Olhar o passado para orientar o futuro: diálogo com duas propostas (Parte 1)

24/11/2017
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Foto: PAC/Flickr
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Aporia: “estado de perplexidade intensa em que nos encontramos quando as nossas certezas se desmoronam; quando de repente, somos apanhados num impasse, sem conseguirmos explicar o que os nossos olhos veem, o que os nossos dedos tocam, o que nossos ouvidos ouvem”. Yannis Varoufakis, ex- ministro do Syriza na Grécia sobre a crise de 20081.

 

O presente artigo foi dividido em duas partes. A primeira, aqui publicada, faz uma discussão teórica sobre as várias dimensões da análise da conjuntura, destacando as questões nacionais, democráticas e de distribuição da renda e riqueza. A seguir trata do conceito de desenvolvimento e o desenvolvimentismo, como uma formulação que busca justificar a redução da desigualdade no âmbito do capitalismo sem rupturas com o sistema de propriedade.

 

A segunda parte, a ser publicada posteriormente, trabalha com o debate sobre o caráter dos governos Lula e Dilma e suas políticas econômicas oscilantes. Trata das discussões sobre o caráter dominante das políticas adotadas por esses governos no se refere às três questões mencionadas nesta primeira parte, porém com ênfase sobre as frações de classe que se beneficiaram das principais políticas implementadas. Discute-se o limite das políticas públicas em um Estado numa sociedade de classes, mas com certa autonomia em relação às classes dominantes, o que possibilita a execução de programas que impactam a distribuição de renda.

 

A segunda parte conclui com um debate sobre as políticas econômicas oscilantes nos quatro mandatos de Lula e Dilma, destacando a falta de um modelo estrutural de transformações dos elementos estruturantes da distribuição de renda e riqueza, levando a politicas econômicas moldadas para as conjunturas, especialmente do mercado internacional, mas também oscilando nas prioridades domésticas. Nesses mandatos também houve uma ampliação das políticas sociais e ligeira redução da desigualdade, com grande contração da pobreza absoluta.

 

A análise tem como pano de fundo uma concepção de que todos os momentos históricos refletem a correlação de forças sociais, que organizam a sociedade em torno de três questões, a nacional, a democrática e a social.

 

A questão nacional: na qual os limites entre os interesses nacionais e a abertura para interesses internacionais se manifestam, em termos do relacionamento do país com os mercados internacionais, com sua balança de pagamentos e subordinação ou autonomia em relação aos centros de poder do mundo.

 

A questão democrática: na qual os graus de influência no poder doméstico da democracia representativa e a participação da sociedade na escolha dos seus caminhos são estabelecidos em termos de influencia dos diversos grupos da sociedade, permanentemente em disputa. Mecanismos e influência das formas de participação popular, representação parlamentar versus participação e liberdades e direitos são temas permanentes.

 

A questão social: na qual os frutos do crescimento e os reflexos do desenvolvimento impactam sobre a distribuição de renda e riqueza no país, onde os níveis de pobreza absoluta são determinados e a distribuição das rendas apropriadas pelo Estado entre as várias classes sociais é definida. Políticas de transferência de renda, políticas sociais, mercado de trabalho e políticas tributárias ocorrem no enfrentamento dessa questão.

 

As formas e a ordenação da importância de cada uma dessas questões são determinadas pela correlação de forças no momento. O Brasil, no longo prazo, teve vários regimes, em que algumas vezes a questão nacional ou democrática tornaram-se principais, mas em poucos momentos a questão social dominou a conjuntura. Um desses momentos foi o período Lula-Dilma.

 

As dimensões das conjunturas e o desenvolvimentismo

 

As duas principais contribuições analisadas, A Reconstrução de Um Projeto Democrático para o Brasil (Vários, 2017) e Os Cinco Mil Dias: o Brasil na Era do Lulismo (Maringoni e Medeiros, 2017), abordaram as diversas conjunturas das experiências recentes e os desafios estruturais para o desenvolvimento brasileiro, com vistas a orientar a elaboração de programas para sair da atual crise do país. Nesta primeira parte, nos detemos a debater a contribuição que tem como um dos subscritores originários, Luiz Carlos Bresser-Pereira, ficando o diálogo com o livro publicado pela Fundação Lauro Campos, do PSOL, para a segunda parte.

