Os canis da civilização e a crueldade dos poderosos
- Opinión
A desordem mundial planteada pela globalização neoliberal protecionista mostrou na última semana dois de seus sintomas de crueldade, pondo em evidência a maior crise humanitária desde a II Guerra Mundial. Segundo Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), existem na atualidade 65 milhões de deslocados pelas guerras, invasões militares, pela fome, pela desertificação e pelos conflitos étnico-religiosos, registro que parece não incomodar as grandes potências, ainda que se disponham a realizar conferências internacionais para abordar essas tragédias, mas sem mostrar resultados aceitáveis, e muito menos ações para solucionar os problemas.
Em 2015, as publicações do mundo replicaram a foto de Aylan Kurdi, o menino sírio de três anos falecido numa praia turca. Aylan vivia em Kobane, uma cidade no norte da Síria onde o denominado Estado Islâmico enfrentava os combatentes curdos. Devido aos perigos dos bombardeios e perseguições, a família de Aylan decidiu escapar. Esta semana, Yanele Dennisse Varela Sánchez, uma menina hondurenha de três anos, foi fotografada e videogravada enquanto sua mãe era presa ao tentar entrar nos Estados Unidos, no Texas.
A desordem mundial imperante nos apresenta lúgubres fotos que sintetizam uma descomunal tragédia da qual os países desenvolvidos são duplamente responsáveis: por um lado, por participar de muitos dos conflitos que provocam os grandes deslocamentos populacionais. E por outro ao não assumir que um mundo crescentemente desigual provoca conflitos, resistências, migrações e ressentimentos sociais explosivos.
As migrações só vão ser reduzidas através de uma lógica de paz, de cooperação, de redução dos conflitos e dos programas de desenvolvimento. Os países que geram essas migrações são aqueles nos quais o que mais circula são as armas, em conivência com empresas extrativas dispostas a esvaziar a terra (com eficiência e rapidez) de qualquer riqueza útil.
Existem três grandes “focos” de expulsão de habitantes no mundo, e nos três se observam com claridade a participação dos países mais desenvolvidos: na fronteira norte da América Latina há um conflito armado entre vários exércitos privados, ligados a empresários do narcotráfico, que se associam com vendedores de armas. Estes últimos – radicados nos Estados Unidos e protegidos pela Associação do Rifle – oferecem o aparato bélico em troca das drogas. Em fevereiro deste ano, o jornal The New York Times informou que 213 milhões de armas “migraram” dos Estados Unidos à sua fronteira do sul do país no último ano, permitindo a continuidade da sangrenta pandemia criminosa que assola o país vizinho. Em 2017, se registraram 30 mil homicídios no México, alcançando uma das médias mais altas de assassinatos por quantidade de habitantes em toda a região.
O segundo foco de onde tentam escapar centenas de milhares de pessoas é o norte da África. Provêm de países subsaarianos e daqueles que – como no caso da Líbia – tiveram suas redes estatais reduzidas à inexistência, após os bombardeios e invasões militares “humanitárias” provocadas pelos Estados Unidos e seus aliados europeus, a partir da chamada “primavera árabe”. Além disso, houve guerras civis no Sudão e na Somália, marcadas pela lógica fundamentalista cuja origem inicial foi o financiamento dado pelo Ocidente para conter processos políticos nacionalistas, laicos e progressistas. Grande parte do resultado destas intervenções “civilizatórias” geraram a implosão de diversos Estados nacionais, sua conseguinte fragmentação territorial e de suas capacidades governamentais (em dissolução), além do fluxo de armas distribuídas entre os grupos participantes das disputas.
O terceiro foco é o asiático. Se concentra ao redor das guerras da Síria, do Iêmen, do Afeganistão e do conflito consistente na perseguição dos muçulmanos em Myanmar contra os Rohingya. Nos três primeiros casos, existiram intervenções militares diretas de Washington, orientadas a destruir seus oponentes geopolíticos, elevando os níveis de conflito e – na imensa maioria dos casos – provocando maiores dificuldades que as que (propagandisticamente) se pretendiam evitar.
