A limpeza étnica da Palestina e os livros didáticos de Israel #NakbaDay
- Opinión
Meu livro Ideologia e propaganda na educação: a Palestina nos livros didáticos israelenses faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre o discurso escolar, tanto em seu registro oral quanto escrito. A investigação abarca o discurso em sala de aula e seus aspectos multiculturais ou racistas, a análise da escrita e da fala das crianças e o uso da linguagem cientifica nas ciências naturais e sociais. Uma das descobertas foi a de que os livros didáticos de ciências sociais se valem da linguagem científica para incutir percepções racistas, para apresentar opiniões como fatos e para ocultar a responsabilidade pelos crimes fundadores de Israel. O principal desses crimes fundadores é a Nakba ou a limpeza étnica da Palestina. As crianças israelenses são submetidas a narrativas preconceituosas que as preparam para enxergar seus vizinhos e concidadãos palestinos como problemas que, de uma maneira ou de outra, devem ser eliminados – e isso poucas décadas depois dos próprios judeus europeus terem sido tratados como o problema-a-ser-solucionado. Os estudantes são constantemente condicionados para enfrentar um novo Shoá, a ser cometido desta vez pelos seus vizinhos árabes, para não confiar em ninguém e a estar sempre prontos para lutar contra e oprimir seus vizinhos, bem como para legitimar essa opressão.
Esse tipo de educação, na minha avaliação, configura abuso infantil. Por isso, quis expô-la e apresentá-la pelo que ela é aos professores e aos pais. […]
*
As autoridades israelenses sempre proibiram o ensino da história palestina ou da Nakba, mesmo em escolas árabes1 – uma proibição que foi recentemente transformada em lei (a “Lei Nakba”), depois que a Nakba foi mencionada na versão árabe-israelense de Living Together in Israel (um livrinho de geografia e educação moral e cívica para o terceiro ano do setor árabe) em 2007, e após a decisão judicial da Suprema Corte permitindo que o movimento islâmico celebrasse a Nakba em Israel.2 A lei proíbe demonstrações públicas de luto no Dia da Independência de Israel ou qualquer manifestação de pesar pelo estabelecimento do Estado de Israel como Estado judeu. Como explica o Instituto para a Democracia de Israel, a “chamada ‘Lei Nakba’ pretende evitar a celebração pública da catástrofe – ou ‘nakba’, em árabe – que atingiu a população árabe durante a guerra árabe-israelense de 1948, quando se estabeleceu o Estado de Israel”.3
O projeto de lei, aprovado pelo Knesset em 23 de marco de 2011, autoriza o ministro das Finanças a “reduzir o orçamento de órgãos que recebam financiamento governamental, se permitirem que o Dia da Independência judaico-israelense e da fundação de Israel seja marcado por cerimonias de luto”.4 Evidentemente, aqueles que temem a celebração da “Shoah” palestina, como Eli Bar-Navi a denomina no livro didático The 20th Century5, compreendem que a necessidade de luto dos povos e nações, uma pratica tão enraizada na tradição judaica6, tem a ver com “reivindicações de identidade …, o desejo de promover o patriotismo e a necessidade de apagar a magoa da derrota e redimir uma causa perdida”.7 A “Lei Nakba” manifesta o temor predominante em Israel de que ensinar as crianças palestinas sua própria narrativa possa lhes dar motivo para magoa, e de que assim elas tentem “redimir” sua causa perdida8. O sentimento das autoridades israelenses, e especialmente dos responsáveis pela educação, e que admitir a Nakba conduzira a destruição de Israel enquanto Estado judeu e dará aos cidadãos palestinos um motivo para se rebelar9.
Essa política e típica dos regimes etnocráticos: eles constroem narrativas históricas a respeito da etnonação dominante em que esta é a legitima proprietária do território, enquanto “a história, o lugar e as aspirações políticas do Outro são apresentadas como um fardo ameaçador que deve ser firmemente rejeitado”10.
