Da indústria ao agronegócio, a economia afunda (salvo os bancos)
- Opinión
A queda de 0,2% no PIB do primeiro trimestre, uma bomba em Brasília e no mundo dos negócios, deixou ainda mais evidente a essência da política do governo Bolsonaro na área econômica, que consiste em aguardar que o chamado mercado empurre o País para a frente, enquanto aperta até o fim os mais frágeis com o teto de gastos do Orçamento e a proposta de reforma da Previdência. Tudo em benefício apenas do topo da pirâmide da distribuição de renda, que vai bem, como mostram os ganhos extraordinários dos rentistas no setor financeiro e da parcela que adquiriu empresas e outros recursos privatizados e desnacionalizados a preços de fim de feira. Há sinais fortes de recessão, resultado previsível de uma economia deformada pelo rentismo, que consiste na obtenção de ganhos proporcionados pela mera posse de riquezas sem investimento de um centavo em aumento da produção e geração de empregos, problema mundial com raízes profundas, mas que no País atinge um grau de radicalidade sem igual.
“O risco de uma recessão em 2019 é evidente. A queda do PIB no primeiro trimestre exige uma recuperação muito significativa nos trimestres seguintes, apenas para que a variação do PIB em 2019 seja zero”, prevê um paper do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia da Unicamp. O motivo fundamental para a retração do PIB, prossegue a análise do Cecon, é a redução do consumo em consequência do elevado desemprego, da desaceleração do crédito e da elevação dos spreads bancários (diferença entre a taxa cobrada de quem toma dinheiro emprestado no banco e aquela usada para remunerar o aplicador).
“A recessão continua”, diagnostica o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial. No ano, a indústria acumula perda de 2,7%, com um grande número de ramos no vermelho. Por isso, embora fatores localizados como o desastre de Brumadinho tenham seu peso negativo, provavelmente assistimos ao resultado do acúmulo da falta de demanda agregada com os problemas estruturais que há muito tempo minam a competitividade do produto nacional”, disparou o Iedi.
O PIB recuou na comparação com o quarto trimestre de 2018 e foi o primeiro resultado negativo nesse tipo de comparação desde o quarto trimestre de 2016, quando oscilou -0,6%, chamou atenção o IBGE. O declínio pronunciado na indústria extrativa, de -6,3%, teve um grande peso no resultado. As indústrias de transformação, com variação de -0,5%, e da construção, com oscilação de -2%, afetaram também os serviços e dois grupos de peso nesse setor ficaram negativos: o comércio, com 0,1% e os transportes e armazenagem, com 0,6%. Essas atividades, sublinha a instituição, dependem em grande parte da produção industrial e refletem sua performance no trimestre, que foi negativa para todas as categorias econômicas. Os dados do IBGE mostram estragos generalizados. O retrocesso de 0,5% na pecuária, com destaque para a soja (-4,4%) e o arroz (-10,6%), atesta que nem o carro-chefe da economia, o agronegócio, saiu ileso da marcha a ré do PIB no primeiro trimestre. Entre as atividades de serviços com resultados positivos destacam-se informação e comunicação (0,3%) e o setor financeiro (0,4%), este o núcleo do rentismo.
Apesar do resultado pontual positivo de abril com a geração de 480 mil postos formais depois de 16 trimestres seguidos de queda, o mercado de trabalho está longe de recuperar a perda de 3,4 milhões de empregos com carteira ocorrida desde 2014, admite o IBGE. O quadro piora quando considerada a “taxa composta de subutilização da força de trabalho” (porcentual de desocupados, subocupados por insuficiência de horas trabalhadas e na força de trabalho potencial), que atingiu 24,9%, recorde da série histórica iniciada em 2012, o que representa 28,4 milhões de brasileiros subutilizados. Acrescente-se ainda a força de trabalho potencial, com 8,2 milhões que não buscaram trabalho, mas gostariam de trabalhar e os 4,9 milhões de desalentados, que desistiram de procurar uma ocupação. Quase 7 milhões trabalhavam menos de 40 horas semanais, e gostariam de trabalhar mais.
As maiores preocupações concentram-se na indústria, devido à sua grande importância para o conjunto da economia e sua função estratégica na elevação da produtividade em todos os demais setores. O setor automobilístico, por exemplo, mostra “comportamento volátil”, segundo o IBGE, porque a demanda doméstica não consegue acompanhar a produção e há também a crise na Argentina, que afeta as exportações.
