A verdade perseguida
- Opinión
Então, vamos aos fatos.
Durante a guerra do Iraque, um helicóptero americano alvejou um grupo de iraquianos, matando 11 adultos e três crianças.
Acionado pela imprensa, o departamento de Defesa dos EUA informou que se tratava de terroristas. Lamentou a morte das crianças mas, nada a fazer, elas não deviam estar num campo de batalha.
Em 2010, vídeo revelado pelo WikiLeaks mostrava a verdade: os alvejados eram civis, conversando pacificamente numa praça, não estavam no campo de batalha. E o mais grave: gravação mostrava os tripulantes americanos comentando alegremente os assassinatos que estavam praticando.
Em 2012, o WikiLeaks apresentou fotos de iraquianos suspeitos sendo submetidos a espancamentos e humilhações vergonhosas na prisão militar americana de Abu Ghraib.
Em 2015, WikiLeaks publicou milhares de documentos sigilosos provando que a NSA, Agência Nacional de Segurança dos EUA espionava chefes de Estado europeus, inclusive Merkel, da Alemanha e Macron, da França, tradicionais aliados de Washington.
Estes são apenas alguns exemplos das dezenas de graves violações das leis internacionais e dos direitos humanos revelados pelo WikiLeaks.
Esta organização tornou-se conhecida em 2010, quando, através de jornais como o Guardian e o New York Times, apresentou dezenas de milhares de documentos, vídeos e telegramas que mostravam repetidas transgressões, até mesmo crimes de guerra e atos de corrupção, praticados pelos serviços de segurança, exército e diplomacia americana nas guerras do Afeganistão e do Iraque.
Julian Assange fundou o WikiLeaks em 2007, com o objetivo de levar ao conhecimento do público fatos delituosos escondidos pelos governos das grandes potências, principalmente os EUA.
Quem mantém o WikiLeaks vivo são documentos e outros materiais enviados por cibernautas do mundo inteiro, em geral funcionários de entidades oficiais, revoltados com a gravidade dos fatos de que tomaram conhecimento no exercício do seu trabalho.
A revelação dessas verdades, abrigadas sob o manto do sigilo, causou o maior impacto em todo o mundo. Em diversas ocasiões, o governo americano se viu em dificuldades, tentando (e não conseguindo) amenizar o efeito dela.
Claro, que a simples existência do WikiLeaks representa um desconfortável risco para as grandes potências, acostumadas a fazerem seu jogo sujo tranquilamente, longe das vistas da opinião pública. Nos EUA, cujos serviços de diplomacia e de segurança foram os principais atingidos, o establishment local não ficou inativo.
Para ele, foi oportuna a investigação da procuradoria sueca de uma denúncia contra Assange de um crime, que teria praticado, quando visitou esse pais nórdico.
Estávamos em 20122, e o fundador do WikiLeaks, então em Londres, foi preso pela justiça britânica, que atendia a pedido de extradição formulado pela Suécia, a qual, convém notar, era governada por uma coalisão de direita, muito sensível aos interesses americanos.
O crime de que o acusavam seria ter mantido relações sexuais com duas moças, sem camisinha, o que na Suécia é considerado estupro.
Assange negou tudo e foi solto depois de pagar fiança. Acreditando estar sendo vítima de uma armação, refugiou-se sem demora na embaixada do Equador.
Temia que, sendo obrigado a viajar para a Suécia, o governo local o extraditasse para os EUA, onde constava haver um indiciamento já aprovado contra ele, por um júri secreto.
Apreensão aparentemente justificada, quando anos depois, uma das jovens denunciantes contou à outra, em um SMS (programa de conversas via internet), revelado pelo WikiLeaks: “Foi a polícia que me obrigou a fazer as acusações”. E, mais adiante: ”Eu não queria acusar Julian Assange de nada, mas a polícia estava empenhada em agarrá-lo.”
Assange passou 7 anos na embaixada do Equador, tratado com dignidade durante o governo esquerdista, de Rafael Correa.
Apesar do seu fundador estar afastado, o WikiLeaks não parou suas atividades, continuando a relatar fatos incômodos para figuras de relevo, governos e autoridades.
Enquanto isso, organizações de direitos humanos tentaram várias vezes encontrar uma saída com autoridades inglesas e suecas, que permitisse a Assange sair da embaixada sem correr o risco de extradição para os EUA.
Nada conseguiram.
Em fevereiro de 2016, um comitê especial das Nações Unidas decretou que Assange estava sendo arbitrariamente detido por autoridades do Reino Unido e da Suécia.
Em 2017, a procuradoria pública sueca anunciou que a investigação de Assange pela autoria de estupro fora arquivada.
