O Big Brother morreu

01/02/2017
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Uma entrevista ilustrada: de um lado, um pingue-pongue, de outro uma leitura artística das câmeras de vigilância

 

O sociólogo carioca Bruno Cardoso estudou de uma perspectiva única a videovigilância implementada no Rio de Janeiro a partir de 2006: a observação dos operadores das câmeras de rua. Em 2008, ele passou sete meses dentro do Centro de Comando e Controle da Polícia Militar (CCC) e do batalhão em Copacabana fazendo um estudo etnográfico do trabalho dos policiais para sua tese de doutorado, depois publicada no livro Todos os olhos – videovigilâncias, voyerismos e (re)produção imagética (Editora UFRJ). Sua pesquisa acompanhou o começo do uso do videomonitoramento numa cidade que viu o número de câmeras disponíveis para a Secretaria de Segurança Pública saltar de 600 para 4,2 mil em quatro anos.

 

Observando os observadores, Cardoso testemunhou como a expectativa de uma solução mágica para os crimes na cidade foi se transformando em “decepção” aos olhos dos policiais. Tarefa tediosa, repetitiva, com pouca chance de algum sucesso real em fazer um flagrante ou impedir um crime, a videovigilância foi aos poucos, segundo ele, sendo “deixada de lado” nas prioridades do governo.

 

Entre 2013 e 2014, ele repetiu a imersão no Centro Integrado de Comando e Controle (CICC), que reúne representantes das polícias militar e civil, bombeiros, defesa civil e guarda municipal. “O que eles são efetivos em fazer? Esvaziar manifestação”, diz. “É uma forma de você controlar a cidade. Mas não têm a capacidade de tornar a cidade segura”. Leia a entrevista:

 

Você nota no seu livro que a observação das câmeras pelos operadores reproduzia os mesmos preconceitos do patrulhamento de rua...

 

Quando eu fui conversar com os operadores [no 19o Batalhão da Polícia Militar, em Copacabana], eles diziam: “Nosso olhar é maldoso”, ou seja, eles olham para uma situação e já conseguem imaginar o que pode acontecer de crime, de violência, de errado – e que a polícia teria que coibir. Mas esses eventos sempre envolviam aqueles indivíduos que seriam necessariamente o alvo do olhar policial. Falando claramente: jovens negros. Sem camisa, então, eram alvo certo.

 

Teve um caso em que havia um catador de material reciclável mexendo em uma lata de lixo, e o operador me chamou e falou: “Tá vendo esse cara? Ele não tá fazendo nada. Mas, se ele tiver oportunidade, vai fazer. Então a gente tem que estar de olho nele”. Outro exemplo eram jovens negros parados na beira da água. Eles falavam: “Esses aqui a gente tem que olhar de perto, porque eles podem estar pensando em aprontar alguma coisa”. O mesmo acontecia com grupo de moradores de rua.

 

O que eu percebo é que havia uma reprodução dos mesmos preconceitos de sempre. Então, se tem um jovem de classe média cometendo um crime, dificilmente ele vai ser visto. Veja, realizar um flagrante é muito difícil: ou você tem que dar uma sorte e estar olhando, ou você tem que desconfiar de algo por conta da dinâmica da situação. Por isso, recorrentemente os jovens, homens, negros tinham uma possibilidade muito maior de serem flagrados.

 

Você observou também muita dificuldade dos operadores em lidar com as máquinas?

 

É aquilo que eu chamo de sobredeterminação técnica: tanto as máquinas quanto os homens compõem a tecnologia de videovigilância. Mas elas são pensadas de forma separada. A argumentação é que a máquina faz tudo, ou seja, você instala o sistema de videovigilância e o sistema vai sozinho fazer com que a cidade seja vigiada. As câmeras vão vigiar a cidade. É muito recorrente esse discurso, ignorando a necessidade de um olho efetivamente olhando essas imagens pra que elas se transformem em imagens.

 

Na época, os operadores de câmera nos batalhões cariocas eram policiais ou bombeiros aposentados. Eles tinham muitas dificuldades?

 

Eles tinham dificuldade em manejar o computador. Os softwares utilizados eram em inglês, e ninguém falava inglês. Muitos tinham uma certa dificuldade de enxergar por causa da idade, às vezes tinham uma dificuldade de ficar acordados naquele ambiente extremamente tedioso. Mas mesmo no CCC, em que os policiais eram mais jovens e tinham um acesso maior aos computadores, era difícil. Ou seja, não é o perfil etário que faz isso, é o perfil socioeconômico, de policiais de baixa patente.

