O golpe restitui o heteropatriarcado branco racista colonial burguês
- Opinión
Analisar a atual conjuntura brasileira para mim exige reconhecimento e valorização efetivos de dimensões que temos desprezado, tanto na teoria quanto na prática políticas, incluindo os meios acadêmicos desse país (mesmo intelectuais orgânicos, ligados às esquerdas brasileiras). Nenhuma explicação daquilo que estamos vivendo estará completa e justa enquanto esse silenciamento não for, afinal, desvelado. A analítica conjuntural construída neste breve texto tenta fazer justiça a elementos estruturadores do golpe de 2016 contra a nossa precária democracia e que ganhou um contorno indisputável agora com a perseguição e prisão ilegítimas de Lula.
Ponto de partida: o patriarcalismo, o racismo, o etnocídio e a LGBTfobia estruturam, visceralmente, tanto a sociedade quanto o Estado neste país e são ingredientes centrais (e não secundários) da ruptura democrática que estamos experimentando. No meu entendimento, inclusive, o golpe vem/veio precedido de ruptura social que continuamos a não querer enxergar. E assim continuamos a banalizar, a naturalizar. Nossas elites não são apenas elites econômicas e as nossas lutas não são apenas de classe: são fundamentalmente elites masculinas, brancas racistas, etnocidas (e angloeurocentradas) que odeiam as mulheres, os pobres e qualquer espécie de normatividade não heterocentrada. Cada um desses ingredientes compõe o caldeirão odiento que ocupou a esfera pública brasileira (mas, na verdade, já ocupava, pelo seu tradicional modus operandi na forma da violência, as nossas vidas privadas): ódio às mulheres empoderadas, ódio a negros, negras e indígenas insubmissos, ódio aos pobres não passivos, ódio aos gays/lésbicas/trans/travestis mobilizados.
A ruptura democrática esteve muito antes no tecido social brasileiro, este que estava a passos lentíssimos começando a ser transformado pela coragem de pessoas em governos de centro-esquerda, mesmo alinhados e em coalizão às forças da opressão colonial brasileira. A ruptura social se tornou política e de Estado, ruptura do Estado democrático de direito, institucional (rasgando-se a Constituição e instaurando governo de exceção), quando os interesses hegemônicos do capital financeiro internacional perceberam e diagnosticaram os riscos da mudança estrutural em seus atávicos modelos de manutenção da colonialidade do poder/saber/ser. Mulheres no poder? Gays e lésbicas com direitos? Indígenas e quilombolas se escolarizando? Negros(as) com ensino superior e podendo viajar de avião ou comprar automóveis? Indígenas e quilombolas proprietários de terra? Não.
É preciso dizer abertamente que a recente ruptura democrática se organizou também através de processos de violência intensificada e expandida contra contingentes monumentais de nossa população, que já estavam, em parte, organizados para transformar a condição de opressão colonial. Antes de haver ruptura do modelo e regime político, houve (e há) ruptura profunda do tecido social, esgarçado pela prática cotidiana da discriminação, opressão, violência e extermínio de parcela significativa e específica da nossa população. Havia ainda movimentos consistentes (ainda que tímidos) de uso da institucionalidade estatal para a reversão desse quadro trans-histórico das opressões estruturais. E foi aí que a gota que faltava, de fato, transbordou do copo: quando o que “não é espelho” esteve à frente da máquina pública (incluindo o operário nordestino e a mulher petista). Acenderam-se os alertas e o golpe passou ao ato.
A luta de classes não explica por que Dilma Rousseff foi impedida com tanta rapidez e mediada por intensa violência sexista. A luta de classes não explica completamente a intensificação recente do etnocídio brasileiro. A luta de classes não explica totalmente a execução política de Marielle Franco. A luta de classes não explica a posição vergonhosa ocupada pelo Brasil no genocídio de jovens negros ou da nossa população LBGT. Todos esses outros ódios (e o ódio de classe) são heranças coloniais introjetadas que ensaiamos timidamente os primeiros esforços de reversão. São heranças advindas de um processo que não foi apenas de “modernização incompleta”, mas sim de modernidade/colonialidade bem encaixada no jogo global do rentismo financeiro, que criou as diferenças como outras(os) odiadas(os) e pretendeu que esses segmentos permanecessem assim: odiados, silenciados e passivos.
Não é possível uma analítica explicativa do que estamos vivendo recorrendo exclusivamente às vicissitudes da nossa precária institucionalidade democrática. O que estamos vivendo extrapola as nossas instituições políticas e se inscreve na carne e nos afetos intestinos de nosso tecido social desde o Brasil colonial: a nossa ruptura democrática tem sexo, cor, carne, afetos, orientação sexual, gênero, etnia. E uma analítica que desconheça isso é novamente um falseamento explicativo e uma nova camada de violência epistêmica. Assim, resgatar a ideia de que a democracia brasileira convive/conviveu (historicamente) com dimensões institucionais de contrademocracia vividas a partir de dentro da construção da institucionalidade política, sem finalmente compreender que cada uma das nossas instituições políticas (família, escola, grupos, associações, conselhos, partidos, movimentos, ONGs, poderes estatais etc.) é, de fato, patriarcal, racista, etnocida e LGBTfóbica, é compactuar novamente com o regime atávico das opressões coloniais e estruturais do Brasil.
