Resistência democrática contra retrocesso em conquistas da cidadania
- Opinión
Segundo ironia de um economista que já teve trânsito no governo, tipo Delfim Netto, o kaiser do regime ditatorial militar, “o mal da Presidenta foi acreditar que o Datafolha era a voz de Deus”. Nos dois episódios em que Dilma interveio, forçando a queda dos juros e a queda da tarifa de energia, “ela se deixou levar pela visão de curto prazo da sociedade e adotou medidas populistas”. Ora, “populismo” é como a visão esnobe enxerga tudo que beneficia o povo – não aos empresários…
No corte de juros, na desoneração fiscal da folha de pagamentos e na redução do custo da energia, a parte do setor produtivo não beneficiado diretamente, no lugar de aplaudir, criticou. Para uma parcela dos empresários-golpistas, “Dilma e sua equipe avançaram o sinal sobre regras básicas do capitalismo, dando um tom mais estatizante à condução da economia”. Porém, o salvamento anticíclico foi por eles mesmos solicitado…
Na primeira medida, claramente necessária, pois o Brasil tinha taxa de juros muito superior aos demais países, ela teria forçado uma redução na margem de lucro usando os bancos públicos como instrumento de pressão. Na outra medida, ao forçar a diminuição das imensas taxas sobre energia elétrica, criticadas por eles mesmos, hoje eles dizem que “ela quebrou contratos, ao antecipar o vencimento de concessões já firmadas. Ali cresceu a ideia de que o governo Dilma não tinha respeito pelos contratos e regras”.
Ora, o empresariado-golpista não teve nenhum pudor em conspirar contra a democracia brasileira, supostamente em troca da sobrevivência de seu “negocinho”. As lideranças desses antidemocratas já trabalhavam propostas neoliberais para o governo golpista.
Representantes da indústria, da agricultura e do comércio queriam emplacar medidas contra o receituário social-desenvolvimentista adotado pela presidente Dilma Rousseff e aprovado nas quatro últimas eleições presidenciais. Queriam implementar, assim como o fez o ex-ministro Joaquim Levy, o programa derrotado em 2014!
Entre outras propostas neoliberais, estão na agenda a temer:
1.enterrar a ideia de recriar a CPMF – leia-se: os golpistas da Fiesp não querem pagar nenhum tributo sobre seu “caixa-dois”;
2.jamais aumentar impostos – leia-se: em teoria quem paga impostos progressivos são os ricos, na prática a tributação é regressiva e os lucros e dividendos são isentos;
3.flexibilizar das leis trabalhistas – leia-se: cortar direitos dos trabalhadores; e
4.deixar de controlar o retorno das empresas que vencerem leilões de concessões de serviços públicos – leia-se: liberar geral! Salve o livre-mercado para explorar serviços públicos sem travas!
A indústria quer que as negociações trabalhistas sejam feitas diretamente entre empresas e seus funcionários. Os empresários do agronegócio querem juntar o Ministério da Agricultura com o do Desenvolvimento Agrário, para acabar com essa tal de reforma agrária.
Em um cenário mais abrangente, querem medidas de austeridade fiscal, que eles identificam como uma das principais falhas do governo da presidente Dilma. Leia-se: cortar gastos sociais para os empresários-golpistas não terem de pagar impostos e o governo obter solvência para lhes continuar pagando os maiores juros do mundo.
Os empresários-golpistas pedem redução do número de ministérios e dos gastos públicos com funcionalismo, para desbaratar o sindicalismo de servidores públicos. Com pouca vergonha pedem “racionalização no uso dos recursos destinados a programas sociais”. E, de quebra, estímulo à economia, isto é, a eles próprios.
Na fase de conspiração para dar o golpe de Estado, a preocupação da equipe que rodeia Temer era evitar a vinculação direta com grandes empresários para não dar margem à interpretação de que seu governo trocaria a agenda social – marca do governo petista – pela agenda do capital. Agora, publicamente, Temer diz que não cortará programas sociais, como o Bolsa Família, mas na prática dos bastidores diz que “vai revê-los”.
A Fiesp, praticamente, liderou uma espécie de lockout, que foi a paralisação da economia realizada pelos patrões com o objetivo de exercer pressões sobre os trabalhadores. Visavam frustrar qualquer negociação coletiva ou dificultar o atendimento de reivindicações por greves.
