O tempo e o espaço da reforma agrária
- Opinión
Ainda que não se tenha produzido um balanço sobre o programa de reforma agrária que dialogue com as expectativas de movimentos sociais, estudiosos comprometidos com a superação das desigualdades, cotejando com as possibilidades vividas durante os governos Lula e Dilma, é impossível calar-se frente a uma deturpação grosseira acerca da ação governamental, seja nos temas da quantidade, da qualidade, bem como o fetichismo sobre questões como a titulação, como fez o ex-Presidente do Incra, Xico Graziano (1).
Em primeiro lugar é fundamental constatar que, ao contrário do discurso fascista em vigor, as reivindicações sociais por reforma agrária em nada prejudicaram a expansão do agronegócio no Brasil. E os resultados em quantidade, esforço, dedicação para transformar 53 milhões de hectares em áreas reformadas nas diferentes formas de atuação entre 2003 a 2015 comprovam isso, a destacar que o maior saldo da balança comercial do agronegócio já verificada foi no ano de 2013 (2).
A formação de um assentamento tem o seu tempo e sua dinâmica. É uma verdadeira fraude comparar a conversão de áreas em lavouras com a instalação de uma comunidade rural começando do zero. Quem é do ramo conhece, mesmo que tenha passado brevemente: sobre espaço, temos a instalação de uma comunidade, e áreas destinadas para casas, estradas, proteção ambiental, e áreas para cultivos e e criações. Sobre o tempo que leva para que uma comunidade se instale, seja acolhida pela realidade que a cerca e se desenvolva envolvem até gerações, como ocorreu nas primeiras colônias no Sul do Brasil, no Centro-Oeste ou na Amazônia.
Debater a qualidade dos assentamentos sem analisar os tempos da maturação de um projeto é somente agradar quem vive da concentração da riqueza, o maior dos problemas do mundo. Existem sim dados para analisar as condições dos assentamentos, e o quanto se diferem para melhor ou para pior da localidade em que estão instalados. Há uma base de dados pública disponível no próprio Incra que aponta o que foi feito, seja pela atuação direta ou articulada com Estados e municípios, permitindo verificar assentamento por assentamento, suas disponibilidades e carências. Trabalhos dirigidos aos assentamentos junto ao Censo Agropecuário de 2006 já demonstravam que a renda bruta das famílias assentadas se equivaliam na maioria das regiões ao comportamento médio da agricultura familiar, diferenciando-se em relação ao tempo de instalação dos projetos (3); quanto mais jovem o projeto, obviamente maior a dependência de rendas que não sejam a do trabalho no próprio lote.
O fetichismo da titulação é outro tema que via de regra aparece como salvação da lavoura. Fui testemunha e não vi nenhum comportamento “fascista de esquerda” no debate que levou a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei 13.001/14 que, entre os dispositivos, trazia a atualização da regularização fundiária dentro de assentamentos. O debate nunca é simples, pois se equilibram temas como o reconhecimento do direito da família assentada em diferentes formas de dominialidade, seja individual ou coletiva, na forma de propriedade privada ou concessão de direito real de uso. Introduz-se no debate sim o tema da reconcentração, para que as áreas reformadas não se tornem novos latifúndios, e mecanismos jurídicos foram aprovados pelo Congresso Nacional com essa finalidade.
Mas o que não é possível aceitar que problemas ligados ao conjunto do rural brasileiro sejam apontados como única e exclusivamente questão dos assentamentos. O grau de informalidade nos arrendamentos e parcerias de terra no Brasil é um exemplo típico, evidenciado desde que o Estatuto da Terra previu um cadastro que nunca foi efetivado. Portanto, tratar de temas que afligem o conjunto das propriedades rurais como apenas ligados aos assentamentos, demonstra desconhecimento ou má-fé.
Ainda sobre a titulação, o instrumento deve ser encarado como fim de um ciclo, e início de uma nova trajetória na vida de cada família, e do projeto como um todo. Mais uma vez as generalizações não contribuem para o debate, pois se a busca é por emancipação, a titulação deve sim ser acompanhada por instrumentos e políticas que favoreçam a emancipação e autonomia dos novos proprietários. Senão o sonho vira pesadelo, como tem acontecido com milhares de proprietários rurais, que não conseguem gerar renda suficiente para remunerar a própria terra, fruto do estrangulamento nos custos de produção e da precificação especulativa da terra. Emancipação e autonomia são objetivos, e não podem ser tratados como fetiche ou panaceia para todas as questões da reforma agrária. Liquidez monetária não é sinônimo de riqueza e autonomia, assim como ausência de ostentação não significa miséria.
Querer perseguir as famílias assentadas será um rotundo “tiro no pé”, pois se algo ficou como aprendizado sobre a reforma agrária em execução no período democrático, é que a ação agrária combinada com a valorização da agricultura familiar conseguem garantir a diversidade, circuitos de renda na dinâmica local, cultura, proteção ambiental (4). É possível sim uma agenda de coexistência com os enclaves exportadores que geram riqueza, mas que não a fazem circular nos locais de origem, e provocam mais concentração e exclusão. Caberá aos responsáveis pela reforma agrária ter lucidez para cumprir a Constituição de 1988 e não transformar quem pensa e age diferente em inimigo.
Notas
(2) “Superavit de US$ 81,86 bilhões do agronegócio foi o segundo maior ….” 16 jan. 2018, http://www.agricultura.gov.br/noticias/superavit-de-us-81-86-bilhoes-do-agronegocio-foi-o-segundo-maior-da-historia Acessado em 22 nov. 2018.
(3) MARQUES, Vicente PM; DEL GROSSI, Mauro Eduardo; FRANÇA, Caio Galvão. O censo 2006 e a reforma agrária: aspectos metodológicos e primeiros resultados. 2012.
(4) “IPAM Amazônia – | “Desmatamento nos Assentamentos da Amazônia ….”. http://ipam.org.br/bibliotecas/desmatamento-nos-assentamentos-da-amazonia-historico-tendencias-e-oportunidades. Acessado em 22 nov. 2018.
- Carlos Guedes de Guedes é analista em reforma e desenvolvimento agrário do Incra, presidente do Incra entre 2012 e março de 2015.
dezembro 4, 2018
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