A disputa de classes que está encenada no golpe de 2016 no Brasil só faz sentido analítico quando se compreende, interseccionalmente, carnalmente, étnico-racialmente, gendradamente, que as primeiras disputas se deram na política institucional contra o machismo, o racismo, o etnocídio e a LGBTfobia (institucionalizados) na vida social, no Estado e no mercado neste país. O golpe se materializa quando uma mulher na Presidência da República diz não. E esse não foi a gota faltante de insuportável.
Se os motivos que levaram ao fim do regime autoritário militar, implantado nos anos 1960 no Brasil, são, ainda hoje, fruto de um debate contencioso, não será diferente com esse novo ciclo autoritário brasileiro. Avritzer (2002), por exemplo, ao tratar desse processo, enfatizou duas grandes teses explicativas para a compreensão das transições democráticas na região latino-americana. A primeira delas tem por base explicações vinculadas ao elitismo democrático: o advento e a pressão de novo arranjo institucional global, objetivando o retorno à competição política entre atores(as) diversos nos países, com a característica comum de serem estes representantes renovadores das nossas elites locais. Estamos observando agora o fechamento desse ciclo: novo arranjo global quer recuperar espaço e poder que consideram “perdidos”, rearticulando nova fase de colonialismo predatório. A outra chave de explicação dá destaque à atuação protagonista dos movimentos sociais que teriam atuado para a criação de ambiente propício ao retorno da democracia. Essa chave coloca parte significativa do peso explicativo da redemocratização na atuação dos grupos organizados na sociedade civil (Alvarez, 2000; Jaquette, 1994). Teriam sido estes que, visando a refundação democrática, construíram o ambiente político das forças necessárias para a constituição e afirmação de novas esferas públicas alternativas, tensionando nossas estruturas políticas pregressas, inclusive as estatais. E agora também não será diferente. O que se nomeia irritantemente como “divisão” das esquerdas é, na verdade, o seu maior potencial democratizador: as “políticas identitaristas/identitárias” (como alguns querem nomear pejorativamente) são a construção e estabilização (ainda precárias por certo) do campo crítico emancipatório das diferenças (Matos, 2010, 2016). Esse é o principal espaço público e político de onde poderá advir a retomada democrática no país. Nenhuma outra institucionalidade política tem, hoje, o poder de recuperar do ódio e passividade nossas massas populacionais.
Mas as interpretações sobre o golpe atual nunca atribuem efetivo sentido e valor às dinâmicas políticas recentes de reversão estruturais das nossas opressões e, mesmo agora, golpe concretizado e seguindo, só conseguem enxergar diante de si a famigerada luta de classes. Não enxergam a potência criativa e renovadora das lutas feministas, antirracistas, contra o etnocídio e a favor dos direitos para LGBTs. Não conseguem vislumbrá-las como potências de/em transformação, mas só como elementos de divisionismo. Estão equivocadas essas interpretações.
Não foram apenas as dinâmicas de classes que ameaçaram “os senhores da casa-grande”, que sempre expurgaram do palco político as forças estruturais emancipatórias de gênero, raça, etnia e sexualidade. A classe do privilégio instrumentaliza a converter capital econômico em mais ódio contra as diferenças e os(as) diferentes, e os meios de persuasão de massa, a exemplo da Rede Globo, têm cumprido eficazmente seu papel de lacaio do ódio, fomentando mais violência.
A repressão militar violenta hoje bate novamente à nossa porta. Mas frequentemente esquecemos de dizer que a militarização da vida sempre foi rotina para pobres, pretas(os), LGTBs, indígenas, mulheres. Mas não é incomum que as atuais análises sobre o golpe também se “esqueçam” de mencionar (ou, quando o fazem, essas dimensões são novamente secundarizadas pelos embates classistas) que a repressão de agora está focada no coroamento e manutenção da sociedade hierárquica e profundamente desigual em dimensões interseccionais cruciais. Isso vai muito além da instabilidade econômica crônica que sempre ameaçou a nossa população civil. Mas esses intérpretes ainda não conhecem nem consideram a potência das forças transformadoras do campo crítico emancipatório das diferenças.