 

Adotando um enfoque mais estrutural do que conjuntural, o programa de Bresser-Pereira2coloca a problemática atual como um desafio de entender, além dos problemas de curto prazo, as razões do baixo crescimento do país na transição entre os dois séculos, em um período caracterizado por ele como continuidade do regime liberal, apesar dos governos distintos de Fernando Henrique, Lula e Dilma com baixas taxas de crescimento3.

 

De outro lado, em outra dimensão do espectro político, o livro Cinco Mil Dias4 apresenta uma contribuição para a avaliação da experiência dos governos Lula e Dilma, trazendo um conjunto de ensaios sobre vários aspectos da intervenção do governo, destacando seus impactos nas políticas identitárias, nas políticas sociais e ampliação da democracia.

 

A maioria dos artigos é crítica ao caráter limitado das transformações implementadas pelos governos sob a liderança do PT. Reconhecem a importância da experiência histórica que permitiu uma experiência reformista que melhorou a vida de muitos, sem abalar estruturalmente a hegemonia do capital na dominação da sociedade e apropriação de suas rendas.

 

A política econômica, apesar de permear várias das análises, merece o foco apenas de cinco artigos entre os 43 que compõem o livro e, como reconhecido no prefácio, a questão da terra está ausente.

 

Bresser-Pereira5 destaca que, de 1930 a 1990, o país fez uma transição do período agrário exportador para uma sociedade urbano-industrial, com taxas de crescimento elevadas, sob governos predominantemente desenvolvimentistas. Segundo ele, após 1990, há uma continuidade de governos liberais, com populismo cambial, dependência da poupança externa e baixos ritmos de crescimento. Nos dois regimes, a desigualdade aumentou.

 

Segundo Bresser-Pereira, o Brasil caiu em uma armadilha macroeconômica de altos juros e câmbio apreciado, que tira competitividade das empresas industriais e as leva a investir muito menos, enquanto salários e outros rendimentos artificialmente elevados provocam o aumento do consumo com endividamento externo.

 

O predomínio da pauta estabilizadora de curto prazo e o desestímulo ao investimento decorrente da armadilha do Tripé Macroeconômico que – subordinando o combate a inflação a um Banco Central comprometido exclusivamente com a estabilidade monetária, com taxas de cambio flutuantes que super apreciam, no longo prazo, a taxa de cambio se as taxas de juros forem suficientemente atrativas para a entrada especulativa de capitais internacionais – inibem a expansão dos gastos sociais e dos investimentos públicos demandados por uma agenda desenvolvimentista.

 

A manutenção das metas de superávits primários elevadas possibilita a convivência das altas taxas de juros com a contração dos gastos, aumento da dívida e rentismo desbragado, viabilizando a rolagem da dívida de curto prazo, com elevação da proporção da dívida sobre o PIB.

 

Uma das questões chaves do debate refere-se à dúvida sobre até que ponto a experiência dos governos Lula e Dilma difere do desenvolvimentismo de Vargas e até dos militares, em contraposição às ideias liberais, hoje dominantes de forma extremada, e que aumentam e diminuem sua presença durante todo o período de transição entre os dois séculos, depois dos pactos dos anos 1930, com a construção do Estado, de 1988 com a Constituição e de 2003 com a ampliação das politicas sociais.

 

O desenvolvimentismo é um conceito ambíguo6, podendo expressar tanto um conjunto de políticas que resultam em transformações da economia ou um conjunto de ideias que inspiram um conjunto de políticas. No primeiro caso é um programa político, no segundo é uma escola de pensamento. O desenvolvimentismo clássico parte da ideia de que a divisão de trabalho entre economias desenvolvidas e subdesenvolvidas é intrinsecamente assimétrica, criando restrições para a balança de pagamentos e continuidade do crescimento.