Migração e guerra
Em meio a este conflito global, os meios hegemônicos de comunicação mostram habitualmente as reiteradas tragédias migratórias nas fronteiras dos países desenvolvidos. Paralelamente, se mostra a estes últimos como “vítimas” destas “desordens populacionais”, sem fazer menção às várias causas que contribuíram ao seu desenvolvimento. Não se fazem menção a que 85% dos refugiados de todo o mundo sobrevivem em países não desenvolvidos: Turquia, Paquistão, Uganda, Líbano e até a Venezuela são alguns dos países que mais vem dando abrigo aos deslocados pelas guerras, geralmente próximas às suas fronteiras. Uns dos casos menos conhecidos é o que se refere à República Bolivariana, que mesmo enfrentando uma profunda crise econômica (causada pelo bloqueio comercial e financeiro dos Estados Unidos) já deu asilo a 200 mil colombianos que fugiram da guerra civil do país no país nos últimos 50 anos, segundo a ACNUR.
Bogotá assinou um convênio com Washington em 1999, o mesmo ano em que Hugo Chávez chegou ao poder eleitoralmente. Um dos pontos desse acordo consistia em reduzir as plantações de coca e ao mesmo tempo mitigar a pressão paramilitar sobre as populações em risco. Quase 20 anos depois dos compromissos assumidos pelo então presidente Andrés Pastrana – e a sugestiva ampliação das bases do Comando Sul dentro do seu território – a extensão total dos cultivos de coca cresceu 52% só no último biênio, multiplicando também a quantidade de população camponesa que migrou.
Os conflitos bélicos e as invasões – lideradas por países desenvolvidos – não só foram utilizados para comercializar armas e implantar governos títeres, como também foram a justificativa para autorizar a entrada de corporações de segurança privada (verdadeiros exércitos de mercenários) que absorvem parte dos recursos desses governos e que, ao mesmo tempo, são sua guarda pretoriana, e a garantia da entrada das corporações multinacionais, ávidas de extrair a maior quantidade de recurso naturais no menor tempo possível.
O outro benefício dos processos migratórios (hoje silenciado pelos países desenvolvidos) tem sido a capacidade de regular o valor da força de trabalho através dos migrantes. Os turcos na Alemanha e os mexicanos nos Estados Unidos ocuparam muitos postos de trabalho durante as últimas cinco décadas, por salários menores aos demandados pelos nativos desses países, fazendo com que o valor da força de trabalho seja nivelado por baixo, e contribuindo com melhores níveis de rentabilidade dos empresários.
Os canis do Texas
Segundo o último censo do país das listras e das estrelas, a população que denominam (com evidente desprezo) como “hispana”, chegou a 57,5 milhões de habitantes em 2016, cerca de 17% da população total. Entre eles, 37 milhões são estadunidenses de nascimento, embora uma imensa porção continue portando status de ilegal. Essa realidade os torna cidadãos carentes de direitos, que não podem votar e sem acesso ao seguro de saúde. Por sua parte, aqueles hispanos que possuem identidade registrada carregam o complexo de cidadão de segunda categoria em comparação com os WASP (sigla de white anglo saxon protenstants, os brancos protestantes descendentes dos anglo-saxões), que atribuem a si a identidade legítima, primordial e fundadora da nacionalidade estadunidense.
Esta escassez de empoderamento dos hispanos é o que explica – segundo as investigações mais recentes – a desmotivação que os leva a não se inscrever nos registros eleitorais. Quase 9 milhões deles são cidadãos elegíveis (com direito a votar e serem votados) que poderiam exercer seus direitos políticos.
Além disso, duas terças partes dos hispanos se encontram em situação precária, seja porque são ilegais, possuem residências temporárias ou porque sentem que trairiam as suas origens se assumissem outra nacionalidade. Por último, ainda prevalecem os sutis mecanismos dispostos a mantê-los afastados de toda e qualquer associatividade capaz de plantear reivindicações. Dessa forma, os empresários contam com mão de obra barata e ao mesmo tempo disciplinada (e não sindicalizada), claramente incapacitada de defender seus direitos coletivos.
Há cerca de cinco anos, a quantidade de pedidos de asilo e o êxodo proveniente das árias em conflito vem se incrementando. Segundo os cálculos da ACNUR, a cada minuto 31 pessoas abandonam seus lugares de residência para escapar de matanças, guerras civis, bombardeios contra a população civil ou deslocamentos forçados. Um total de 26 milhões de cidadãos do mundo têm status de refugiados e 10% deles são latino-americanos, que também são expulsos de suas terras por grandes fazendeiros que buscam estender os seus cultivos.
