A estratégia ideológica de ignorar a esquerda e os movimentos sociais

08/05/2020
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Está em curso uma estratégia ideológica de isolar, tornar desimportantes ou até mesmo irrelevantes o pensamento e a ação dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais, especialmente no enfrentamento e na apresentação de solução dos problemas decorrentes da pandemia, assim como fizeram com o movimento sindical durante a ofensiva de precarização e desmonte dos direitos trabalhistas e previdenciários.

 

A evidência dessa estratégia está no fato de que ninguém do campo progressista tem tido oportunidade de opinar ou mesmo de divulgar na imprensa comercial seus feitos no combate à crise sanitária e suas consequências na saúde, na economia e na área social, muito menos protagonizar iniciativas que tenham contribuído para resolver ou amenizar os problemas decorrentes da pandemia. Ouve-se sempre e se atribui protagonismo – entre os parlamentares, políticos, economistas, cientistas políticos, empresários e outros formadores de opinião, como magistrados, membros do Ministério Público, religiosos, empresários etc. – às forças de centro e centro-direita do espectro político, em uma clara orientação de esconder ou impedir a exposição de pessoas e instituições do campo progressista, democrático e popular.

 

No episódio da ajuda governamental às pessoas, às empresas e aos governos estaduais e municipais – que foram propostas e apreciadas no âmbito do Congresso Nacional – não há registro do papel fundamental que os movimentos sociais e as forças de esquerda tiveram nessa ajuda humanitária que está contribuindo para salvar vidas, empregos e empresas, tanto em termos de pressão popular sobre governantes e parlamentares quanto na formulação e apresentação de diagnósticos e soluções.

 

Apenas para ilustrar, basta dizer que as três principais medidas adotadas nesse período resultaram de pressão dos movimentos sociais e das forças de esquerda, e as propostas do governo federal foram consideradas inadequadas ou insuficientes. No caso da preservação dos empregados, a proposta original era de suspensão do contrato de trabalho sem qualquer contrapartida patronal ou governamental. Foi graças à ação e à pressão das forças progressistas que veio uma medida provisória com garantia de emprego e pagamento patronal e governamental no período de afastamento ou de redução de jornada, ainda que insuficientes. No caso da ajuda aos trabalhadores informais, a proposta governamental era de apenas R$ 200 por pessoa, chegando a R$ 600 graças à articulação de diversas ações políticas, especialmente lideradas por entidades do movimento social. E no caso do auxílio aos estados e municípios, igualmente o governo resistiu o quanto pôde para evitar a suspensão do pagamento das dívidas para com a União e também para fornecer ajuda em razão da perda de receita desses entes federativos.

 

Essa estratégia das forças conservadoras e de mercado faz sentido do ponto de vista político na medida em que a visão da esquerda e dos movimentos sociais é a mais justa e mais consentânea com o momento que se vive e com o que advirá do período pós-pandemia, porquanto se pauta pelo interesse coletivo, pela solidariedade, pelo reconhecimento e fortalecimento do papel do Estado, pelo humanismo e pela justiça social, e isso levaria ao reconhecimento do acerto histórico da visão de mundo e do pensamento político e social das forças progressistas.

 

É por isso que os veículos de comunicação comercial ou a grande imprensa, a serviço do mercado e do poder econômico, têm, proposital e solenemente, ignorado as forças progressistas, que ficam limitadas a disseminar sua visão e divulgar suas ações nas redes sociais, que, por sua vez, estão “guetizadas” e, portanto, cada linha de pensamento ou facção fala para o seu público, aquele que já está de acordo com sua visão, logo deixando de formar opinião no conjunto da sociedade.

 

Esse fato é agravado pela forma como, no Congresso, estão organizados os blocos parlamentares e o comando das duas Casas. Além de terem alijado os partidos de esquerda de posições-chave nas Mesas Diretoras, grupos estruturados em torno do centro-direita têm feito o possível e o impossível para esvaziar a atuação da esquerda, impedindo que assuma relatorias, deixando de pautar suas propostas, negociando acordos de validade mais do que duvidosa para impedir a obstrução parlamentar e controlando até mesmo o uso da palavra em plenário, tarefa facilitada em tempos de “sessões remotas” que têm inviabilizado o verdadeiro debate parlamentar.

 

Esse diagnóstico, em tom de alerta, é fundamental para despertar a necessidade de furar esse bloqueio, buscando formas criativas de exercer e divulgar protagonismo nesse momento da vida nacional, especialmente pela coincidência de desejos, aspirações, necessidades e propósitos existentes entre os movimentos sociais e as forças de esquerda, democráticas e progressistas, e a sociedade brasileira pós-pandemia, que sai dessa experiência traumática mais humilde, menos egoísta e gananciosa e, portanto, mais solidária.

 

Frente a isso, os movimentos sociais e as forças de esquerda precisam urgentemente assumir e liderar algumas bandeiras fundamentais e fazer grandes campanhas nacionais em favor delas. E atuar de forma mais incisiva no Parlamento, cabendo destacar, entre outras bandeiras, a defesa de programas de renda básica universal e políticas públicas de qualificação profissional e inclusão digital para o período pós-pandemia, quando o desemprego e a exclusão decorrentes da retração da economia mundial, da automação e da intensificação do uso de plataformas digitais tendem a crescer de modo exponencial, jogando no desalento milhões de brasileiros.

 

O pós-pandemia – que coincidirá com a cobrança impiedosa da conta da ajuda humanitária que os governos foram obrigados a patrocinar – poderá ser mais dramático que o próprio período da crise sanitária, porque nesse pelo menos os governos estavam autorizados a gastar sem limite para poupar vidas e empregos, enquanto que naquele os governos não disporão mais de recursos extras e precisarão equilibrar suas contas fiscais, desorganizadas por força dos gastos extraordinários no combate ao coronavírus, e num ambiente de reestruturação produtiva e de retração da economia e do consumo.

 

Assim, a conta do pós-pandemia, caso os movimentos sociais e a esquerda estejam desarticulados ou desacreditados, tende a ser paga com o desemprego e com o corte de direitos. E o alvo preferencial, como historicamente tem acontecido, serão os assalariados, incluindo servidores públicos e trabalhadores do setor privado, os aposentados e pensionistas, os beneficiários de programas assistenciais e sociais dos governos nos três níveis.

 

É urgente, portanto, quebrar esse bloqueio sob pena de as forças progressistas perderem a oportunidade histórica de recuperar o protagonismo e de restabelecer o papel fundamental do Estado no combate às desigualdades regionais e de renda, direcionando sua ação para a maximização do bem-estar mediante a adoção de políticas públicas em favor dos cidadãos, das populações, dos territórios vulneráveis e dos desassistidos, de um lado para assegurar equidade e justiça e, de outro, para garantir participação cidadã nas decisões e na distribuição da renda nacional, que resulta do esforço de todos.

 

- Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, consultor e analista político, mestrando em Políticas Públicas e Governo na FGV-DF, diretor de Documentação licenciado do Diap e sócio-diretor das empresas Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais  e Dialógico Institucional Assessora e Análise de Políticas Públicas

 

EDIÇÃO 196 - 06/05/2020

https://teoriaedebate.org.br/colunas/a-estrategia-ideologica-de-ignorar-a-esquerda-e-os-movimentos-sociais/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/206420?language=es
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