O metalúrgico e o professor

16/03/2016
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FHC e Lula na década de 80. Nada restou dessa relação   Silvio Ferreira/ Folha Press  fhc lula
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O domingo 6 de março despertou com os trinados de dois colunistas do jornal O Globo. Os canarinhos sugeriam a intervenção dos militares para conter a indignação que se apoderou de muitos brasileiros. Sob o pretexto de garantir a ordem pública, os jornalistas se encarregam de desacreditar a ordem constitucional. Nos porões dos impérios da informação, os senhores da mídia fornicam com a desinformação, parindo o monstrengo do salvacionismo autoritário.

 

Em artigo também publicado no domingo nas páginas do Estadão, o ex-presidente Fernando Henrique cuidou com sensatez dos riscos que sacodem o País. Ainda que timidamente, o argumento central do meu professor Fernando advoga um acordo nacional, uma conclamação que poderia dignificar neste momento de angústia uma liderança respeitadora da democracia. No entanto, em estilo peculiar, o professor Cardoso cede ao status quo: “É tarde”.

 

Nos anos 70 e 80, testemunhei a intensa convivência entre Lula e Fernando Henrique. Cada um a seu modo exercitava a política como vocação e mediação. Mediação entre os dois sistemas de vida que regulam o equilíbrio das sociedade capitalistas: as necessidades e aspirações dos cidadãos e os interesses que se realizam através do mercado. Nesse jogo de mediação, crucial para a vida moderna e civilizada, deve-se reconhecer a legitimidade dos interesses contrapostos, um exercício permanente dos governos comprometidos com a soberania popular.

 

Eleito depois da derrocada da âncora cambial, Lula, o metalúrgico, foi acuado no início do primeiro mandato pelo terrorismo dos mercados. Tratou de não violar a partitura que registrava os acordes da prudência, sem abandonar o seu projeto de ascensão das camadas desfavorecidas. Escorregou ao não enfrentar as fragilidades da política cambial e monetária, danosas à industria brasileira.

 

No artigo estampado no Estado de S. Paulo, Fernando Henrique comemora a quase unanimidade de opinião entre os economistas “sérios” nas proposições de receitas contra a crise, à exceção dos aloprados, diz ele. No primeiro volume de seu livro de memórias, o professor Cardoso revela, de forma cortês, mágoa e arrependimento com os aloprados de sua gestão, os que escreveram peças de sublime inspiração funk a respeito da abertura comercial e financeira, sob o argumento pacóvio da semelhança entre as flutuações dos preços das bananas e do câmbio. Seria incômodo recuperar as opiniões do senador José Serra daqueles tempos? Tempos das gôndolas dos supermercados abarrotadas de verduras francesas, berinjelas italianas, tomates espanhóis e prateleiras entulhadas de quinquilharias chinesas.

 

Não bastassem os danos causados a essas raízes do Brasil, os aloprados funqueiros insistem agora na demolição do embrionário Estado Social Brasileiro, enquanto silenciam diante das vergonhas da carga tributária mais regressiva do planeta.

 

A Constituição de 1988 aplainou o terreno para o reconhecimento dos direitos sociais e econômicos, já acolhidos na posteridade da Segunda Guerra Mundial por europeus e americanos. Roosevelt, Atlee, De Gaulle, De Gasperi e Adenauer sabiam que não era possível  entregar o desamparo das massas ao desvario de soluções salvacionistas e demolidoras das liberdades. Por isso sacralizaram os princípios do liberalismo político para expurgar da vida social o arranjo econômico liberal dos anos 20, matriz dos coletivismos. Ao impor o reconhecimento dos direitos do cidadão, desde o nascimento até a morte, as lideranças democráticas subiram os impostos sobre os afortunados e, assim, ensejaram a prosperidade virtuosa, igualitária e garantidora das liberdade civis e políticas nos Trinta Anos Gloriosos.

 

Na periferia do capitalismo, o desenvolvimentismo dos anos 50 e 60 imaginou que o crescimento econômico resolveria naturalmente os desequilíbrios sociais e econômicos herdados da sociedade agrário-exportadora e semicolonial. A despeito de suas façanhas, o desenvolvimentismo transportou as iniquidades do campo para as cidades, onde, até hoje, as mazelas da desigualdade e da violência sobrevivem expostas nas periferias e nos morros.

 

Nas pegadas da Constituição Cidadã do doutor Ulysses Guimarães, as políticas sociais empreendidas por dona Ruth Cardoso e desenvolvidas com grande intensidade e acerto pelo PT fizeram avançar o projeto de redução das desigualdades. Não lograram, porém, extirpar as iniquidades instaladas no DNA da plutocracia nativa. Uns e outros tiveram de conviver com repulsas explicitadas em gestos de tapar o nariz quando “essa gente” se atreve a frequentar os ambientes outrora reservados aos bacanas. Pois foi o que aconteceu no elevador de um famoso e eficiente hospital de São Paulo. Carregada em uma cadeira de rodas, a senhora de cabedais tapou o nariz quando um enfermeiro negro ousou entrar no transportador. Como disse o bilionário americano Warren Buffett, “nós promovemos a luta de classes e estamos ganhando.” Para surpresa dos brazucas de anedota e champanhota, a vitória incomoda o bilionário. Warren faz campanha ao lado de Thomas Piketty para que os ricos paguem mais impostos. Seria uma boa ideia convidar os dois para seminários na Febraban e na Fiesp. 

 

A crise econômica, social e política em curso só vai recuar se as intolerâncias forem dissolvidas no compromisso, sem abdicar das convicções. Ela não vai ser resolvida com as truculências das burocracias que violam as leis. Muito menos haverá reabilitação da confiança depois do impeachment ou da prisão de Lula. Haverá, sim, ressentimento, incerteza política, crise social e turbulência financeira. Retomo a sabedoria do grande Mané Garrincha na Copa de 1958. Aconselhado por Feola sobre a forma de lidar com o lateral adversário, Mané disparou: “Seu Feola, o senhor já combinou com os russos?”

 

Os asseclas da finança, sem combinar com os brasileiros, repetem as banalidades que desataram os prejuízos do ajuste que desajusta. O choque de preços administrados, combinado com a escalada da taxa Selic, produziu a depressão, o desemprego, a queda da receita fiscal, last but not least a deterioração dos balanços das empresas com efeitos danosos sobre o risco de crédito carregado pelo sistema bancário. Os editoriais e os comentários econômicos e políticos fariam bem ao público leitor e telespectador se abandonassem a insistência em tratar os brasileiros como néscios.

 

16/03/2016

http://www.cartacapital.com.br/revista/892/o-metalurgico-e-o-professor

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/176106?language=es
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