“Temos de fazer um novo pacto social para reconstruir a economia”, dizem os golpistas, cinicamente, propondo isso à margem da eleição democrática. Depois do lockout empresarial e parlamentar, provocando subitamente a paralisia da economia e o desemprego — as reversões repentinas dos indicadores positivos de rendimento do trabalho e do emprego ocorreram em 2015 —, os golpistas querem ainda impor um pacto social a seu favor?!
Agora, os golpistas a la Paraguai tentarão retomar o programa neoliberal de desmanche do Estado brasileiro a favor de negócios para O Mercado. Pouco se importam com o fato que esse programa governamental foi derrotado nas quatro últimas eleições presidenciais.
Então, cabe à esquerda brasileira “lamber as feridas”, “sacudir a poeira” e “dar a volta por cima”. Para tanto, necessita entre outras tarefas políticas e culturais:
1.denunciar em todos os fóruns internacionais o golpe contra a democracia realizado pelo vice-presidente e por parlamentares que desejavam que a Presidenta eleita manobrasse para o encerramento das investigações de suas corrupções;
2.manter a resistência democrática pacífica em sua defesa contra as manobras do TSE (Gilmar Mendes & Cia.) até a eleição de 2018;
3.analisar profundamente os acertos e os erros cometidos entre 2003 e 2016;
4.avaliar a carência de recrutamento de quadros de outras gerações, além daquela da “luta armada” dos anos 60, formada inclusive por profissionais de esquerda com ensino superior e pós-graduação;
5.cessar o “culto à personalidade” do Lula e propiciar a formação de novos líderes em suas áreas de conhecimento e profissionais com representatividade política e condições de assumir postos de governo;
6.reforçar as alianças entre os distintos partidos da esquerda democrática, estabelecendo fóruns de debate para reunir o que estava dissociado, em falso conflito, no sentido de conciliar, harmonizar e fortalecer-se em um partido forte eleitoralmente, ou seja, partido representativo de massa popular e não de vanguarda;
7.ganhar aliados para suas posições, através da direção consensual no âmbito da sociedade civil, exercendo uma hegemonia democrática na base da coesão social;
8.defender o igualitarismo social no conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias: o sistema escolar, as igrejas, os partidos políticos, as organizações sindicais e profissionais, os meios de comunicação, as organizações de caráter científico e artístico etc.;
9.combater todas as tentativas de desmanche das conquistas sociais da Era Social-desenvolvimentista (2003-2014), destacadamente as ameaças à democracia como as recentes tentativas de parlamentares censurarem, via leis estaduais e municipais, a liberdade de expressão e a liberdade de cátedra;
10.avaliar a estratégia para viabilizar vitórias eleitorais sem recorrer às táticas corruptas dos adversários — é possível se eleger e governar sem alianças com partidos traiçoeiros de ideologia oposta?!
Este é um dilema para a esquerda brasileira debater profundamente: como evitar a aliança com tanta gente traiçoeira, capaz de atacar ou golpear inopinadamente. Por que tantos trânsfugas, ex-ministros que, em tempo de conflitos políticos, desertaram das suas fileiras e passaram a servir nos partidos inimigos? Esses desertores, que deixaram o partido político a que estavam filiados para filiar-se a outro que era adversário, demonstram como foram equivocadas a formação e a escolha de quadros despreparados para governar.
Cabe também analisar com empatia a razão do ex-companheiro que muda de crença ideológica, que renegou seus princípios morais e éticos, que se descuidou de seus deveres junto à reputação partidária.
A esquerda brasileira deve reconhecer que muitos companheiros se envolveram na prática da corrupção e buscar meios de evitar a repetição desse crime pessoal por parte de filiados e dirigentes. Então, estará preparada a receber apoio de todos os eleitores que, no futuro, reconhecerão: “eu era feliz entre 2003 e 2014 e, depois, deixei-me enganar”…
- Fernando Nogueira da Costa é professor titular do IE-Unicamp. Autor de “Brasil dos Bancos” (Edusp, 2012), ex-vice-presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2007)
O artigo faz parte do fórum #Governo sem voto, iniciativa em parceria com a Plataforma Política Social
Crédito da foto: Fernando Frazão/Agência Brasil (ato Brasil pela Democracia no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro)
04/07/2016
http://brasildebate.com.br/resistencia-democratica-contra-retrocesso-em-conquistas-da-cidadania/
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