O Brasil sob o Golpe: seis hipóteses polêmicas (3)

Após o impeachment, o Brasil precisa de outra política

12/09/2016
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Foto: Roberto Parizotti / CUT brasil golpe
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Em condições normais a cena seria surreal, mas em tempos de crise aguda da velha política o impensável realiza-se com frequência – ainda mais, no Brasil. Passada apenas uma semana de um golpe de Estado, a Avenida Paulista, em São Paulo, viveu na quarta-feira, 7 de setembro, uma reviravolta. Ali, a poucas quadras de onde realizavam-se, em março, as grandes manifestações de ódio à democracia, quem protagonizou a cena foi outra multidão.

 

Cerca de 20 mil pessoas, que se auto-convocaram a partir de uma mensagem singela em redes sociais e caminhavam desde a praça da Sé, interromperam sua marcha diante do escritório da Presidência da República, na esquina com a Rua Augusta.

 

Por volta das 16h, o expoente de um pequeno grupo, a Esquerda Marxista, dirigiu-se aos manifestantes – a grande maioria, muito jovens. Não tinha nem carro de som, nem microfone. Falava e suas palavras eram repetidas, em sucessivas ondas de jogral. Propôs o compromisso de todos com um novo protesto, no domingo seguinte, dia 11.  Foi ovacionado – e é provável, como se verá, que iniciativas semelhantes espalhem-se por todo o País. Convocou todos a não aceitar os atos do governo ilegítimo e a não descansar, enquanto este não cair. Cerca de 60 mil pessoas responderam ao chamado.

 

A maré contra o governo golpista cresce com enorme rapidez desde que mais de cem mil pessoas desafiaram uma proibição inicial da Polícia Militar e tomaram a mesma Avenida Paulista, em 4 de setembro. O feriado de Sete de Setembro disseminou a resistência. Novos protestos ocorreram em 26 Estados e em Brasília. O Grito dos Excluídos – uma celebração das pastorais católicas por direitos e igualdade, que se repete desde 1995 – foi o convocador. http://bit.ly/2c3ZRFE

 

Mas ao contrário do que ocorre normalmente, as manifestações reuniram milhares de pessoas e focaram, de modo explícito, na queda de Temer. Tudo indica que a espiral crescente adquiriu agora novo ritmo. Como se não bastasse, o presidente ilegítimo foi vaiado nos dois grandes eventos sem conotação política, a que compareceu na data comemorativa: o desfile da Independência, em Brasília, e a abertura das Paraolimpíadas, no Estádio do Maracanã, Rio. A direção dos fatos é clara.

 

Ao exporem a impopularidade do presidente, aliás, as manifestações já estão abrindo fissuras em sua base política de apoio e dificultando a aplicação de seu programa de contra-reformas. A primeira crise dá-se em torno da retirada de direitos previdenciários. Dezenas de parlamentares, que concorrerão a prefeituras passaram a pressionar o governo para que adie até 2017 o envio do projeto que eleva a idade mínima para aposentadoria.

 

Temem ser devastados pela impopularidade da medida. No PSDB, mais diretamente ligado ao capital financeiro, ocorre movimento oposto.

 

Depois de baixar em São Paulo na segunda-feira 5 para reuniões de urgência com Geraldo Alckmin e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o senador Aécio Neves deu o recado: quer o projeto enviado ao Congresso já. Um dia depois, Temer parecia disposto a atendê-lo – sem convencer, porém, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Para este, tornar público o ataque agora “não é inteligente e é inútil”…

 

Os riscos de perda de sustentabilidade do governo, que até há uma semana eram miragem, tornaram-se reais. Tanto é que levaram FHC – uma espécie de referência comum do bloco conservador – a fazer um alerta. Entrevistado pelo repórter Josias de Souza, ele reconheceu a fragilidade do governo Temer e o tratou com desdém: “não é uma ponte, é uma pinguela”.

 

Porém, conclamou as elites a defendê-lo. “Mas, se quebrar a pinguela, cai no rio. É pior. Então, nós temos que apostar que vamos atravessar essa pinguela e vamos chegar do outro lado do rio.”

 

Subitamente, um cenário em que apareciam apenas nuvens carregadas, voltou a se abrir. Agora, um vasto leque de desfechos é mais uma vez possível. Ele inclui desde um ataque mais duro às próprias liberdades civis, com laivos de fascismo, até a queda de Temer e a convocação de novas eleições – além de múltiplas soluções intermediárias.