 

Como fórmula um dos estudiosos dos limites do conceito de desenvolvimento, em relação as transformações estruturais da sociedade:

denomina-se desenvolvimentismo a política econômica formulada e/ou executada, de forma deliberada, por governos (nacionais ou subnacionais) para, através do crescimento da produção e da produtividade, sob a liderança do setor industrial, transformar a sociedade com vistas a alcançar fins desejáveis, destacadamente a superação de seus problemas econômicos e sociais, dentro dos marcos institucionais do sistema capitalista7 (nossos destaques).

 

Dessa forma o processo desenvolvimentista ocorre sem rupturas com o sistema de poder capitalista, organizando uma coalizão de forças políticas comprometidas com o crescimento econômico, nucleada em torno da burguesia industrial, dos trabalhadores urbanos e parte da burocracia pública8. Até que ponto os governos Lula e Dilma tiveram uma política deliberada de estímulo à indústria para viabilizar o crescimento é a principal dúvida.

 

O pensamento dominante na economia identifica o desenvolvimento como um fenômeno resultante da melhoria da alocação de recursos, no lado da oferta, que impacta a produtividade. Os economistas heterodoxos destacam o papel do Estado no processo de crescimento e transformação social, dando especial ênfase às variáveis de demanda, com divergências de quais os seus componentes são mais dinâmicos, com seus impactos sobre a transformação estrutural da economia9.

 

O conceito desenvolvimentista associa a industrialização com mudanças do mercado de trabalho, com deslocamentos do emprego dos setores de baixa produtividade para os setores com maior valor adicionado. Para os ortodoxos, o desenvolvimento é essencialmente um processo de mudança das condições de oferta da economia em busca de aumento da produtividade.

 

Sob o manto do conceito de desenvolvimentismo há inúmeras interpretações, visões teóricas e programas econômicos e políticos. Amado e Mollo (2015) propõem pelo menos quatro tipos de desenvolvimentismos:

 

1. Desenvolvimentismo pioneiro, que destaca o papel das poupanças e está muito associado aos trabalhos iniciais da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), com forte influência do mainstream da economia.

 

2. Novo desenvolvimentismo, associado aos trabalhos de Bresser-Pereira, também com forte influência do pensamento econômico ortodoxo.

 

3. Desenvolvimentismo pós-keynesiano, formulado por professores do Departamento de Economia da UFRJ com tinturas estruturalistas. 

 

4. Social-desenvolvimentismo, com maior ênfase nas questões distributivistas e na inserção da força de trabalho no mercado.

 

Para os pioneiros, o subdesenvolvimento, caracterizado pela heterogeneidade estrutural e uma inserção dependente das economias latino-americanas no circuito internacional do capital, era inerente ao processo de desenvolvimento capitalista historicamente determinado nessa região. A deterioração dos termos de troca era parte integrante desses movimentos de longo prazo, assim como a incapacidade de difusão do progresso técnico, uma vez que os ajustes dos produtos primários aos choques cíclicos ocorriam no nível dos preços, enquanto nos produtos industrializados os ajustes eram quantitativos.

 

Forças de mercado sozinhas são incapazes de superar essas limitações de crescimento, processo que exige intensificar os efeitos do progresso técnico na transformação da estrutura produtiva e diversificação dos mercados internos. Esse processo de longo prazo não é possível apenas com a atuação dos mercados, exigindo intervenção do Estado, em articulação com os investimentos privados. Pode-se dizer que as políticas econômicas brasileiras até os anos 1980 foram fortemente influenciadas por essas ideias.

 

A literatura mais recente cunhou dois outros conceitos de desenvolvimento, desenvolvimentismo social (DS) e neodesenvolvimentismo (ND), que se distinguem principalmente pelas ferramentas utilizadas para obter os resultados de superação das restrições externas ao crescimento econômico, com distribuição de renda, objetivos comuns a ambos.

 

O desenvolvimentismo social enfatiza os mecanismos de estimular diretamente a distribuição de renda, para fomentar o crescimento de um mercado interno de consumo de massas. A expansão da demanda, principalmente pelo crescimento do consumo, estimula o investimento e as restrições externas seriam enfrentadas por incentivos ao crescimento das exportações, particularmente as baseadas em recursos naturais abundantes. Com o boom das commodities essas ideias encontram ambientes favoráveis ao seu florescimento.

