Será que os militares é que salvarão nossa política externa?

11/01/2019
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Há algo enigmático nas declarações sobre política externa. Por um lado, insiste-se no direito inalienável do Brasil de ter opinião própria sobre os assuntos internacionais, sem se curvar ao “politicamente correto” ou aos ditames dos órgãos multilaterais. É o nacionalismo à Trump, que exige liberdade total de ação em temas como clima, migração, comércio e, mesmo, paz e segurança.

 

Em uma palavra, um nacionalismo que consiste na rejeição das normas pactuadas internacionalmente.

 

Embora ninguém seja ingênuo a ponto de crer que tais pactos ocorrem isentos de pressões, eles, bem ou mal oferecem alguma garantia contra o exercício unilateral da força (seja militar, seja econômica). Nisso consistiria a “liberdade” defendida por elementos do atual governo, o “nacionalismo” que mereceu elogios de ninguém menos que Steve Bannon, o ideólogo mor do trumpismo.

 

Libertarmo-nos do “marxismo cultural”, que nos persegue desde a Revolução Francesa (sic), e nos reencontrarmos com a nossa verdadeira alma, aquela que herdamos de Afonso Henriques e Dom Sebastião e que nada deve ao componente negro e indígena/caboclo (não confundir com a figura idealizada do índio/cavaleiro medieval dos poetas românticos ou os fiéis servidores das missões jesuíticas), sem falar de migrantes mais ou menos voluntários que por aqui aportaram para trabalhar no campo ou nas fábricas.

 

Paradoxalmente, essa proclamada “liberdade” em relação às normas multilaterais é usada para promover a subserviência aos anseios e interesses, já não digo de Washington (onde, bem ou mal, há várias visões em disputa), mas do presidente norte-americano atual, síntese do autocrata moderno, cujos ímpetos misóginos, racistas e belicosos são apenas contidos pela maturidade das instituições do seu país.

 

Nessa linha, o Brasil anuncia, minimiza, e reitera a intenção de mudar a embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém, desafiando não só a opinião dos países árabes, mas a da própria comunidade internacional, corporificada em inúmeras resoluções da ONU, além de jogar por terra a possibilidade de uma solução pacífica para a espinhosa questão do Oriente Médio. Essa solução, com base em dois Estados, foi desenvolvida no “mapa do caminho” pelos próprios Estados Unidos, na era pré-Trump, juntamente com outras potências e a própria ONU e foi defendida por judeus esclarecidos, como o grande escritor recém-falecido, Amos Oz, a quem tive a honra e o prazer de conhecer pessoalmente.

 

O mesmo servilismo é demonstrado na retórica hostil ao nosso maior parceiro comercial, a China, cujo capitalismo maoísta seria a grande ameaça do nosso tempo. Isso, sem falar na atitude militante anti-Caracas no chamado Grupo de Lima, que exige mais sanções e mais pressões contra o governo Maduro. Diante dessa cruzada pseudodemocrática, altamente seletiva, vale recorrer ao mestre San Tiago Dantas, que, em plena Guerra Fria – na verdade pouco antes da crise dos mísseis –, defendeu corajosamente o princípio da não intervenção, não por concordar com o que praticava o governo cubano, mas pelo entendimento de que o respeito a princípios básicos como este (inscrito na Carta da ONU e em nossa Constituição) é também uma defesa contra possíveis ataques à nossa soberania.

 

Tudo se completaria com a oferta gratuita de uma base militar aos Estados Unidos, que, antes de ser desmentida, havia sido muito bem recebida pelo secretário de Estado Mike Pompeo, igualmente preocupado com o bolivarianismo e o avanço chinês na América Latina. O recuo é naturalmente bem-vindo e provavelmente reflete o sentimento prevalecente nas altas esferas militares. Mas, com tantos vaivéns nas declarações, quem pode garantir que a oferta não volte a ser feita em um momento de maior aproximação ou quando o governo for confrontado com uma demanda específica?

 

Como ministro das Relações Exteriores, acompanhei de perto a elaboração da Estratégia Nacional de Defesa. Já como titular da Pasta da Defesa, coordenei sua revisão, bem como a confecção da Política Nacional de Defesa (que fundamenta a Estratégia) e o Livro Branco da Defesa Nacional durante o ano de 2012. Esses três documentos, elaborados com a intensa cooperação de elementos das nossas Forças Armadas, foram aprovados pelo Congresso Nacional por decreto legislativo. Moral e politicamente, se não juridicamente, têm força de lei.

 

Nada do que está neles escrito sugere que o Brasil deva abrir seu território a bases militares estrangeiras. Ao contrário, o conceito central da Estratégia é a dissuasão às ameaças externas, complementado pela ideia de cooperação com nossos vizinhos sul-americanos e africanos. A Estratégia refere-se, aliás, explicitamente à integração da América do Sul, tema abandonado pela atual administração.

 

Como os militares, muitos deles em postos influentes de natureza civil, estarão vendo essa atitude de “subalternidade estratégica” ou “alinhamento automático”, que, entre outras coisas, expõe nosso território a conflitos que não são nossos? Como conciliar o nacionalismo defendido com ardor, pelo menos de Geisel para cá, com uma postura subserviente aos interesses econômico-comerciais de Washington, explicitados com brutal franqueza pelo secretário de Estado norte-americano, em recente entrevista dada a um jornal brasileiro?

 

Curiosamente, mesmo discordando de alguns aspectos, sobretudo, em temas econômicos, há que se reconhecer que o setor onde parece residir mais bom senso, em matéria internacional, é justamente o militar. Assim seja.

 

11 de janeiro de 2019

https://www.cartacapital.com.br/opiniao/sera-que-os-militares-e-que-salvarao-nossa-politica-externa/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/197503?language=es
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