O Chile em chamas
- Análisis
O estopim da explosão que o Chile vive desde a semana passada foi o aumento nas passagens de metrô. Mas o conteúdo explosivo desse barril começou a ser preenchido muito antes, e o que se vê nas ruas de Santiago e de um sem-fim de cidades chilenas é o resultado daquilo que vem sendo acumulado há décadas.
Até a manhã da segunda-feira 21 de outubro onze pessoas tinham morrido. Outras 1.462 estavam presas, das quais 614 em Santiago e 848 em outras cidades do país. Pelo menos duzentas estavam feridas, algumas em estado grave.
Pelas ruas, uma cena que não era vista desde os tempos da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990): tropas militares, blindados e tanques. Piñera impôs o toque de recolher, cujo horário varia dia a dia.
Em vão: ao contrário do que acontecia nos tempos pinochetistas, muita gente desrespeita a ordem de não sair de cada.
Chama a atenção a atitude do presidente direitista: em vez de propor saídas para a crise, propõe que as pessoas não saiam às ruas.
É verdade que ele revogou o tal aumento nas passagens do metrô. Ou seja, apagou o estopim. Mas o barril continua explodindo, e ele não diz como pretende aplacar seus efeitos.
A questão central do que o Chile vive não foi sequer roçada pelo presidente: o descalabro social. Apesar de ter uma economia sólida e que vem se mantendo entre as de crescimento mais sustentável na região, também cresce o número de pobres e de miseráveis, com destaque para os aposentados. As desigualdades sociais se agravaram ainda mais no seu segundo e atual mandato presidencial.
O sistema previdenciário imposto ainda em tempos de Pinochet, aquele que Paulo Guedes (que foi funcionário do ditador mais sangrento da história do país) e o tresloucado Jair Bolsonaro pretendem copiar no Brasil, produziu efeitos arrasadores nas aposentadorias dos chilenos.
A imensa maioria recebe menos de um salário mínimo, e quase a metade dos aposentados do Chile vivem abaixo da linha de pobreza.
Além disso, as privatizações desenfreadas – outra obsessão do especulador Guedes e do desequilibrado Bolsonaro – levaram às nuvens o preço de serviços públicos essenciais, da água à energia elétrica, passando pelo gás e pelos transportes.
Como se fosse pouco, a descabelada especulação imobiliária fez com que os preços – tanto de compra como de aluguel – mais que dobrassem em cinco anos. Para completar o cenário, o custo de vida no Chile é dos mais altos da América Latina, comparáveis aos do Brasil.
Saúde e educação também se encontram em situação mais que precária. Várias medidas adotadas pela ex presidenta Michelle Bachelet foram revogadas por Piñera, e o resultado está agora nas violentas manifestações de fúria espalhadas pelas ruas do país.
Pelo menos 70% das famílias chilenas estão endividadas e em situação de moratória irremediável. São dívidas impagáveis, que se multiplicam e se acumulam sem que haja saída à vista.
Enquanto um por cento da população chilena fica com 26% das riquezas que o país produz, a metade fica com dois por cento. Em semelhante cenário de desigualdade, como surpreender-se com a explosão social?
Analistas creem que os atos de violência irão se repetir, embora perdendo força aos poucos. E alertam que a inércia do governo, cujo discurso continua centrado em apelos para manter a ordem e respeitar a lei, reflete apenas a pouca atenção dada pelo presidente e sua equipe às reais razões do caos que o país enfrenta.
O grau de violência registrado em saqueios ao comércio e na destruição de um grande número de estações do metrô chama a atenção, principalmente por se multiplicarem num país que parecia ostentar um clima de concórdia. A imagem de um povo cuja elite se orgulhava de ser ‘uma espécie de ingleses da América Latina’ foi pelos ares.
A grande dúvida agora é o que vai acontecer daqui em diante. Até quando o governo direitista e neoliberal de Sebastián Piñera continuará a fingir que tudo não passa de um bando de vândalos descontrolados? Até quando vai achar que inundar as ruas de tropas é a solução?
A única saída efetiva seria rever, rápida e profundamente, o modelo econômico de um neoliberalismo fundamentalista. O único meio de se chegar a soluções seria entender que por trás do vandalismo existe uma poderosa onda de rebelião contra os estragos feitos pela imposição do modelo econômico dos tempos da ditadura pinochetista.
Mas Piñera é um dos homens mais ricos do Chile. E ele e os da sua estirpe continuam achando que por trás do vandalismo só existem vândalos. E que contra eles a única solução é a violência fardada.
- Eric Nepomuceno é jornalista e escritor. Para o Jornalistas pela Democracia
21 de outubro de 2019
https://www.brasil247.com/blog/o-chile-em-chamas
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