Jaulas e balsas
Donald Trump assinou no dia 20 de junho uma ordem executiva que extingue o protocolo de separação de menores migrantes de seus adultos acompanhantes, mas advertiu que seguirá com sua tolerância zero com aqueles que tentam entrar no território estadunidense. A imensa maioria dos que arriscam suas vidas para cruzar a fronteira sul estadunidense procedem das Antilhas, da América Central, da Colômbia e do México. Em todos esses países, o narcotráfico, as forças paramilitares a seu serviço e a grande presença de armas norte-americanas são os fatores que fazem com que, nos últimos anos, milhões de pessoas busquem outros lugares para ter seus empregos e dar educação aos seus filhos.
Um dos objetivos de Trump ao impor sua campanha anti imigratória é (segundo os parlamentares democratas) uma forma de extorsão para conceder a ele poderes especiais para reduzir o asilo e outorgar, através do Congresso, a faculdade para dispor dos 25 bilhões de dólares necessários na construção de sua maior promessa de campanha: o muro fronteiriço, que ele originalmente exigiu que fosse financiado pelo México. Este é o cenário que levou um dos países mais poderosos e ricos do mundo a manter cerca de 2 mil crianças presas em jaulas – chamadas pelos guardas fronteiriços de “canis” –, separadas dos seus familiares adultos, até a semana passada.
Simultaneamente, no Mediterrâneo, o navio Aquarius chegou ao porto de Valência, na Espanha com 629 migrantes a bordo, depois de ser rejeitado pelo principado de Malta e pelo novo governo italiano, comandando pela Liga Norte, um dos partidos de direita que agitam a bandeira da crise econômica como mecanismo para instaurar campanhas xenófobas. O último capítulo de sua propaganda racista foi divulgado na última quinta-feira (21/6) pelo próprio líder dessa formação política, Matteo Silvani (também ministro do interior), quem propôs um censo da população cigana radicada na península, com o objetivo de detectar aqueles que devem ser expulsos.
Esta também é a postura dos governos húngaro e austríaco, que propõem instalar forças armadas de ocupação no norte da África para impedir que as balsas e navios se lancem ao Mediterrâneo. As crônicas trágicas aumentaram nos 6 meses de 2018, chegando a um total de 771 pessoas falecidas. A primeira semana de junho teve 68 pessoas resgatadas numa balsa à deriva na costa da Tunísia. Ademais foram achados 52 cadáveres e outras 60 pessoas permanecem desaparecidas.
Em 13 de maio de 1939, o navio Saint Louis zarpou de Hamburgo levando 930 refugiados judeus (a maioria alemães) que escapavam da perseguição nazi, buscando asilo. Chegaram a Cuba e foram rechaçados por pressões do Departamento de Estado estadunidense que exigiu que não fossem aceitos. Na Flórida aconteceu a mesma coisa. Logo tentaram o Canadá, e o fracasso se repetiu. Tiveram que voltar à Europa. Grande parte dos seus passageiros foram enviados aos campos de extermínio.
A civilização ocidental costuma catalogar como “barbárie” tudo aquilo que lhe é alheio. Talvez seja a causa pela qual Trump decidiu abandonar o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas na última semana. O umbigo da civilização ocidental parece estar mais sujo do que aquilo que os seus próprios portadores conseguem perceber. O que não se pode por jaulas é transformado em perigoso ou invisível.
A mesma motivação racista nega a conformação multiétnica da Argentina, como foi explicado por Mauricio Macri, ao descrever seu imaginário país como composto por exclusivamente por “descendentes de europeus”.
Há uma infinidade de fotos penduradas nas paredes da História, mas nestes dias só se podem ver aquelas que mostram a morte e as lágrimas. A primeira, acompanhando as ondas que molham o corpinho ainda tíbio de Aylan Kurdi. As segundas, arrasadas pelas lágrimas de Yanele Dennisse Varela Sánchez, que atravessam a consciência do mundo como um punhal. As paredes onde essas fotos estão penduradas são as da pretendida civilização, e estão cada vez mais descascadas.
- Jorge Elbaum é sociólogo, doutor em Ciências Econômicas e analista sênior do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)
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