 

O neodesenvolvimentismo é predominantemente macroeconômico e foca principalmente as políticas visando a taxa de câmbio e seus efeitos sobre a competitividade das exportações de maior valor agregado e a industrialização. A utilização de instrumentos de controle dos fluxos de capitais também é considerada.

 

A distribuição de renda seria obtida de forma indireta, pela absorção relativa do emprego nos setores de maior valor agregado, fazendo com que o crescimento da produtividade se expresse no aumento dos salários reais. No curto prazo, os salários reais podem cair como consequência da depreciação do câmbio que deve ser administrado de forma a garantir competitividade ao setor industrial nacional. As taxas de juros devem se ajustar a esses níveis de taxa de câmbio nominal, estabilizando os preços domésticos. Toda a macroeconomia e políticas setoriais devem se voltar para um desenvolvimento puxado pelas exportações de manufaturados, sem recorrer a poupanças externas. O novo desenvolvimento e o neodesenvolvimentismo se completam, combinando a principalidade da questão nacional, do câmbio e do controle dos fluxos de capitais.

 

Porém, como diz um ilustre formulador do novo desenvolvimentismo, a política export-led exige uma política cambial compatível, uma política fiscal de ajuste e uma política salarial que promova a moderação salarial ao vincular o aumento dos salários reais ao crescimento da produtividade do trabalho, garantindo assim a estabilidade da distribuição funcional da renda no longo prazo [.... e portanto] uma trajetória de crescimento liderada pelos salários e/ou pelos gastos do governo é insustentável no longo prazo, sendo, portanto, incompatível com a estratégia de “alcançamento” subjacente ao novo-desenvolvimentismo10.

 

O desenvolvimentismo pós-keynesiano, muito próximo do neodesenvolvimentismo, chama a atenção para a vulnerabilidade externa decorrente da liberação dos fluxos financeiros entre os países. Os investimentos decorrem da oferta de crédito com uma taxa de juros que seja compatível com as expectativas de ganhos de capitalistas, expressas no conceito de eficiência marginal do capital11. Mais do que a poupança prévia, exigida pelos modelos de extração neoclássica, o desenvolvimentismo pós- keynesiano enfatiza a disponibilidade do crédito com instituições desenhadas para garantir oferta de recursos financeiros de longo prazo para financiar os investimentos que se habilitarem12.

 

É claro para os pós-keynesianos que o investimento é volátil, refletindo avaliações dos capitalistas sobre o comportamento futuro da economia, da mesma forma que a taxa de juros resulta de avaliações sobre a oferta de moeda e a preferência pela liquidez. Os investimentos são muito importantes para serem deixados ao sabor do mercado. Por isso, tanto a política monetária como a política fiscal são fundamentais para garantir a sustentabilidade de longo prazo da principal variável dinâmica da demanda agregada que é o investimento. O Estado, dessa forma, tem certa autonomia no curto prazo dos interesses imediatos das várias frações de classe13.

 

O Estado tem papel fundamental na gestão da política fiscal e monetária de forma a assegurar que a sustentabilidade do crescimento depende das baixas taxas de juros e dos mecanismos institucionais que garantem a existência de um mercado de capitais capaz de prover fundos no longo prazo, sem estímulos à preferência pela liquidez.

 

Nessa corrente de pensamento, apesar da importância da taxa de juros para viabilizar a execução de projetos de investimento, o principal objetivo do processo de desenvolvimento deve ser evitar a vulnerabilidade externa, decorrente dos movimentos especulativos de curto prazo dos capitais financeiros entre as fronteiras. Nesse sentido, medidas de controle de movimento de capitais e gestão da taxa de câmbio são fundamentais.