Nos livros didáticos que analiso em Ideologia e propaganda na educação, os cidadãos palestinos de Israel não possuem parcelas relativas, nem parcela nenhuma, nos relatos que lhes dizem respeito. Eles estão praticamente ausentes dos textos, exceto como fenômeno negativo: um grupo primitivo que onera o desenvolvimento ou uma ameaça a segurança e a demografia11. Nos livros escolares de geografia, a tendência a apagar a vida palestina da cena israelense se expressa na omissão da fronteira internacional de Israel (Linha Verde), na representação da Cisjordania ocupada (renomeada Judeia e Samaria) como parte de Israel, apesar de nunca ter sido oficialmente anexada ao Estado, e na apresentação das colônias ilegais (como Ariel ou Alon Shvut) como equivalentes a Tel-Aviv ou Jerusalém, ao mesmo tempo que omitem cidades palestinas ou até mesmo cidades mistas do interior de Israel, como Acre ou Nazaré12. Assim, os livros didáticos israelenses materializam a observação de Pierre Nora segundo a qual “toda a dinâmica da nossa relação com o passado [e, no caso de Israel, com o presente] é moldada pelo jogo sutil entre o inacessível e o inexistente”13.
* Este texto é um excerto editado do livro Ideologia e propaganda na educação: a Palestina nos livros didáticos israelenses, de Nurit Peled-Elhanan (São Paulo, Boitempo, 2019).
Notas
1 Irene Nasser e Riad Nasser, “Textbooks as a Vehicle for Segregation and Domination: State Efforts to Shape Palestinian Israelis’ Identities as Citizens”, cit., p. 627-50.
2 “Israeli Textbooks to Drop ‘Nakba’”, BBC News, 22 jul. 2009.
3 Prof. Mordechai Kremnitzer e Roy Konfino, “Implications of the ‘Nakba Law’ on Israeli Democracy”, The Israel Democracy Institute, 22 jun. 2009.
4 Idem.
5 Eli Bar-Navi, The 20th Century: A History of the People of Israel in the Last Generations for Grades 10-12
6 A respeito da influencia do medo nas decisoes sociais e politicas de Israel, ver Daniel Bar-Tal e Rafi Nets-Zehngut, “Emotions in Conflict”, cit.
7 James V. Wertsch, Voices of Collective Remembering, cit., p. 31.
8 Um dos lamentos mais famosos, o que simboliza o exilio dos filhos de Israel, e: “Junto aos rios da Babilônia, ali nos sentamos e choramos, recordando Sião” (Salmos 137, 1). Nesse lamento também se encontra a frase: “Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que eu me esqueça da minha destra” (Salmos 137, 5).
9 O atual ministro da educação de Israel crê que permitir que os palestinos celebrem a Nakba seria a “falência moral” de Israel, e Zvulun Orlev, presidente do Comitê Educacional no Knesset, acredita que seria a ruína de Israel enquanto Estado judeu (Haaretz, 1º de maio 2008).
10 Oren Yiftachel, Ethnocracy, cit., p. 19.
11 Ver Nurit Peled-Elhanan, Ideologia e propaganda na educação: a Palestina nos livros didáticos israelenses, trad. Artur Renzo (São Paulo, Boitempo, 2019), capitulo 1.
12 Ver Nurit Peled-Elhanan, Ideologia e propaganda na educação: a Palestina nos livros didáticos israelenses, trad. Artur Renzo (São Paulo, Boitempo, 2019), capitulo 2.
13 Pierre Nora, “General Introduction: Between Memory and History”, cit., p. 12.
Nurit Peled-Elhanan é professora de linguagem da educação e semiótica social na Faculdade de Educação da Universidade Judaica de Jerusalém. Co-receptora, em 2001, do Prêmio Sakharov de Direitos Humanos e Liberdade de Pensamento, concedido pelo Parlamento Europeu, escreve sobre educação israelense e leciona regularmente na Europa e nos Estados Unidos sobre a ocupação israelense e seus efeitos tanto nos israelenses quanto nos palestinos. Militante pacifista, é membro do círculo Palestinian and Israeli Bereaved Parents for Peace [pais palestinos e israelenses em luto pela paz]. Seu livro mais importante é Ideologia e propaganda na educação: a Palestina nos livros didáticos israelenses (Boitempo, 2019).
15/05/2019
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