Cara gente branca: quantos mais teremos que morrer?
- Opinión
Nos últimos dias temos observado a eclosão de protestos cada vez maiores por todo território dos EUA, em razão da violência policial estadunidense contra a população negra. A morte de George Floyd, homem afro-americano de 46 anos, marcou o estopim para manifestações, por algo que não é novo: o assassinato de mais um corpo negro de maneira banalizada, expressando a descartabilidade de algumas vidas em detrimento da reafirmação de uma superioridade racial em um país que é marcado pela opressão e violência aos cidadãos de cor, desde sua formação. Na vertigem dos protestos, que não têm data para acabar, como a morte de George se relaciona com a violência policial no Brasil?
Em 18 de Maio de 2020, João Pedro Mattos Pinto, jovem negro de apenas 14 anos foi morto em sua residência no complexo do Salgueiro (RJ), após ter sua casa violentamente alvejada com mais de 70 tiros. Tiros, estes, disparados por um agente do Estado. O caso de João Pedro poderia ser tratado como a ação isolada de um policial, em uma operação específica da polícia, se não fosse pelo fato da recorrência destes casos. Somado a mais quatro outras crianças negras, João entra para estatística como a quinta criança morta durante uma ação policial em comunidades do Rio de Janeiro, no último ano.
De 2002 a 2017, mais de 250 mil pessoas negras foram assassinadas no Brasil. Isto falando apenas dos casos registrados. De acordo com informativo IBGE (2019), sobre Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, até 2017, a população negra tinha 2,7 mais chances de ser assassinada do que pessoas brancas. A curva de vulnerabilidade de pessoas negras está em constante ascensão, enquanto a violência contra pessoas brancas se manteve estável. A taxa de homicídios entre jovens de 15 a 19 anos, para pessoas brancas é de 34 indivíduos a cada 100 mil habitantes. Ao retratar pessoas negras, o índice sobe para 98.5 por 100 mil habitantes. Falando apenas de homens negros, há uma crescente para 185 vidas interrompidas a cada 100 mil habitantes. Em números gerais, 75% dos assassinatos que acontecem no Brasil, acontecem sobre a população negra. Além disso, a expectativa de vida para uma pessoa negra é 5 anos menor do que a expectativa de vida entre pessoas brancas, em um país onde a cada 23 minutos uma pessoas negra é morta.
Precisamos entender, no entanto, que a morte se expressa enquanto solução final no processo de exploração dos corpos negros. Os assassinatos de João Pedro, ou George Floyd, representam a ponta de um iceberg maior. Isto é, o fim de uma vida. Porém, o racismo não está apenas na morte biológica do corpo, senão acontece anterior até mesmo ao nascimento do indivíduo. Ou seja, o racismo que alvejou a casa de João Pedro, matando-o, e o racismo que asfixiou Floyd, primeiro limita acessos, depois cria arquétipos sobre esses corpos que – cobertos por um véu – não são enxergados além da imagem criadas sobre eles. Neste sentido, o imaginário sobre o substantivo negro é explorado para atender às aspirações do projeto de Estado que é praticado no Brasil, ou nos EUA: um Estado branco.
Conforme disposto pela filósofa Sueli Carneiro, há uma expressão do genocídio em um processo contínuo. Desde a experiência colonial nas américas, foi-se preciso criar mecanismos que permitissem maior controle de alguns indivíduos sobre outros, conferindo-lhes, inclusive, poder de morte. Este processo é perpassado pela apagamento das narrativas diferentes do padrão estabelecido e mais do que inferiorizar o conhecimento gerado por grupos marginalizados, ele também subalterniza pela culturalidade. Caracterizando, assim, o epistemicídio.
Ser antirracista, portanto, não deve se limitar apenas à repulsa às mortes de pessoas negras, o que deve gerar comoção social. Porém, devemos começar a repensar a maneira como somos organizados socialmente e como vivem essas pessoas enquanto corpos capazes de respirar. Depois de pensarmos em como outros seres humanos vivem, precisamos agir mais assertivamente para que corpos negros não precisem mais cair.
Em memória de: Ágatha Félix; 8 anos. Kauê dos Santos; 12 anos. Jennifer Gomes; 11 anos. Kauã Rozário; 11 anos. Kauã Peixoto; 12 anos e João Pedro Mattos; 14 anos.
- Marllon Motta da Rocha é graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, anti-punitivista e pesquisador de raça e segurança internacional.
Referências
CARNEIRO, Sueli. “A CONSTRUÇÃO DO OUTRO COMO NÃO-SER COMO FUNDAMENTO DO SER “. (2005). Diponível em: https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf
DuBois. W.E.B. “Worlds of Colour” . (1925). Disponível em: https://cominsitu.files.wordpress.com/2019/02/du-bois-worlds-of-color.pdf
2 de junho de 2020
https://diplomatique.org.br/cara-gente-branca-quantos-mais-teremos-que-morrer/