Lei Maria da Penha completa 10 anos como referência, mas com problemas de execução
- Opinión
Legislação tem grande êxito no que diz respeito à esfera do debate público: mais de 98% das brasileiras afirmam conhecer o texto. / Agência Brasil
Legislação estabeleceu marcos para politicas públicas contra a violência doméstica, mas poucas foram efetivadas
Referência em âmbito internacional, a Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, completou dez anos no último domingo (7). Segundo pesquisa do DataSenado, a legislação tem um grande êxito no que diz respeito à esfera do debate público: mais de 98% das brasileiras afirmaram conhecer do que se trata o texto.
Além de tipificar como crime a violência doméstica e domiciliar, a legislação criou juizados especializados, uma rede de apoio e amparo às mulheres e previu medidas protetivas visando manter a integridade física e psíquica da mulher.
"Ela abarca a previsão de implementação de políticas públicas para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, o suporte, a construção de uma rede de apoio e amparo a mulher em situação de violência, o tratamento jurisdicional diferenciado para os casos de violência e a reeducação e reinserção do agressor quando necessário", explicou a advogada feminista Fernanda Vargues Martins, vice-presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no município de São Carlos (SP).
Juridicamente os avanços foram muitos. "Antes da entrada em vigor da Lei Maria da Penha, não existia a possibilidade de conceder medidas de proteção a mulheres em situação de violência. Também não havia a possibilidade do agressor ser preso em flagrante ou de decretação da prisão preventiva. E isso fez diferença", disse a advogada.
Para Keli de Oliveira Rodrigues, coordenadora do Centro de Atendimento para Mulheres Vítimas de Violência (CDCM) "Casa Viviane dos Santos", localizado na Zona Leste da cidade de São Paulo, a lei é um dos principais instrumentos de diálogo com mulheres em situação de vulnerabilidade. A Casa Viviane foi inaugurada em 2004, dois anos antes da legislação, e era um dois únicos centros da região. A lei, explica Keli, foi fundamental para o enfrentamento cotidiano da violência doméstica.
Ela afirma que praticamente todos os centros de atendimento orientam as mulheres com base no texto. "A sociedade, em geral, conhece a Lei Maria da Penha, mas as pessoas não chegam a conhecer com profundidade. Conseguimos, então, aprofundar este conhecimento e elas passam a ter noção do que significa uma medida protetiva, quando fazer o boletim de ocorrência, os tipos de violência… Isso fica mais claro para elas", disse.
Falhas
Contudo, os especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato são unânimes na avaliação: passada uma década, a lei ainda não foi completamente implementada e ainda possui sérios problemas de execução e estruturas que ainda precisam avançar, como a ampliação no número de casas de proteção à mulher, a expansão das delegacias e juizados especializados e uma melhor capacitação da rede assistencial.
Segundo o “Mapa da Violência 2015: Homicídios de Mulheres do Brasil”, no período anterior ao ano em que a Lei Maria da Penha foi sancionada, entre 1980 e 2006, o crescimento do número de homicídios de mulheres foi de 7,6% ao ano. Com a vigência da lei, o crescimento do número desses homicídios cai para 2,6% ao ano. O crescimento, no entanto, ainda se manteve. Apenas em cinco estados foram registradas quedas nas taxas: Rondônia, Espírito Santo, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro.
Responsável pela pesquisa, o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), acredita que o teor da lei é muito avançado - como muitas no Brasil, em especial a Lei do Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso. No entanto, as estatísticas mostram que ela ainda está em um estado incipiente de implementação, apesar de completar uma década.
"O que está atrasado é a sua realidade. As delegacias da mulher, a capacitação das pessoas que vão tratar com as casos de violência, os processos na própria justiça… Tudo isso ainda não está como deveria neste momento. E marca que há um retorno, digamos, à expansão da violência contra a mulher e dos homicídios, que é o que os dados estão indicando", afirmou o sociólogo.