Mas a justiça inglesa manteve ordem de prisão contra ele por ter faltado a audiência no processo de extradição, havia se refugiado na embaixada do Equador.
A estas alturas as coisas haviam mudado depois da eleição do novo presidente. Lançado pelo presidente Correa, Lenin Moreno, acabou rompendo com ele.
E fez mais: bandeou-se para a direita.
O asilo de Assange na embaixada tornou-se uma pedra no sapato presidencial.
Estando as finanças do Equador a perigo, Lenin Moreno pensou em recorrer ao FMI. Como os EUA tem voz ativa nesse organismo, agradar Trump seria um bom caminho.
The Trump achava-se em franca guerra contra a imprensa, qualificada por ele como inimigo dos EUA.
A prisão de Assange poderia assinalar o declínio e queda do WikiLeaks e de suas perigosas revelações. Além disso, estabeleceria um precedente, potencialmente restritivo de matérias jornalísticas com base em denúncias contra o governo republicano, vindas de delatores.
Em 2017, Mike Pompeo, então diretor da CIA, deixou clara as intenções agressivas do seu governo: “O WikiLeaks se comporta como um serviço de inteligência hostil e fala como um serviço de inteligência hostil.”
E o procurador-geral, Jeff Sessions, anunciou que prender Assange era prioridade.
Em março de 2018, o ataque oficial avançou: a corte de justiça do leste de Virginia acusou Assange de estar incurso na lei de fraudes em computação por ter conspirado com a denunciante Chelsea Manning para conseguir a senha de acesso a um computador oficial, com o objetivo de conseguir informações sigilosas que “poderiam ser usadas para ferir os EUA” durante o ano de 2010.
A pena seria de cinco anos de prisão.
Enquanto isso, o presidente equatoriano fez publicar diversas informações sobre seu inconformismo com a continuação do asilo, salientando que seus esforços para resolver o problema eram frustrados pela intransigência do hóspede.
Finalmente, neste mês de abril, Moreno acabou retirando o asilo diplomático de Assange, e a polícia inglesa o prendeu, atendendo a pedido de extradição feito pelos EUA.
Como explicou o The Intercept, edição de 11 de abril: “Ao indiciar Assange e exigir sua extradição, assegura-se que, uma vez cumprida sua pena de prisão por descumprimento de convocação judicial, ele será mantido em uma prisão no Reino Unido pelo prazo de um ano ou mais – tempo que o pedido de extradição feito pelos EUA, que Assange certamente contestará- levará para tramitar pelo Judiciário britânico.“
A meta, portanto é manter Assange preso por cinco anos (um na Inglaterra e quatro nos EUA). Findo esse prazo, ele não está livre de ser preso novamente, o que acabaria de vez com seu mito.
Enquanto ainda está em preparação um recurso de Assange contra a extradição, já se desenvolve uma campanha para desacreditá-lo.
Informações sobre o fundador do WikiLeaks aparecem nos meios de comunicação, pintando- como um narcisista, que descumpre as regras que um asilado deve respeitar.
Circulam pela mídia impressa, a Tv e o rádio notícias desprimorosas sobre Assange, sua falta de higiene, as paredes sujas de merda, seu gato delinquente, a grosseria, até misteriosas ações de espionagem que ele estaria praticando.
Numa campanha midiática profissionalmente orquestrada procura-se desviar a atenção da opinião pública para características negativas do cidadão Assange.
Bem mais do que isto está em jogo.
A prisão de Assange atinge o direito do povo conhecer os fatos em toda a sua inteireza, ainda que representem o lado podre da política e das instituições do Estado.
O governo Trump, encarnando o establishment do qual ele faz parte, age para que não se forme uma maré de opinião em favor do fundador do WikiLeaks.
Pronunciamentos de partidos e líderes políticos em favor de Assange, reforçados por passeatas e outras manifestações populares poderão virar o jogo nos tribunais ingleses, quando for julgado o último recurso contra a extradição para os EUA.
Aparentemente, o máximo que Julian Assange pode esperar é uma sentença de extradição para a Suécia.
Não é mais tão ruim quanto seria em 2012.
É provável que, agora governado por partidos de centro-esquerda, o país nórdico resistiria a eventuais pressões americanas, permitindo a permanência do contravertido jornalista.
Uma vez lá, mesmo tendo de se submeter àquele duvidoso processo de estupro, o fundador do WikiLeaks vai sobreviver.
E com ele sua notável obra.
- Luiz Eça formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo.
17 / 04 / 19
http://www.olharomundo.com.br/a-verdade-perseguida/
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