O presente de Putin

16/05/2020
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Cristina Fernández de Kirchner e Vladimir Putin
Imagem: Associated Press
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Lawfare é uma expressão inglesa empregada nos casos onde o sistema de justiça é utilizado para fins de perseguição política. Trata-se de uma estratégia utilizada com sucesso nos últimos anos pela direita latino-americana, especialmente no Brasil, onde a parceria Judiciário/mídia foi decisiva para o impeachment sem crime de responsabilidade da presidenta Dilma Rousseff e na prisão do ex-presidente Lula. Identificamos outro exemplo de lawfare na perseguição judicial sofrida pelo líder equatoriano Rafael Correa.

 

Esse método foi empregado de maneira tão despudorada em nossa região que gerou episódios dignos de uma tragicomédia, como o do presente dado pelo presidente russo Vladimir Putin a atual vice-presidenta da Argentina, Cristina Kirchner. Antes de examinarmos o caso, precisamos esclarecer que o lawfare em nosso vizinho latino-americano é muito semelhante ao que presenciamos aqui, com direito a um poderoso grupo de comunicação que monopoliza o debate público (El Clarín) e a um juiz com aspirações políticas, Cláudio Bonadio (falecido recentemente).

 

Bonadio, apesar do currículo no mínimo polêmico (denunciado 75 vezes no Conselho da Magistratura) foi designado para cuidar dos processos contra Cristina Kirchner. O juiz, endeusado pela grande mídia, não hesitou em ordenar ações pirotécnicas, como a busca e apreensão realizada na residência dos Kirchner em El Calafate, amplamente divulgada pela grande imprensa. Nenhuma prova de corrupção foi encontrada. Ao invés de milhares de dólares, esbarraram em uma carta histórica de um dos libertadores da Argentina, José de San Martin, para Bernardo O’ Higgins 1. Bingo! Com base em uma lei de 1961, Cristina foi acusada de ocultar documentos de valor histórico.

 

Em sua autobiografia lançada no ano passado, a ex-presidenta faz referência ao episódio, esclarecendo que a carta foi um presente do presidente Vladimir Putin na ocasião de sua viagem à Rússia, em 2015.

 

A carta de San Martin é uma história maravilhosa: quando visitei Moscou em março de 2015, após o almoço de trabalho que o presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, nos ofereceu, ele parou a passagem da nossa comitiva e pediu a um dos seus colaboradores, que tinha uma caixa nas mãos, para vir. Para minha surpresa e a do tradutor, ele disse: “Isso é pra você presidente”. Quando abri a caixa e consegui ver a carta original de San Martin a O’ Higgins quase morri! Olhei pra ele e perguntei: “De onde tiraram isso?”. A resposta foi imediata e fiquei ainda mais surpresa: “Compramos para você em Nova York”. Confesso que se queria me impressionar, conseguiu, e muito (…)2

 

Agora, a promotoria argentina quer pedir “esclarecimentos” a Putin, para confirmar a veracidade do episódio. Não deixa de ser engraçado imaginar o presidente de uma superpotência mundial, ocupado por questões geopolíticas de suma importância, respondendo a esse tipo de pergunta. Mas o teatro de absurdos não para por aí: foi ordenada a realização de uma perícia para a verificação da autenticidade do documento, o que quer dizer que todo esse estardalhaço, com ampla cobertura da mídia, foi realizado por uma carta que não se sabe se é verdadeira. E ainda tem mais: um museu chileno está reivindicando a carta, nem se sabe se ela vai ficar na Argentina, caso seja devolvida.

 

Essa história lembra um capítulo da perseguição jurídica ao ex-presidente Lula, acusado de receber favorecimentos de uma construtora no armazenamento do acervo presidencial. Tratava-se de uma ação cujo fundamento era tão pífio que até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, tratado com honras de chefe de estado por Sergio Moro, depôs favoravelmente ao líder petista. Lula foi absolvido, mas o processo cumpriu sua função de constranger o ex-presidente e deteriorar a sua imagem frente à opinião pública.

 

Vamos aguardar o momento em que Putin, entre uma reunião sobre mísseis nucleares hipersônicos e política energética, deixe seus afazeres e responda o importante questionamento da promotoria argentina, que talvez devesse se dedicar aos problemas concretos da população menos favorecida daquele país, investigando o desmonte dos serviços públicos na Era Macri.

 

Referências:

 

Fernández de Kirchner, Cristina. Sinceramente-7ª. Ed.-Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Sudamericana, 2019;

Bonadio fue blanco de 75 denuncias en el Consejo de la Magistratura

Consultaran Putin si le ragalo la carta de San Martín a Cristina

 

Notas:

 

1 Primeiro chefe de Estado do Chile.

2 Lo de la carta de San Martín es una historia maravillosa: cuando visité Moscú, en marzo de 2015, luego del almuerzo de trabajo que nos ofreció el presidente de la Federación Rusa, Vladimir Putin, al retirarnos del mismo, hizo detener el paso de nuestra comitiva y pidió a uno de sus colaboradores, que tenía una caja en sus manos, que se acercara. Y allí, ante mi sorpresa y traductor mediante, me dijo: “Esto es para usted, presidenta”. Cuando abrí la caja y pude ver la carta original de San Martín a O’Higgins, casi me muero. Lo miré y le pregunté: ‘¿Y esto? ¿De dónde lo sacaron?’. La respuesta no se hizo esperar y me sorprendió aún más: ‘La mandamos a comprar para usted en Nueva York’. Confieso que si me quería impresionar, lo había logrado y con creces…

 

- Rafael Molina Vita é formado em Direito, servidor público federal, especialista em Direito Constitucional, mestre em Estado, Governo e Políticas Públicas pela FLACSO.

 

15/05/2020

https://outraspalavras.net/descolonizacoes/o-presente-de-putin/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/206596?language=en
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