Ainda segundo o Mapa da Violência, o feminicídio caiu 3,7% entre as mulheres brancas. Entre as mulheres negras ocorreu o oposto, a taxa aumentou 35% no mesmo período. Em 2013, a cada 5 mulheres assassinadas, três eram negras.
Os números revelam, para o sociólogo, que o problema está na estrutura. "Vitimiza-se hoje seletivamente. Além disso, as brancas, muitas vezes, são melhores atendidas, enquanto negras são deixadas de lado. Há toda uma estrutura de segregação e seletividade da violência. As taxas de violência contra brancas tendem a baixa enquanto para contra negras tendem a aumentar, o que aumenta também o fosso de proteção que existe entre brancos e negros na própria Justiça", criticou o sociólogo.
A Lei Maria da Penha dispõe de estudos, pesquisas e estatísticas feitas com a perspectiva de gênero e raça. Mas, segundo Fernanda, quanto à questão de classe não existem dados oficias do governo elaborados. "A violência contra a mulher tem cor e classe. Negar isso é tentar tapar o sol com a peneira. É preciso um enorme avanço nessa questão. A discussão e cobrança em relação a políticas de combate à violência e proteção visando atingir especificamente mulheres negras e/ou periféricas é urgente", disse, afirmou Fernanda.
Outra fragilidade, aponta Keli, é a rede assistencial. "Ainda faltam vagas nos centros de acolhida, existe uma precarização deste serviço. Acho que também há maneiras equivocadas de fazer o acolhimento das mulheres em situação de violência doméstica", afirmou. Segundo ela, a exigência do Boletim de Ocorrência (B.O.), que não está previsto em lei, é feita pelos equipamentos para que as mulheres acessem estes espaços.
A rede de apoio deve amparar qualquer mulher que procure seus serviços e isso não deve estar condicionado ao registro do B.O, explica a advogada Fernanda Martins. "É nessa parte que a aplicação da Lei é extremamente falha", disse. Ela pondera que deve-se atentar também para especificidades de cada mulher em situação de violência, que em muitos casos dependem da renda do agressor. "E ela sabe que o Estado é omisso e quase nunca vai ajudá-la. É essa amplitude no atendimento que a lei prevê e é mal executada", disse.
A advogada indica ainda que encontrar uma solução para o caso, que vá além da punição, pode ser mais efetiva, em alguns casos. O encaminhamento do agressor para o tratamento psicológico e psiquiátrico em casos de alcoolismo, por exemplo, teria mais impacto na vida de uma mulher do que a prisão do agressor.
Mudanças
A Lei Maria da Penha pode ser alterada devido a um Projeto de Lei em tramitação no Congresso Nacional. Caso a proposta, inicialmente elaborada pelo deputado federal Sérgio Vidigal (PDT-ES), seja aprovada, os delegados poderão expedir medidas protetivas de urgência. Hoje, esta responsabilidade cabe exclusivamente ao Poder Judiciário.
A justificativa do PL é que as medidas devem ser emitidas com maior rapidez para evitar novas agressões e tornar menos moroso o envio do pedido para apreciação do juiz. O ponto, no entanto, vem sendo questionado. Feministas acreditam que a ação pode surtir efeito contrário.
A coordenadora da Casa Viviane se posiciona contra a mudança, segundo ela, por causa dos problemas que as delegacias enfrentam. "Elas já têm dificuldades para atender as mulheres, inclusive para fazer um simples Boletim de Ocorrência. Existe seletividade das autoridades policiais e isso dificulta o acesso das mulheres pobres e periféricas, por exemplo", disse.
Ela afirma que o artigo é um retrocesso em uma lei pensada colaborativamente. "A Lei Maria da Penha foi construída a muitas mãos e é fruto do movimento feminista, então ela está muito bem elaborada. O que falta é mudar culturalmente a sociedade. A lei por si só não dá conta. As mudanças que estão sendo propostas sem a escuta da sociedade em geral podem, inclusive, ser equivocadas", sentenciou a coordenadora.
São Paulo, 05 de Agosto de 2016 às 12:10
Edição: José Eduardo Bernardes
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