Grande Sertão: veredas e o ocaso da ordem patriarcal

09/04/2020
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               «Sou escritor e penso em eternidades. O político pensa apenas em minutos. Eu penso na ressureição do homem.”

                 “(...) penso desta forma: cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é concedido. Sua tarefa nunca é maior do que sua capacidade para poder cumpri-la. Ela consiste em preencher seu lugar, em servir à verdade e aos homens. Conheço meu lugar e minha tarefa (...).”

João Guimarães Rosa em entrevista com Günter Lorenz

 

O patriarcado morreu. Mas seu cadáver ainda pesa sobre o mundo, entravando o futuro. Pois a ordem patriarcal penetrou todos os insterstícios de nossa organização social e política, moldou nossas instituições, criou hierarquias e, sobretudo, se ancorou profundamente no sistema econômico. O capitalismo é o último refúgio do patriarcado e o neoliberalismo é sua declaração de guerra às forças de mudança e renovação que o ameaçam. Para manter-se, o capitalismo precisa proceder a uma repatriarcalização do mundo, daí a sua aliança com certas seitas religiosas, seu apoio às forças mais retrógradas ainda presentes em nossa sociedade, seu apelo ao racismo, à homofobia e à supremacia branca; a todo dogma e à toda intolerância, ao fascismo enfim, que é a expressão política definitiva do patriarcalismo.

 

São tempos sombrios e perigosos estes em que o capitalismo procura reimpor ao mundo a ordem patricarcal da qual depende. João Guimarães Rosa nos legou, em ‘Grande Sertão: Veredas’, uma descrição precisa sobre este tempo, o nosso tempo, o do ocaso da ordem patriarcal.

 

O sertão é um espaço completamente dominado pelo patriarcado e pela sua violência intrínseca, onde os grandes chefes jagunços são e fazem a lei.

 

“O senhor sabe, o sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!” – informa Riobaldo, o personagem- narrador, também ele um jagunço, porém diferente dos outros, como ele próprio revela:

“O senhor saiba: eu a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.”

A ‘desconfiança’ de Riobaldo se refere principalmente à ordem patriarcal onde ele esta inserido. Sua origem esta no fato de que Riobaldo não teve um pai – ele era filho natural de um fazendeiro, só veio a conhecer o pai mais tarde. E ao descobrir que o seu padrinho Selorico Mendes, com quem ele foi morar depois da morte da mãe que o criara sozinho, era na verdade o seu pai, Riobaldo, revoltado, foge de casa. Riobaldo foi ‘traído’ pela ordem patriarcal – seu pai não o assumiu - e esta traição o permite ver de outra maneira a realidade do patriarcalismo. A traição é um dos temas principais do ‘Grande Sertão’.

 

A situação de Diadorim é inversa a de Riobaldo: Diadorim é órfã de mãe, criada apenas pelo pai, o respeitado chefe jagunço Joca Ramiro. O diálogo entre Diadorim/Reinaldo e Riobaldo quando este encontra Joca Ramiro pela primeira vez mostra claramente esta diferença entre os dois:

“ – ‘Você vai conhecer em breve Joca Ramiro, Riobaldo...’ – o Reinaldo veio dizendo. – ‘Vai ver que ele é o homem que existe mais valente!’ (...) E perfez:- ‘Não sabe que quem é mesmo inteirado valente, no coração, esse também não pode deixar de ser bom?!’ Isto ele falou. Guardei. Pensei. Repensei. Para mim, o indicado dito, não era sempre completa verdade. Minha vida. Não podia ser.”

 

Um outro tema fundamental do romance é o do pacto com o demônio, também mencionado várias vezes por Riobaldo, que se pergunta se Hermógenes, o jagunço do ‘mal’, não seria ‘pactário’. Mas um outro pacto, a meu ver, também está presente na obra: o pacto de Diadorim e Riobaldo com a ordem patriarcal, que no final ambos vão trair.  E o tema da traição aparece, justamente, no primeiro encontro com Joca Ramiro, que é também o primeiro encontro com Hermógenes:

 

“Puxei conversa com Diadorim. Por que era que Joca Ramiro, sendo chefe tão subido, de nobres costumes, consentia em ter como seu alferes um sujeito feito esse Hermógenes, remarcado no mal? Diadorim me escutou depressa, tal duvidou de meu juízo: - ‘Riobaldo, onde é que vc está vivendo com a cabeça? O Hermógenes é duro, mas leal de toda confiança. “ (...)

 

“Assim uma coisa eu já estava escondendo, mesmo de Diadorim: que eu já parava fundo no falso, dormia com a traição. Um nublo. Tinha perdido meu bom conselho. E entrei em máquinas de tristeza.”

