Com sorte, a barbárie

30/08/2016
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 comsorte
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O debate econômico nas sociedades atuais concentra-se entre uma maior ou menor intervenção do Estado na economia. Há ainda a subjacente discussão sobre a construção de um estado de bem-estar social com um sistema de seguridade social que proteja a população do desemprego e da perda da capacidade de trabalho (por doença ou velhice). As diversas sociedades se organizam em sistemas políticos pendem entre uma ou outra opção, podendo variar conforme o tempo.

 

Um dos grandes paradigmas para o estabelecimento efetivo de uma sociedade onde o Estado garanta o bem-estar social sempre foi sua capacidade de financiar o sistema de seguridade e garantir serviços públicos básicos como saúde e educação. Uma controvérsia retórica muito bem alimentada pela direita liberal através do mantra de que o “o governo não pode gastar mais do que arrecada”.

 

Kalecki afirmou na abertura de seu “Aspectos Políticos do Pleno Emprego”que uma maioria consolidada dos economistas já seria da opinião de que, mesmo em um sistema capitalista, o pleno emprego poderia ser assegurado por um programa de gastos do governo, desde que houvesse um plano adequado para empregar toda a força de trabalho existente, e desde que a oferta de matérias-primas estrangeiras necessárias pudesse ser obtida em troca de exportações. Excetuando aqueles economistas que ingressaram no sacerdócio do Deus Mercado, Kalecki continua correto.

 

No mesmo texto, Kalecki continua e coloca que apesar da maioria dos economistas concordarem que o pleno emprego poderia ser alcançado pelos gastos do governo, não teria sido este o caso, mesmo no passado recente. Kalecki menciona como opositores da doutrina do pleno emprego proeminentes e autointitulados  “especialistas econômicos” estreitamente ligados à banca e à indústria. Em sua opinião, isso sugere um fundo político nesta oposição, ainda que os argumentos apresentados sejam econômicos. Kalecki, de modo mordaz, assevera que isso não quer dizer que as pessoas que desenvolvem essas teorias não acreditem em sua economia, mas que a ignorância obstinada geralmente configura uma manifestação de motivações políticas subjacentes.

 

Essas motivações políticas dos chamados “líderes industriais” ele subdivide em três categorias: (i) não gostam da interferência do governo no problema do emprego como tal; (ii) não gostam da direção dos gastos do governo (o investimento público e o consumo subsidiado); (iii) não gostam das mudanças sociais e políticas resultantes da manutenção do pleno emprego.

 

A primeira destas motivações parte do entendimento de que, sob um sistema de livre mercado, o nível de emprego depende, em grande medida, do chamado estado de confiança. Sem isso, reduz-se o investimento privado, e cai a produção e o emprego. Isto permite um controle indireto do capital sobre a política governamental: tudo o que possa abalar o estado de confiança deve ser evitado sob risco de uma crise econômica.

 

Entretanto, um o governo ciente de que pode aumentar o emprego por suas próprias compras retiraria a eficácia deste dispositivo de controle poderoso. Daí a demonização dos déficits orçamentários necessários para realizar a intervenção do governo. A doutrina das “finanças saudáveis” busca convencer o público de que o nível de emprego depende do estado de confiança.

 

O investimento público, em tese, deveria limitar-se a objetos que não concorrem com a iniciativa privada (hospitais, escolas, rodovias etc.) para não prejudicar a rentabilidade do investimento privado e neutralizar os efeitos positivos do investimento público sobre o emprego com o efeito negativo da queda do investimento privado. Entretanto, como o espaço é restrito para este tipo de investimento público, o governo poderia, eventualmente, ampliar sua esfera de investimento com estatizações ou serviços de utilidade pública.

 

Ainda que o gasto público se direcionasse aos subsídios ao consumo de massa (políticas de transferências de renda, subsídios aos bens de primeiras necessidades etc.), continuaria a sofrer forte oposição dos capitalistas. Isto porque se colocaria em questão um dos fundamentos da ética capitalista que exige cada um “deve ganhar o seu pão no suor”, exceto se tiver meios privados.

 

Por fim, ainda que superadas as objeções anteriores, sob um regime de pleno emprego permanente, a demissão deixaria de representar uma ameaça ao trabalhador. Aumentar-se-ia a consciência de classe da classe trabalhadora. Greves por aumentos salariais e melhorias nas condições de trabalho criariam tensão política. Ainda que os lucros possam ser mais elevados sob um regime de pleno emprego do que nas condições de livre mercado, o capital não pode aceitar perder a “disciplina nas fábricas” e a “estabilidade política”. O instinto de classe diz ao capitalista que, sob sua ótica, um pleno emprego duradouro seria inaceitável, e que o desemprego seria uma parte integrante do sistema capitalista “normal”.

 

Kalecki continua lembrando que somente os fascismos podem remover as objeções do capital ao pleno emprego. A confiança se garante porque no fascismo não há próximo governo (ainda que eventualmente haja simulacros de sucessão entre as elites), os gastos públicos se concentrariam na indústria bélica (poderíamos atualizar para os setores de grande interesse do capital) e a repressão garante a “disciplina nas fábricas” e a “estabilidade política”.

 

Caso se mantenha por um longo período um governo que busque o pleno emprego, certamente haverá uma aliança entre a indústria e banca para desmontar este tipo de política. Kalecki profetiza que “há de se encontrar mais de um economista para declarar que a situação era manifestamente frágil”. Este conjunto de forças necessariamente induziria uma guinada rumo a uma política ortodoxa para reduzir os déficits orçamentários. Somente na recessão subsequente os gastos governamentais voltariam a ser aceitos.

 

Kalecki conclui seu texto dizendo que: “Se o capitalismo puder se ajustar ao pleno emprego, uma reforma fundamental terá sido incorporada nele. Caso contrário, se mostrará um sistema ultrapassado que deverá ser descartado”.

 

As digressões dele foram feitas numa palestra dada à Sociedade Marshall em Cambridge na primavera de 1942. A história nos mostrou que o capitalismo não apenas não incorporou o pleno emprego como direcionador das políticas econômicas, como também vem se constituindo num sistema devastador para todo planeta.

 

Antes havia o freio da ameaça do socialismo real, que permitiu a construção dos sistemas de proteção e do estado de bem-estar social. Hoje sem contrapontos, o capitalismo regido pelas grandes corporações navega quase sem oposição.

 

O padrão de produção, distribuição, acumulação e consumo hoje existente nas nações europeias e americanas do norte não é reproduzível para o conjunto das pessoas do mundo. Hoje, já se consomem por ano as reservas de uma Terra e meia. Se os sete bilhões de habitantes do planeta adotassem o padrão de consumo dos Estados Unidos, seriam imediatamente necessárias quatro Terras e meia.

 

Ainda que muitos economistas apontem para soluções dentro modo capitalista de produção na construção de uma sociedade livre, justa e igualitária, a experiência tem nos dado dolorosas lições do contrário. A tentativa de um governo de conciliação dos diferentes interesses de classes no Brasil e sua derrubada por um golpe parlamentar demonstram isto de forma cabal. Engels nos colocou o dilema: “ou avanço para o socialismo, ou recaída na barbárie”. “A barbárie se tivermos sorte”, atualizou Mézsáros.

 

- Gustavo Noronha é economista do Incra

 

Crédito da foto: EBC

 

30/08/2016

http://brasildebate.com.br/com-sorte-a-barbarie/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/179840?language=en
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