A outra face do retrocesso econômico é a exuberância financeira e os ganhos quase sem limites dos seus beneficiários individuais, os chamados rentistas. “Desde o início da hiperglobalização, as finanças tendem a gerar enormes recompensas privadas absurdamente desproporcionais em relação aos seus retornos sociais. Grande parte dessas recompensas é proporcionada pelo rentismo, que é a obtenção de renda a partir unicamente da propriedade e controle de ativos ou de uma posição de mercado dominante, em vez de atividade empresarial inovadora ou implantação produtiva de um recurso escasso”, analisa Richard Kozul-Wright, diretor da Divisão de Estratégias de Globalização e Desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad).
Os rentistas mais conhecidos, diz, são os proprietários de ativos financeiros como títulos do governo, letras financeiras ou imobiliárias, certificados de depósitos, entre outros, e recebedores dos respectivos juros. “As corporações não financeiras também se tornaram, entretanto, adeptas de estratégias rentistas para reforçar seus lucros e aumentar seu poder. Capturam a renda por meio de uma série de mecanismos não financeiros, como o uso sistemático de direitos de propriedade intelectual, para deter rivais. Outro caminho é a predação do setor público, incluindo privatizações em grande escala que simplesmente transferem recursos de contribuintes para executivos e acionistas e a concessão de subsídios para grandes corporações, muitas vezes sem resultados tangíveis em termos de aumento da eficiência econômica ou outros ganhos. Vários casos envolvem, ainda, comportamento fraudulento ou próximo disso, incluindo evasão e elisão de impostos e ampla manipulação do mercado pelos executivos das corporações-líderes, visando o seu próprio enriquecimento”, detalha o economista da Unctad.
O avanço do processo é avassalador. Os lucros corporativos excedentes, isto é, que se desviam dos lucros típicos e considerados uma medida aproximada do rentismo, passaram de 4% dos resultados totais entre 1995 e 2000 para 23% de 2009 a 2015. No caso das cem maiores empresas, essa participação aumentou de 16% para 40%, calcula a instituição.
Entre os principais proprietários de ativos financeiros mencionados por Kozul-Wright destacam-se os bancos, as seguradoras, as distribuidoras, os fundos de pensão e outras instituições financeiras com mando incontestável no Estado e na política econômica, no exterior e no Brasil. O fato de no mesmo trimestre em que a indústria desabou e arrastou o conjunto da economia o lucro dos quatro maiores bancos crescer 22,3% e chegar a 20 bilhões ilustra a deturpação operada desde a mudança da configuração estabelecida pelos países aliados pouco antes do término da Segunda Guerra Mundial, quando, reunidos na cidade estadunidense de Bretton Woods, decidiram que suas economias nacionais seriam protegidas contra as restrições dos seus balanços de pagamentos por regras multilaterais que permitissem taxas de câmbio e controles de capital ajustáveis.
O desmantelamento do capitalismo regulado de Bretton Woods foi o primeiro passo fundamental rumo à financeirização do capitalismo e a correlata ascensão do rentismo, aponta o economista François Chesnais. “Principalmente a partir do fim, em 1973, do sistema de taxas de câmbio fixas e da crônica instabilidade monetária que se seguiu, abriu-se espaço para o vertiginoso aumento das finanças especulativas, cujo alvo prioritário passou a ser o mercado de câmbio ou de moedas, que oferecia alta rentabilidade e grande liquidez. Alguns anos mais tarde, a partir do cataclismo provocado pelo choque de juros dos EUA em 1979, começou uma segunda etapa de avanço da mundialização financeira.”
“O Brasil talvez seja o país que registra a maior e mais influente presença do rentismo na sociedade. Mesmo países que abrigam os centros financeiros que comandam os interesses do rentismo no mundo, como EUA e Reino Unido, conseguem manter algumas instituições políticas que servem de freio em seus próprios territórios. No Brasil, por conta do modo com que mergulhamos na dívida externa nos anos 1970, em razão das estratégias autoritárias e antipopulares empregadas para enfrentar a crise da dívida nos anos 1980 e dos mecanismos de proteção à hiperinflação ofertados aos ricos, sofremos uma deformação acelerada de nosso capitalismo tardio. Saltamos sem escalas do desenvolvimentismo de uma economia mista com participação central das holdings estatais para uma desindustrialização precoce, motivada em última instância pela prevalência descomunal da acumulação financeira em detrimento da acumulação produtiva”, analisam os autores do recém-lançado Os Donos do Dinheiro – O rentismo no Brasil, publicado pela Fundação Perseu Abramo.