 

Uma vertente desses pensamentos pós-keynesianos pode ser encontrada na formulação de alguns professores da Unicamp14 que enfatizam a importância da industrialização pesada, para superar os obstáculos da inserção subordinada dos países periféricos na dinâmica do capitalismo mundial. A industrialização pesada está associada a saltos tecnológicos, destacando o papel dos investimentos autônomos, independentes da dinâmica interna dos setores tradicionais da economia. Esses estão vinculados a atividades de menor intensidade tecnológica e de capital, com menor risco e maior rentabilidade, porém com pouca possibilidade de romper as limitações para o crescimento. Para superar esses limites, a intervenção forte do Estado seria fundamental para viabilizar as descontinuidades dos pacotes de investimentos de forma a introduzir os novos setores. Como diz Carneiro:

Os variados papéis desempenhados pelo Estado na articulação dos blocos de capitais, na centralização do capital por meio do apoio à empresa privada nacional ou na criação de empresas estatais e, ainda, na arbitragem dos interesses do capital externo, conferiu-lhes uma função crucial na industrialização durante a etapa pesada, a de articulador do investimento autônomo ou descontínuo15.

 

Para os social-desenvolvimentistas, a dinâmica do mercado interno é fundamental, dando maior ênfase para a questão social, especialmente para as políticas de transferência de rendas para os mais pobres e seus impactos no crescimento do mercado interno de massas.

 

Implicitamente essa concepção considera uma certa autonomia para o Estado em relação a uma visão mais ortodoxa de que o Estado serve basicamente aos interesses das frações de classe capitalista16. Na escola de pensamento social-desenvolvimentista há uma certa autonomia do Estado em relação às classes dominantes, sendo aquele caracterizado como uma esfera em disputa, na qual é possível a formulação e implantação de políticas que impactem a distribuição de renda, especialmente a redução da pobreza17.

 

Mollo (2015) sugere três dimensões para a luta contra-hegemônica visando a transformação da sociedade: ampliação dos canais de escuta das classes populares, a busca de maior igualdade de renda, consumo e capacidade de decisão dentro da sociedade atual e a organização e execução de processos de autogestão da produção.

 

Um dos elementos fundamentais dessa agenda social desenvolvimentista é a abertura de canais que possibilitem aos segmentos populares da sociedade, fora do bloco de poder, influir na formulação e execução de políticas públicas, já que o Estado é um espaço em disputa com os grupos dominantes. Os mecanismos de democracia participativa são assim parte inerente do processo de acumulação de forças para as transformações contra-hegemônicas da sociedade. Até que ponto isso avança ou é limitado depende fortemente da correlação de forças do momento.

 

As políticas de redução da desigualdade e redução da pobreza absoluta devem ser parte integrante desse ideário, mesmo considerando as limitações impostas pelo caráter de classe do Estado atual e limitações nos processos de transferência de renda e poder entre as classes. Esses processos tornam-se ainda mais importantes quando a expansão do mercado interno de massas pressupõe uma elevação dos níveis de renda dos grupos de menor poder de compra, com estímulos aos setores econômicos com maior efeito de encadeamento na cadeia produtiva, capazes de gerar mais emprego e renda para os mais pobres.

 

A terceira dimensão do social-desenvolvimentismo é o aumento da consciência e da prática social de autogestão e ação cooperativa, em substituição aos mecanismos de organização individual e competitivo, do tipo de empreendedorismo e meritocracia. Nessa dimensão, os experimentos históricos do social-desenvolvimentismo tiveram sua maior falha, criando consumidores com mais renda, mas falhando em construir alternativas produtivas coletivas e maior consciência da importância da ação das classes oprimidas para mudar a sociedade. Mudou-se a vida dentro das casas, mas foi falha a construção de ações que viabilizassem ampliar as conquistas sobre as ruas e sobre a sociedade. Cidadãos conscientes, além de consumidores, deveriam ter sido organizados.

 

A consciência de que as conquistas individuais foram fruto de mudanças das políticas coletivas não se disseminou. Ao contrário, na imensa maioria dos que melhoraram de vida esse processo foi atribuído ao esforço individual ou ao efeito de ações divinas. Quando a correlação de forças muda e os processos de transferência de renda se esgotam, as forças sociais de resistência são pequenas.

 

Nesse contexto estrutural, com certa autonomia no espaço de formulação e implementação de políticas públicas favoráveis aos mais pobres e as classes trabalhadoras, as políticas macroeconômicas flutuaram ao sabor da correlação de forças em cada conjuntura.