 

O futuro imediato está novamente aberto; cada atitude é importante e pesa. Por isso, é ainda mais importante lançar hipóteses incômodas. Eis mais algumas, agora diretamente ligadas ao tema crucial da democracia:

 

a) A chegada ao governo provocou, na esquerda institucional brasileira, um choque de acomodação e cegueira. Precisamente no instante em que avançavam, no mundo, a crise da representação e o esforço de reinvenção democrática, esta esquerda institucional deixou-se aprisionar nos limites cada vez mais estreitos do jogo parlamentar brasileiro;

 

b) A queda do lulismo é também resultado deste declínio. As elites sempre quiseram livrar-se dele, por quaisquer meios possíveis. Porém, só puderam fazê-lo quando o segundo governo Dilma submeteu-se ao cretinismo institucional a ponto de desconcertar e paralisar a imensa base popular construída ao longo de trinta anos;

 

c) A conjuntura pós-golpe está repleta de riscos tenebrosos. Porém, oferece uma chance raríssima, que pode ainda ser construída. Trata-se de superar o lulismo, respeitando e valorizando sua herança e mantendo diálogo permanente com ele; porém construindo uma esquerda pós-capitalista.

 

Não há tempo, agora, para desenvolver as duas primeiras hipóteses. Sobre a primeira, vale lembrar um fato emblemático. Na virada do século, o PT ganhou projeção internacional graças às experiências contra-institucionais inovadoras, que adotava quando no governo. A mais notável – mas não a única – era o Orçamento Participativo. Significativamente, ele não foi apenas esquecido, no governo federal, mas também enterrado nas próprias prefeituras e governos de Estado onde existiu, a começar por Porto Alegre.

 

Sobre a segunda hipótese, é impossível não mencionar 2013. Por mais graves que tivessem sido, até então as concessões à institucionalidade e o abandono das reformas estruturais, surgiu então uma oportunidade extraordinária para recuperar o tempo perdido.

 

A presença de enormes multidões nas ruas, reivindicando serviços públicos e denunciando o esvaziamento da democracia permitia ao lulismo atualizar-se – desde que questionasse, também, sua relação com o poder.

 

A janela foi, inclusive, constatada pelo governo, nos pronunciamentos que Dilma fez e nas propostas que lançou imediatamente após as manifestações gigantes – plebiscito e Constituinte sobre sistema político. Porém, quando o conservadorismo rechaçou tais ideias, com a soberba de sempre, o governo abandonou-as também, acreditando provavelmente que o cristal partido pudesse ser remendado. Percebeu a partir de 2015, com o início da grita pelo impeachment, que, uma vez salva das ruas, a direita as usaria para acertar as contas com o lulismo.

 

A terceira hipótese é, claro, a mais instigante. Trata de fatos correntes, sobre os quais ainda é possível interferir. Nas manifestações dos últimos dias, um fenômeno sobressai. Elas são cada vez mais numerosas e potentes, apesar da ausência da esquerda institucional. A presença dos partidos e centrais sindicais é lateral, ou cosmética.

 

Mesmo a Frente Povo Sem Medo, que teve a coragem de incentivá-las desde o início, nas condições mais desfavoráveis, é muito mais uma referência política (certamente indispensável) que um poder convocatório. Dezenas de milhares de pessoas auto-convocam-se. Que mudanças de longo prazo, relacionadas à renovação da esquerda, este processo poderá suscitar?

 

Nos próximos dias, o mais importante será estimular ao máximo as novas manifestações; tentar obter, como desfecho delas, a queda do governo ilegítimo. Seria (será!?) um vendaval político histórico, com enorme poder de varrição do velho. Porém, seja qual for o resultado do episódio atual, persistirá um impasse.

 

Como construir estruturas políticas que se preocupem em ir além da representação e em reinventar a democracia – além, é claro, de impulsionar a luta por reformas estruturais?

 

É uma questão colocada em todo o mundo – e não há saídas prontas, Em países como Grécia e Espanha, a resposta, provisória, foi fortalecer ou fundar partidos-movimentos, como Syriza e Podemos. Grã-Bretanha e Estados Unidos vivem, mais recentemente, processos de aglutinação em torno dos velhos partidos de esquerda, porém com notável radicalização de suas propostas, descrédito das direções e emergência de outsiders, como Jeremy Corbin e, em menor medida, Bernie Sanders.

 

Quais serão os caminhos, no Brasil? E se o Fora, Temer, que agora enche as ruas, nos estimulasse a criar em toda a parte Comitês Contra o Golpe? E se eles pudessem manter aceso, entre uma manifestação e outra, o desejo de lutar por direitos e construir outro país possível? E se estimulassem o exame da crise brasileira e das alternativas?

 

E se se enraizassem, relacionando-se com as novas formas de política que brotam em toda a parte, às vezes tão distantes do que julgamos ser o “racional”? E se ganhassem as periferias, que ainda não intervieram nesta crise?

 

Esta busca será o tema de nosso próximo texto.

 


*Com agradecimentos a Graziela Marcheti, pela interlocução

 

12/09/2016

http://www.cartacapital.com.br/blogs/outras-palavras/a-hora-de-outra-politica

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/180208?language=es
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