 

Hermógenes vai matar – trair – Joca Ramiro. Riobaldo, desde o primeiro encontro, percebe o ‘mal’ em Hermógenes. Diadorim só ‘vê’ a realidade do Hermógenes depois do assassinato de Joca Ramiro. Mas é Diadorim quem mata Hermógenes.  Guimarães Rosa insiste no papel fundamental que o principio feminino – e a mulher – têm na luta contra o patriarcado – mas também mostra como pode ser doloroso e lento o caminho para a libertação interior, emocional, do patriarcalismo. Diadorim desperta aos poucos para a realidade da violência da ordem patriarcal. É em parte pela solidariedade com outras mulheres que sofrem sob o domínio patriarcal que Diadorim começa a questionar esta ordem:

 

“ – ‘ Mulher é gente tão infeliz...’ -me disse Diadorim, uma vez (...) “

 

E pouco antes da batalha final contra Hermógenes, Diadorim confessa:

 

“ –‘ Riobaldo, hoje-em-dia eu nem sei o que sei, e, o que soubesse, deixei de saber o que sabia...’ (...) Por vingar a morte de Joca Ramiro, vou, e vou e faço, consoante devo. Só, e Deus que me passe por esta, que indo vou não com meu coração que bate agora presente, mas com o coração do tempo passado...E digo...’ “

 

O ‘coração que bate agora presente’ é outro: Diadorim cumpriu sua travessia e seu aprendizado interior: consegue agora ver com clareza a realidade da ordem patriarcal. Porque talvez a mensagem fundamental de Guimarães Rosa seja justamente essa: ao lado ‘bom’, positivo da ordem patriarcal – representado pelos chefes jagunços Medeiro Vaz, Zé Bebelo e sobretudo Joca Ramiro – com seus atributos de coragem, valentia e justiça – corresponde o lado ‘mal’ – representado por Ricardão e Hermógenes – com sua violência, sua necessidade de domínio, sua sede de poder. Joca Ramiro tem como seu braço-direito Hermógenes e eles aparecem juntos para Riobaldo quando este os vê pela primeira vez. Mas esta dupla face da ordem patriarcal não se manifesta apenas entre os jagunços. Logo no início do romace, Riobaldo declara:

 

“Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois –“

 

Aqui se resume a realidade profunda da ordem patriarcal – sempre tem os depois....

 

Riobaldo faz o seu pacto com o demônio – e com a ordem patriarcal – quando assume a liderança do grupo de jagunços na guerra final contra o bando do Hermógenes. Com a morte de Hermógenes e o sacrifício de Diadorim – que também morre na batalha - a ordem patriarcal ‘positiva’ é reestabelecida por Riobaldo, que se retira da vida de jagunço. Há uma profunda trsiteza no final de ‘Grande Sertão’.  Riobaldo percebe que livrar o mundo de Hermógenes pode ser necessário – mas que ainda mais necessário é combater o sistema que torna os Hermógenes possíveis.

 

“Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente...Eu, já estou velho.”

 

Riobaldo deseja este outro tempo que está para além da ordem patriarcal.

 

Do mesmo modo, hoje, é necessário combater os Trumps e Bolsonaros – mas a luta não pode se encerrar aí. Nem Diadorim nem nenhum de nós deve se sacrificar mais para reestabelecer a ordem patriarcal em sua versão ‘positiva’.

 

A epidemia do coronavirus, ainda em seus inícios, já conseguiu desmascarar as últimas ilusões – de quem ainda as possuia – do neoliberalismo e da ordem patriarcal que o impôs. Pois a catástrofe que se desenrola na Itália, na Espanha, na França e nos EUA não é apenas uma consequência do vírus, mas de décadas de políticas de austeridade e de destruição dos serviços públicos de saúde. E, de repente, cabe à Cuba e à excelência de seus serviços públicos, de seus médicos, técnicos e enfermeiros, prestar assistência à Itália, à França ... E o mundo mergulha em sua mais profunda crise econômica desde 1929. Diante deste quadro querem nos fazer acreditar que o que havia antes, até bem pouco tempo, era não apenas melhor, mas O melhor. Que trata-se agora de reestabelecer o capitalismo de antes do vírus, de antes da crise econômica, corrigindo talvez uma coisinha aqui e outra ali. Que no Brasil basta reestabecer a democracia de antes do golpe. Mas é importante lembrar que ao lado da Ex-Presidente Dilma estava Michel Temer – como Hermógenes ao lado de Joca Ramiro. Se chegamos aonde estamos não foi por acidente, mas porque várias forças nos trouxeram até aqui, forças profundamente comprometidas com a ordem patriarcal e com o capitalismo. Reestabelecer a ordem patriarcal em sua versão ‘benéfica’ equivale a permitir que estas forças continuem atuando.

 

Não, não se pode mais reestabelecer a ordem patriarcal. Trata-se agora de ESTABECER UMA NOVA ORDEM. Somente uma nova ordem pode garantir a sobrevivência futura da humanidade e do planeta. A ordem patriarcal luta com todos os meios a seu dispor para manter-se, apresenta-se como a única salvação possível diante da dupla ameaça da crise econômica e da epidemia de coronavírus. Pois a ordem patriarcal sabe como infundir medo, paralisar as pessoas, impedir as mudanças. Mas Riobaldo, nosso mestre e irmão, responde:

“Mas ninguém tem a licença de fazer medo aos outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu – o que quero e sobrequero - : é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim!”

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/205786?language=en
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