 

Alguns pontos de debate com Bresser

 

Bresser-Pereira propõe o conceito de novo desenvolvimentismo para caracterizar as tentativas de combinar o equilíbrio dos principais preços macroeconômicos – taxa de lucro, taxa de câmbio, taxa de salários, taxa de juros e taxa de inflação – com crescimento e distribuição de renda. A pergunta chave é: Isso é possível?

 

O novo desenvolvimentismo enfatiza o mercado externo como o elemento dinâmico na superação do subdesenvolvimento, em linha com os modelos orientados pelas exportações que caracterizaram algumas economias asiáticas, com o Estado atuando para redirecionar as demandas por importados para a produção doméstica, em um processo de substituição de importações. O Estado também redireciona fundos para financiar investimentos de diversificação da economia, desde que a taxa de câmbio esteja ajustada à competitividade internacional do setor industrial e as taxas de juros não inibam os investimentos produtivos.

 

Bresser-Pereira destaca a principalidade da taxa de câmbio, escolhendo como o aspecto central da conjuntura a questão nacional. Diferente do desenvolvimentismo pioneiro que enfatizava a substituição de importações, o novo desenvolvimentismo dá prioridade às exportações que devem se aproveitar das vantagens locais, incluindo o baixo custo do trabalho, exigindo uma taxa de câmbio que estimule a competitividade das indústrias exportadoras no país18.

 

Bresser defende que é preciso retomar um pacto nacional desenvolvimentista, interrompido pelos militares e consolidado pelos regimes liberais. Isolar os rentistas, equilibrar os preços macroeconômicos, a partir da taxa de câmbio e retomar o crescimento sob a liderança do capital produtivo nacional.

 

O capital internacional deve trazer tecnologias e as medidas emergenciais de curto prazo devem ter por objetivo ajustar o câmbio e os juros, aproveitando-se da abundância relativa de trabalho, que mantém os salários reais baixos, viabilizando maiores taxas de lucros. O equilíbrio fiscal e a política monetária restritiva compensam os impactos inflacionários da depreciação cambial que viabiliza o crescimento das exportações.

 

Nesse sentido, pelo menos no curto prazo, o novo desenvolvimentismo convive com redução dos salários reais e aumento das desigualdades, reduzindo a importância da questão social em relação a importância da questão nacional. As ideias do novo desenvolvimentistas voltam com uma certa força política no período pós-golpe do impeachment, estruturando-se em torno de um programa nacional de superação do atual desmonte do Estado.

 

Como uma listagem de medidas gerais e princípios organizativos, o Manifesto de Bresser e outros19 é inquestionável. As dúvidas aparecem nas prioridades escolhidas das questões principais e políticas de enfrentamento. A questão principal é a nacional e a política determinante é a política de câmbio. Nesse sentido, as questões democráticas e sociais são subsidiárias e as outras políticas subordinadas a garantir a competitividade da indústria brasileira.

 

Assim a proposta do programa de Bresser pode ser sintetizada na ideia de que retomar o crescimento:

 

1. Exige depreciação cambial.

2. Os trabalhadores terão de pagar um pouco, mas os rentistas devem pagar mais. 

3. Não queremos crescer com poupança externa.

4. Dos estrangeiros queremos só a tecnologia.

5. O Brasil deve ter pequeno superávit. 

6. Deve ser credor e não devedor.

 

A questão social dessa forma é subsidiária da questão nacional. Porém é necessário considerar que, apesar das importantes questões referentes à soberania nacional, a questão social no Brasil precisa ser encarada de frente. A redução da regressividade dos impostos e a manutenção dos programas de transferência de renda, assim como políticas de estímulo setorial ao investimento e a geração do emprego devem ser o centro do programa alternativo. A questão fiscal não se resolve apenas com mais eficiência e redução dos gastos públicos. É indispensável uma reforma tributária que aumente a progressividade do sistema, assim como enfrente as questões federativas, especialmente na relação com os estados.

