Sherwood Anderson mandou um recado para Haddad
- Opinión
A incrível insolência de William Bonner na entrevista contra Fernando Haddad, na sexta-feira (14), excedeu a sordidez de todas as demais entrevistas que este jornalista global comandou ao longo da sua vida profissional. As perguntas, na verdade, eram verdadeiras teses sobre a corrupção da política e do PT, sobre a necessidade do PT fazer autocrítica como se a sua empresa de comunicação – concessão pública – nada tivesse a ver com o que está acontecendo no país e sobre a ingovernabilidade fatal da nação. Nenhuma pergunta sobre como um “Governo Haddad” enfrentaria a violência fascista emergente no Brasil, sobre a necessidade de combater as desigualdades sociais e o desemprego, ou mesmo sobre as responsabilidades e as consequências da interrupção golpista de um mandato legítimo – como o da Presidente Dilma – que jogou o país no beco estreito da indeterminação política e do ódio de classe.
Não foi uma entrevista com Haddad, mas uma oportunidade da Globo entrevistar-se, fazendo um longo “editorial” de perguntas argumentativas com mais de quarenta interrupções “contra” um suposto entrevistado, que aproveitou a oportunidade para demonstrar – em algumas das suas respostas – que era um sujeito preparado, um camarada sério que concorre à Presidência, que tem o que dizer. E que entende dos assuntos a que se reporta, mesmo pressionado em todos os quadrantes por um bem treinado político neoliberal anti-esquerda. Porque – perdoem-me os jornalistas que ainda tratam Bonner predominantemente como jornalista – ele é um quadro político treinado para navegar nas águas turvas do golpismo, sem medo de ser infeliz, como Moro navega nas águas da exceção sem medo de ser punido.
Penso que Bonner é um político competente. E deve ser, pela forma respeitosa e temerosa que alguns personagens lhe tratam, certamente porque tem como suporte o Comitê Político mais importante do país, há décadas: o núcleo dirigente da Rede Globo. Este é o Birô Executivo da impostura neoliberal no país, que conseguiu, aqui, esvaziar a força normativa da Constituição, convencer que os mínimos gastos sociais que combatiam a pobreza são responsáveis pela crise (não o sugamento do “rentismo” sem trabalho), e que sobretudo tributou ao estatismo e a “esquerda”, em geral, a corrupção sistemática, omitindo a corrupção endêmica e histórica que sempre caracterizou as elites dirigentes do país, por décadas e décadas.
Faulkner conta que no início da sua brilhante carreira como escritor queria uma recomendação ao editor de Sherwood Anderson, seu dileto companheiro de bebedeiras, para publicar um livro. Todavia, o primeiro contato – no qual pretendia abordar o assunto com Anderson – não fora edificante. E lhe tirara a coragem para solicitar uma carta ao editor. É que ambos que frequentemente bebiam juntos, já não se viam há três semanas, pois Faulkner não “aparecia”, o que suscitou do velho escritor a pergunta se Faulkner estava “zangado”. Naquele momento Faulkner, então, teria dito: “Não! é que estou escrevendo um livro”. Ao que Anderson, perplexo, então respondera: “Meu Deus!”. A Sra. Anderson, mais tarde perguntaria a Faulkner, “como ia o livro?”, quando é informada que aliás já estava pronto. A Sra. Anderson faz, então, a seguinte afirmativa: “Sherwood diz que fará um trato com você. Se ele não tiver que ler o manuscrito, dirá ao seu editor para aceitá-lo”. Faulkner aceita e seu primeiro livro “Soldier’s Pay” é então publicado.
Desculpem-me, se já citei esta estória em alguma outra crônica, mas ela pode ser repetida à exaustão. Ela é uma brilhante parábola sobre a liberdade de imprensa. Quando algum conhecido ou amigo me pergunta se um verdadeiro governo democrático não deveria cassar a concessão da Globo, sempre lembro esta fala afetiva e corajosa da Sra. Anderson. E digo que não. O que deveríamos ter, na verdade -respondo – seria uma pluralidade de redes de alta qualidade e uma rede pública também de alta qualidade e de reconhecida neutralidade: muitas vozes de todas as posições, para que não pudessem, num futuro – quem sabe não muito remoto – nos obrigarem “fascistamente” a somente ver somente a Globo.
Sim, porque ela já é praticamente um elemento chave do Estado “ampliado” que nos domina e informa. Faz a pauta política do país, seleciona réus e condenados, odeia e ama segundo as suas conveniências e conduz a formação opinião de maneira autoritária e seletiva. Haddad foi maior que a Globo que ali -naquele momento final- foi representada pelo Bonner. Este, irado e perplexo perante o sobrevivente digno que bloqueou o seu fuzilamento político, irá para o lixo da História. E Haddad, provavelmente, irá para o segundo turno ou para a galeria dos grandes políticos do país, como Ciro e Boulos, que não conciliaram um só minuto com o ódio fascista e a miséria política e moral da informação manipulada.
- Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
setembro 17, 2018
https://www.sul21.com.br/colunas/tarso-genro/2018/09/sherwood-anderson-mandou-um-recado-para-haddad/
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