 

Pode-se dizer que existe certo “fetiche” por esses equipamentos de videovigilância entre os agentes da segurança pública?

 

Sim. É um fetiche e ao mesmo tempo é um trabalho muito bem feito pelas empresas de tecnologia, de convencimento, de lobby. Quando a gente vê um vídeo de demonstração de uma empresa dessas, fica assustado mesmo. E quem tem dinheiro público e vai comprar tem efetivamente um encantamento pela possibilidade dos equipamentos fazerem o trabalho quase que sozinhos. E isso é incrível, porque treinar e equipar a polícia, manter o controle sobre ela, é um trabalho hercúleo, que tem que ser feito no dia a dia. Portanto é muito sedutor imaginar que você vai comprar um equipamento e tudo vai se resolver.

 

Durante o seu período de imersão, você assistiu a flagrantes de crimes?

 

Eu vi algumas cenas que a gente pode considerar flagrante, mas eram coisa como pessoas fumando maconha na praia, que não levaram a uma ação policial. Ficou evidente o tempo inteiro a imensa dificuldade que é realizar um flagrante. Mas, por uma série de voltas discursivas, isso não serve para convencer aquelas pessoas de que aquilo não funciona. O aparato de videovigilância, posso dizer, não cumpre as expectativas que todo mundo tinha. Decepciona um pouco.

 

Mesmo assim, você menciona no livro que as imagens eram vazadas para a imprensa.

 

Não havia naquela época estatísticas oficiais sobre a eficácia da videovigilância. Como comprovar que aquele sistema funciona, se não tem estatísticas? Era através dos flagrantes que eram capturados e divulgados para a imprensa, para programas policiais. Então era obsessiva a busca por flagrante. Só que ao mesmo tempo, cada vez que uma imagem de câmera de vigilância capturava um assalto na praia de Copacabana, mais as pessoas ficavam sabendo que tinha câmeras. Por isso, eles tinham uma grande preocupação com a não divulgação dos locais das câmeras. O objetivo, eles diziam, é que as pessoas pensem que qualquer lugar pode estar sendo vigiado, e com isso iam criar um bairro mais seguro em vez de “ilhas de segurança”.

 

Você observou alguns operadores monitorando mulheres de biquini na praia, certo?

 

Havia uma preocupação da Secretaria de Segurança para que isso não acontecesse, mas eu pude ver algumas “observações” de mulheres na praia, sim. Algumas vezes eles me mostravam a cena para dizer que eram proibidos de fazer aquilo. E outras vezes observavam um pouco mesmo, mas nunca por muito tempo, pois sabiam que não podiam fazer isso. Eu vi efetivamente esse controle ser realizado em relação a mulheres na praia, favela e apartamentos.

 

Como a imprensa aborda a questão da videovigilância?

 

Sempre de forma elogiosa. Chama-me muito atenção o fato de que não teve nenhuma reportagem ou inserção crítica na imprensa brasileira, ou que levantasse os perigos da videovigilância. Era como se fossem matérias encomendadas pela Secretaria de Segurança.

 

Há uma grande diferença entre o que você viu nos Centros de Comando e Controle em comparação com aquela imagem muito usada pelos críticos da videovigilância, do Big Brother, o Grande Irmão que vê tudo segundo o livro 1984, de George Orwell?

 

É uma diferença gigantesca. Primeiro que o Big Brother sabia de tudo, era tudo centralizado. E a tentativa de centralização dessas imagens e dessas informações era complicadíssima. Segundo que a quantidade de coisas que a figura do Big Brother descobre através das teletelas é irreal. Porque você tem que ter uma pessoa vigiando cada um. E não é isso que acontece. A vigilância através de câmeras é como se você tivesse num prédio muito alto olhando para baixo com uma imagem pior do que a do seu olho, sem acessos a som, sem acesso a cheiro... Então o que se dá pra saber com aquelas imagens é quase nada. A videovigilância é feita à distância, anonimamente – você não sabe quem você está vigiando – e cada dia você está olhando numa câmera. As informações são muito pobres.

 

Outra ideia muito presente é que a intimidade da pessoa é invadida. Mas a nossa concepção de intimidade é muito vasta para ela ser minimamente atingida por uma câmera de rua. Algo que se aproxima mais de um Big Brother, ainda que de uma maneira muito distante, eu diria que está num sistema de monitoramento de uma garagem, de um prédio, porque aí você conhece as pessoas, elas estão num espaço fechado.

 

Seu porteiro o está vigiando mais que a polícia?

 

Muito mais.