No Brasil, mais do que em qualquer outro lugar, a classe rentista apropriou-se do Estado e demais centros decisórios com o advento da ditadura e desde os anos 1980 exerce uma supremacia sobre as demais classes, controla a mídia corporativa, os órgãos estratégicos e há 40 anos manda no Banco Central mesmo sem ter compromisso algum com o desenvolvimento da nação, diagnosticou o economista Marcelo Manzano, um dos autores do livro, durante a divulgação da obra.
“A força do rentismo aqui é radical, entre outros motivos porque o interesse da classe dominante desde os primórdios era extrair o máximo da colônia e ir embora. Vê-se com clareza a mesma postura nessa elite que derrubou Dilma Rousseff, tomou o poder e vem cometendo barbaridades contra o próprio desenvolvimento do País do qual extrai a sua riqueza. Mas eles topam esse jogo”, sublinhou Manzano.
Os militares, prossegue, precisavam de altas taxas de crescimento econômico para não perder legitimidade perante a população e assumiram a meta de crescer 10% ao ano na década de 1970. Para atingir essa taxa, o Brasil precisava aumentar em muito as importações, pois não produzia as matérias-primas básicas e necessitava de dólares para comprá-las no exterior. “Foi quando o ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, proibiu as estatais de tomarem empréstimos no Brasil e aumentou os juros internos para as empresas privadas, de forma que também estas fossem buscar crédito lá fora. A dívida era desnecessária e seu subproduto foi o rentismo. Com juros altos no País, a classe média, que estava bem de vida na época, começou a investir em papéis do mercado financeiro e a elite passou a apostar sua riqueza em papéis que pagavam altos juros. Foi o período do Overnight, da ORTN, de fermentação desse ciclo.”
Em 1979, os EUA subiram os juros internacionais, o Brasil não conseguiu pagar seus compromissos, quebrou e mergulhou na grande crise da dívida externa. O Estado e as contas públicas entraram em colapso. Para enfrentar a situação, o governo vendeu títulos públicos ao mercado com juros altos, liquidez plena e curtíssimo prazo durante todos os anos 1980. Era a chamada ciranda financeira. Foi nesse momento, segundo o economista, “que o ethos rentista impregnou a sociedade brasileira, a indústria incluída, e enraizou-se de um modo que a gente não consegue se livrar disso”.
Desde FHC, a economia cresce pouco e a marcha lenta tem a ver com a política de valorização do real, que tentou equipará-lo artificialmente ao dólar, e de juros altos, um calabouço para a indústria e ao mesmo tempo ótimo combustível para o setor financeiro e o rentismo. Lula e o PT tentaram deter o processo, mas esbarraram em uma correlação de forças desfavorável. “Os governos petistas que começaram em 2003… foram um prolongado esforço que, sem confrontar o rentismo, tentava fazer o País sair da armadilha para transitar a um modelo produtivo com inclusão social. Houve resultados positivos, mas, como ficou demonstrado com a contraofensiva que acabou levando Bolsonaro à Presidência, faltou uma visão mais estratégica de como pavimentar essa superação”, escreveram os autores do livro da Fundação Perseu Abramo.
Durante o governo de Dilma, em 2015 e 2016, a política macroeconômica adquiriu um caráter ortodoxo, buscando controlar a demanda agregada e realinhar rapidamente os preços, o que contribuiu para a recessão. A entrega da condução da economia aos ex-banqueiros tornados ministros da Fazenda Joaquim Levy, Henrique Meirelles e Paulo Guedes mostra uma continuidade de políticas favoráveis ao rentismo de 2015 até hoje e enfraquece a crítica daqueles que insistem em atribuir a responsabilidade pela situação atual da economia a um legado dos governos petistas. •
- Carlos Drummond é Editor da revista CartaCapital
9 de junho de 2019
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