 

O rentismo é o grande adversário. Reduzir drasticamente as transferências para os detentores dos títulos da dívida pública para ampliar os espaços fiscais de estímulo ao investimento público e o custeio das políticas sociais exige queda das taxas de juros reais, que continuam muito elevadas, apesar das quedas nominais da Selic. Exige também mudanças institucionais no papel do Bacen que, além da inflação, deve cuidar também da situação do emprego e crescimento, como a maioria dos bancos centrais do mundo. Os processos de rolagem da dívida pública precisam também ser modificados, descolando a dívida da Selic e ampliando a transparência e competitividade nas negociações com títulos públicos.

 

A queda da taxa de juros e elevação dos salários devem condicionar a política cambial, assim como os estímulos setoriais devem orientar os investimentos privados. O principal objetivo da política econômica deveria ser retomar o crescimento, com ampliação do mercado doméstico, com uma forte influência de um Estado repaginado em suas fontes de receitas e focado nos setores com maiores impactos sobre a distribuição de renda e geração de oportunidades de emprego e renda. A política cambial se ajusta a esses objetivos e não é o motor do crescimento.

 

No entanto, como sempre, é a correlação de forças que vai definir a possibilidade de implementação desse programa. Quais forças sociais e frações de classe se unificarão em torno desses objetivos principalmente para diminuir a desigualdade do nosso país será testado tanto nas eleições de 2018, mas principalmente nas ruas e nas lutas sociais. A defesa da indústria nacional com taxa de câmbio que possibilite sua competitividade como deseja Bresser-Pereira é um dos objetivos desse conjunto de forças. A questão é se este objetivo é a locomotiva da retomada do crescimento ou é um instrumento auxiliar.

 

- José Sergio Gabrielli é professor aposentado da UFBa

 

Edição 166, 22 novembro 2017

http://www.teoriaedebate.org.br/index.php?q=materias/nacional/olhar-o-passado-para-orientar-o-futuro-dialogo-com-duas-propostas-parte-1

 

 

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notas

  • 1. Varoufakis, 2015 (2011), p. 17

  • 2. Vários, 2017

  • 3. “Entre 1950 e 1980, a renda por pessoa cresceu 4,5% ao ano; desde então, cresce menos de 1% ao ano; em 2014, estagnou; em 2015 e 2016, essa renda caiu mais do que 8%. Entre 1980 e 2014, enquanto a renda por pessoa dos brasileiros aumentou 1,4 vez, a dos tailandeses, 4 vezes; dos sul-coreanos, 6,3 vezes; e a dos chineses, 17,5 vezes”. (Bresser-Pereira, 2017, p. 7.)

  • 4. Maringoni e Medeiros, 2017

  • 5. Bresser-Pereira, 2017

  • 6. Prates e Paula, 2017

  • 7. Fonseca, 2016, p. 119

  • 8. Prates e Paula, 2017

  • 9. Amado e Mollo, 2015, p.77

  • 10. Oreiro, 2012, p. 29 e 30

  • 11. Amado e Mollo, 2015, p. 81

  • 12. Mollo e Amado, 2015, p. 11-12.

  • 13. Uma boa discussão sobre o papel do Estado, os modelos pós-keynesianos e os modelos marxistas encontra-se em Mollo, 2015.

  • 14. Resenhados, por exemplo, em Carneiro, 2012.

  • 15. Carneiro, 2012, p. 758.

  • 16. Debate da década de 1970 entre os marxistas que começa com as contribuições de Althusser e Poulantzas, resenhado em Jessop (2009), sobre certa autonomia do Estado em relação às classes dominantes versus as posições de Miliband (1973), que destaca o conceito do Estado como forma de dominação das classes hegemônicas.

  • 17. Um bom resumo dessa discussão sobre o papel do Estado e suas relações com as classes dominantes, assim como sua relativa autonomia em respostas as conjunturas, do ponto de vista marxista, especialmente o debate Poulantzas-Milliband, pode ser encontrado em Mollo (2001), atualizado em 2015.

  • 18. Bresser-Pereira, 2016, p. 669-670.

  • 19. Incluído em Vários, 2017.

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/189422?language=es
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