 

A qualidade das câmeras e dos softwares de identificação facial etc. não são hoje muito melhor do que em 2008? Desde essa época não houve um salto tecnológico”?

 

As promessas realizadas pelos vendedores estão longe de serem cumpridas. O reconhecimento facial depende do ângulo perfeito, depende da qualidade do banco de dados, é bem mais complexo na prática do que nos vídeos de demonstração das empresas. E uma prova disso é que terroristas conhecidos e monitorados pelos serviços de inteligência circulam, planejam e executam atentados em cidades tecnologicamente securitizadas, como temos visto na Europa, por exemplo.

 

Você é crítico à postura apocalíptica usada pelos ativistas antivigilância?

 

Eu percebo o quanto tem de exagerado e irreal naquilo. Mas ao mesmo temo eu preciso reconhecer que nos países onde alguma discussão foi feita, foi por causa do alarmismo dos ativistas. Então, me parece que o ativismo antivigilância é muito importante, mas, quando ele mira nas câmeras, erra muito o alvo.

 

Onde está a grande problemática de vigilância hoje?

 

Está nas comunicações, nas mensagens de texto que a gente troca, nas redes sociais, nos dados que são produzidos o tempo inteiro ao usar a internet, ao usar o cartão de crédito. Isso é muito mais passível de vigilância do que a vigilância por câmeras. E talvez as pessoas tenham naturalizado ainda mais essa forma de vigilância porque sabem que está tudo sendo vigiado. Mas, me arriscando a ser um pouco iconoclasta, acho que a vigilância que mais perturba as pessoas no dia a dia é a vigilância dos seus pares, dos seus amigos de Facebook.

 

O que mudou daquele embrião de sistema de videovigilância para o Centro Integrado de Comando e Controle (CICC)?

 

Mudou muita coisa. O CCC era basicamente um projeto de videomonitoramento. Hoje, no CICC, a parte que era equivalente ao CCC está no mesmo andar, tanto o videomonitoramento quanto o despacho de viaturas. Só que o videomonitoramento foi meio deixado de lado pela sua alta necessidade de mobilização de pessoas e baixo resultado. As imagens continuam sendo feitas, mas não tem ninguém mexendo no computador para tentar botar a câmera para um lado ou para outro, para tentar flagrar alguma coisa. Então o CICC hoje é muito focado no despacho de viaturas, no atendimento às solicitações. E efetivamente tem resultado: reduziu o tempo de atendimento.

 

A tecnologia visual continua sendo importante, mas ela muda muito de figura. Vai ter uma operação policial numa favela, você vai ter um helicóptero em cima, transmitindo imagens em tempo real para o CICC, vai ter um caminhão que chama Plataforma de Observação Elevada transmitindo informação ao mesmo tempo. E realmente facilita a tomada de decisão, facilita que as pessoas trabalhem juntas, que é um problema histórico das forças de segurança no Brasil. Mas ainda assim a capacidade de ação desse aparato tecnológico é muito inferior ao que é prometido.

 

Em quê?

 

É inferior no seu alcance. Porque o discurso que mais mobiliza é tornar a cidade mais segura. O CICC funciona bem para gerenciar os fluxos da cidade. O que é muito diferente de transformá-la numa cidade mais segura.

 

O que eles são efetivos em fazer? Esvaziar manifestação, por exemplo. Muito efetivos. A gente vê que, depois que esse sistema começou a funcionar, as manifestações não conseguem mais chegar ao tamanho que elas chegaram em junho de 2013.

 

Qual a relação do CICC com a repressão de manifestações?

 

As manifestações são grandes fluxos, e as possibilidades de gerenciar esse fluxo aumentam. É mais fácil decidir se elas devem ou não acontecer ou se podem fazer determinado percurso.

 

A dispersão à força dos manifestantes, com técnicas bastante efetivas, vem sendo usada de forma cada vez mais apurada pela polícia. E isso significa um uso crescente de armamento de baixa letalidade, como bombas de efeito moral, gás, sprays, balas de borracha. O espaço urbano é mapeado como um território de guerra, com o uso de técnicas militares de análise das situações e também na ação. Então essa é uma das ações – chamam de “novo militarismo urbano” –, é uma forma de você controlar a cidade. Mas não tem a capacidade de tornar a cidade segura.

 

31 de janeiro de 2017
 

Natalia Viana, da Agência Pública

https://goo.gl/6xsUrr

 

Esta reportagem faz parte do Especial Vigilância da Agência Pública. Acesse apublica.org/vigilancia para saber mais e navegar pelas páginas interativas.
 

 

 

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/183239?language=en
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