É também verdade que esse golpe é novo, de caráter enraizadamente institucional, parlamentar, jurídico e midiático porque mobiliza forças estruturantes que se voltaram contra os processos recém-iniciados de mudanças no campo das opressões e que não são exclusivamente de classe. Um golpe se inicia com a destituição violentamente sexista da primeira mulher brasileira a alcançar a Presidência da República e vem sendo diariamente perpetrado a partir de um enredo perverso de etapas sequenciais incidindo vertiginosamente sobre o tecido social brasileiro, com vistas à retomada de padrões hierarquicamente mantidos pelas forças atávicas do heteropatriarcado branco racista colonial burguês. Não haverá unidade para enfrentar o crescente autoritarismo da sociedade política brasileira sem o reconhecimento explícito dessas lutas.
Mas a realidade político-eleitoral, todavia, é outra: à esquerda ou à direita, olhem para os palanques políticos! Da foto escandalosa do ministério golpista e ilegítimo de Temer, passando pela mídia que restitui a “bela, recatada e do lar”, ao palanque do ato ecumênico de ressignificação da prisão de Lula, os principais atores das nossas elites políticas são praticamente idênticos: homens brancos supostamente heterossexuais. Nos palcos da direita acrescenta-se, evidentemente, o elitismo econômico: eles são proprietários e celebridades que converteram o capital econômico em social e simbólico. Mas as marcas visíveis, corporais mesmo, das exclusões continuam as mesmas: faltam mulheres, mulheres negras, pobres, homens negros, indígenas, gays, lésbicas e faltam pessoas trans. E, assim, a falsa democracia brasileira se institui sob o signo da falta, da opressão coloniais de gênero, étnico-racial e sexual. Sem reconhecermos isso e sem levarmos essas lutas, de fato, em consideração, não haverá como desarmar a bomba do ódio já instalada entre nós.
Não tenho dúvidas de que a nossa saída democrática passa pela consolidação sinérgica e compartilhada do campo crítico emancipatório das diferenças para, a partir dele, se reconstruir um projeto de nação que seja a um só tempo: radicalmente feminista, antirracista, antietnocídio e anti-LGBTfóbico. Se eu posso nomeá-lo é porque esse campo já existe. Mas nós insistimos em ignorá-lo ou em classificá-lo como foco de fragmentação. Resta-nos agora buscar a unidade das nossas lutas e materializá-la em práticas concretas e coletivizadas de resiliência, resistência e luta. Ninguém melhor do que esses grupos que lutam, muito antes do Partido dos Trabalhadores existir, para exercitar essas três ações políticas absolutamente urgentes. Se somos herdeiros de injustiças e opressões atávicas, também herdamos estratégias criativas e únicas de resiliência e resistência políticas.
Cada um de nós do campo das esquerdas precisa ter a consciência esclarecida de que é hora de abrir espaço, apurar a habilidade de escuta, reconhecer erros, mobilizar ainda mais a capacidade de empatia e fortalecer esse campo ativo das diferenças como ação pública e política. Essa é a condição necessária da construção de nossa unidade. Erramos quando não enxergamos isso e continuaremos a errar se não formos capazes de liberar essa potência coletiva e, mais uma vez, em momento tão crucial, invisibilizar essas lutas históricas. Assim, cada homem branco e mesmo mulher branca que não tiver compreendido a urgência necessária desse empoderamento estará atuando do lado errado de nossa luta democrática, do lado dos abutres que perpetraram esse golpe, nos lançando na exceção e no autoritarismo, e não estará compreendendo as camadas profundas que precisam ser revolvidas para se reencontrar, enfim, nossa democracia perdida.
- Marlise Matos é professora associada do Departamento de Ciência Política, do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e do Centro do Interesse Feminista e de Gênero na Universidade Federal de Minas Gerais
Referências
ALVAREZ, Sonia. “A ‘globalização’ dos feminismos latino-americanos: tendências dos anos 90 e desafios para o novo milênio”. In:Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latino-Americanos: Novas Leituras, p. 383-426. Sonia Alvarez, Evelina Dagnino e Arturo Escobar (Orgs.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.
AVRITZER, Leonardo. Democracy and the Public Space in Latin America. Princeton: Princeton University Press, 2002.
JAQUETTE, Jane (Org.). The Women’s Movement in Latin America: Participation and Democracy. Boulder: Westview Press, 1994.
MATOS, Marlise. “Movimento e a Teoria Feminista em sua Nova Onda: entre encontros e confrontos, seria possível reconstruir a Teoria Feminista a partir do Sul Global?”. Revista de Sociologia e Política, v. 18, p. 67-92 (impresso), UFPR, 2010.
MATOS, Marlise. “O campo-crítico-emancipatório das diferenças e a Quarta Onda Latino-Americana como experiência da descolonização acadêmica”. In: Feminismos y Poscolonialidad 2, v. 1, p. 263-321. Karina Bidaseca (Org.). 1ª. ed. Buenos Aires: Ediciones Godot, 2016.
EDIÇÃO 171 - 11/04/2018