mais recente documento vaticano “Oeconomicae et pecuniariae quaestiones”  que trata das economias e finanças de nosso tempo:

 

É um documento muito significativo sobre a perspectiva financeira ética e socialmente responsável. O fato de estar sendo tratado pela Congregação para Doutrina da Fé significa que viver uma finança coerente é matéria de fé, uma questão de coerência evangélica que está no coração da fé. Não é apenas um acaso ou acidente, não é secundário. Dá um incentivo muito grande para o desenvolvimento de uma perspectiva financeira que trabalha pela sustentabilidade e obriga as pessoas da Igreja a fazer um exame de consciência sobre a forma com que estão vivendo as finanças, que a finança pode ser uma coisa boa, que a economia é bela.

 

Se Maria do Carmo, desde menina, queria ser santa, esta “graça” se materializou nos novos rumos que a Igreja católica está tomando a partir das iniciativas do papa Francisco, especialmente nesses documentos.

 

Talvez o Papa nunca venha a saber, mas ao nos guiar pelo amor, ele simplesmente reconheceu a santidade de Marillac!

 

Notas:

 

IESAI - Instituto de Educação para a Saúde Integral – http://iesai-piranguinho.blogspot.com.br/EEWB - Escola de Enfermagem Wenceslau Braz - http://www.eewb.br/

Irmãs da Providencia de GAP - http://www.providenciadegap.com/

Ecumênica: pessoa que respeita outras pessoas de diferentes credos ou ideologias. Cf. Dicionário Houaiss.

 

Referências:

 

Braga CG, Ribeiro AAA. As diretoras religiosas da Escola de Enfermagem Wenceslau Braz (1955-2016). REME – Rev Min Enferm. 2020[citado em];24:e-1276. Disponível em: DOI: 10.5935/1415-2762.20200005. Acesso em: junho de 2020. http://reme.org.br/artigo/detalhes/1422

SANTOS, João Vitor. Economia de comunhão é alternativa à voracidade de um mercado predador. Entrevista especial com Alessandra Smerilli. IHU On line. 02.06.2018. Acesso em: junho de 2020. < http://www.ihu.unisinos.br/579540-economia-de-comunhao-e-alternativa-a-v... >

  VATICAN.  Carta Encíclica LAUDATO SI’ do Santo padre Francisco sobre o cuidado da Casa Comum, no dia 24 de Maio – Solenidade de Pentecostes – de 2015. Acesso em: junho de 2020. http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html

VATICAN. “Oeconomicae et pecuniariae quaestiones” Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro. 17.05.2018. Acesso em: junho de 2020.  http://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2018/05/17/0360/00773.html

 

- Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental e editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e  Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras . É autora do e-book “Commodities Ambientais em Missão de Paz: Novo Modelo Econômico para a América Latina e o Caribe”.

 

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/207130?language=en
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