Na Bolívia, é hora de passar o bastão

07/03/2016
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O primeiro governo de Evo Morales, eleito com 53,7% dos votos sob a antiga Constituição da República da Bolívia, estendeu-se de 22 de janeiro de 2006 à mesma data de 2010.

 

O segundo, como presidente do Estado Plurinacional da Bolívia eleito por 64,2% dos votantes, durou de 2010 a 2015, e o terceiro, iniciado no ano passado após eleição na qual teve 61,4% dos sufrágios, encerra-se em 22 de janeiro de 2020 e será o último.

 

A nova Constituição permite apenas dois mandatos seguidos (o primeiro, sob a Constituição antiga, não conta) e o eleitorado boliviano rejeitou no domingo 21 dar-lhe a oportunidade de mais um, que se estenderia de 2020 a 2025. 

 

O governo esperou até o fim para admitir a derrota, pois as zonas rurais, contabilizadas por último, mostraram-se mais favoráveis à continuidade, mas prometeu acatar o resultado: 51,37% “Não” e 48,63% “Sim”, com votos favoráveis concentrados nos departamentos de La Paz, Cochabamba e Oruro e a oposição mais forte em Santa Cruz, Beni e Tarija. Uma diferença menor do que a apontada pela maioria das pesquisas, focadas nas cidades.

 

O vice-presidente Álvaro García Linera atribuiu o resultado à “confusão sobre a pergunta, unidade da oposição, guerra suja e redes sociais”. O primeiro fator não parece ter sido muito relevante, pois o governo foi apoiado nas regiões e camadas sociais que tradicionalmente o respaldam, mesmo se estas em geral são as mais humildes.

 

A articulação das oposições e das mídias conservadoras era de se esperar, bem como a falta de escrúpulos. Talvez também devesse ser levado em conta o incômodo de quem, mesmo partidário da esquerda, rejeita o personalismo. Não só a direita, como também a extrema-esquerda fez a campanha pelo “Não”.

 

Tanto pela popularidade quanto por indicadores objetivos, Morales é o mais bem-sucedido dos governantes bolivarianos surgidos no início do século XXI. 

 

Seu governo, o mais longo da história da Bolívia (supera, desde outubro, o general Andrés de Santa Cruz), trouxe estabilidade democrática a um país conturbado desde a Independência por golpes de Estado e revoltas populares, integrou a maioria indígena excluída desde a conquista espanhola e prestigiou sua cultura, erradicou o analfabetismo, reduziu a pobreza, restaurou o controle nacional do gás e petróleo, proporcionou um desenvolvimento independente e sustentado e caminha para industrializar a nação e reduzir a dependência de commodities

 

Desde 2006, a economia da Bolívia cresceu à média de 5,1% ao ano, o PIB triplicou, a dívida caiu, as reservas são proporcionalmente as maiores do continente e a inflação permanece em bem-comportados 2,78%.

 

É uma lista respeitável de conquistas e justifica até certo ponto os agradecimentos a Pachamama (a Deusa Mãe andina) e a celebração digna de um imperador inca de sua década de governo, realizada em janeiro entre as ruínas de Tiwanaku.

 

Não deveria, porém, dispensá-lo de aceitar limites, promover novas lideranças no seu Movimento ao Socialismo (MAS) e apoiar uma delas para a sua sucessão. 

 

Dito isso, não se deve ignorar o papel dos Estados Unidos na coordenação das oposições. Evo Morales é uma pedra no sapato do Departamento de Estado desde os anos 1990, quando liderava como sindicalista os camponeses cocaleros contra as pretensões dos EUA de erradicar seu modo de vida em nome da “Guerra às Drogas”.

 

Washington pressionou pela cassação de seu mandato de deputado em janeiro de 2002, por suposta (e jamais provada) cumplicidade na morte de um militar e um policial na repressão a seus partidários. 

 

Ainda em 2002, quando se candidatou pela primeira vez à Presidência, o embaixador de George W. Bush ameaçou cortar o apoio econômico à Bolívia, caso ele se elegesse presidente. Àquela altura, Morales estava em alta, mas com apenas 12% das intenções de voto.

 

Quatro dias depois, em boa parte graças à intromissão de Tio Sam, ficou em segundo lugar com 20,9%, ante 22,5% de Gonzalo Sánchez de Lozada. Credenciou-se como principal líder da oposição e comandou os protestos contra o acordo de exportação de gás que derrubaram seu rival no ano seguinte.

 

Sucederam-se governos provisórios que tentaram se equilibrar entre o Departamento de Estado dos EUA e as massas populares, parte das quais tinha líderes mais radicais do que o atual presidente, até que este pôde novamente concorrer e, pela primeira vez na história da Bolívia, ganhar uma eleição por maioria absoluta. 

 

As pressões de Washington continuaram e se transformaram, em 2008, em campanha de desestabilização, com apoio financeiro e logístico aos protestos separatistas dos departamentos do leste, liderados por Santa Cruz.

 

A Bolívia chegou à beira de uma guerra civil, evitada graças à mediação da Unasul, mas Morales venceu tanto o referendo revocatório, por 67,4%, quanto o plebiscito pela nova Constituição, por 61,4%. O embaixador dos EUA e a DEA foram expulsos e Washington retirou o Peace Corps e a ajuda militar, sem que isso prejudicasse a economia ou a lealdade dos militares ao governo. 

 

A expectativa de que o governo de Barack Obama levasse a uma melhora drástica no diálogo entre os EUA e a Bolívia frustrou-se.

 

As relações diplomáticas foram restauradas em novembro de 2011 sem que se chegasse a nomear um embaixador, mas La Paz continuou a criticar a política externa de Washington e as relações caíram em um novo ponto baixo em julho de 2013, quando Morales voltou de uma visita à Rússia e teve o avião presidencial bloqueado e revistado por autoridades europeias a serviço dos EUA, cujo serviço secreto erroneamente acreditou que o dissidente Edward Snowden estava a bordo para se asilar no país andino. 

 

Assim, a suspeita de envolvimento dos EUA na campanha pelo “Não” está longe de ser absurda. Na primeira semana de fevereiro, Carlos Valverde, apresentador de tevê e ex-chefe da inteligência do governo de Jaime Paz Zamora (1989 a 1993), revelou a certidão de nascimento, em 2007, de um filho do presidente com a advogada Gabriela Zapata, atual gerente comercial da China CAMC Engineering, empreiteira com 560 milhões de dólares em contratos com o governo.

 

Morales admitiu o relacionamento, mas este teria acabado pouco depois, quando o filho morreu ainda bebê. Zapata só veio a trabalhar para a empresa chinesa em 2013.

 

O presidente pediu à Controladoria uma investigação da empresa, mas seu ministro da Presidência apontou que Valverde se reuniu em dezembro com o atual encarregado de negócios dos EUA, interessado em evitar tanto a reeleição quanto a presença da China na América Latina. 

 

É um padrão que se repete no continente. Os EUA favorecem os governos dóceis aos interesses de suas transnacionais, principalmente aqueles engajados na Aliança do Pacífico e no Tratado Transpacífico (México, Colômbia, Peru e Chile), enquanto os avessos a essa dependência sofrem assédio político interno e econômico externo.

 

No Brasil, vê-se como a campanha pela destituição do governo articula-se àquela pela abertura do pré-sal às transnacionais do petróleo e mobiliza quase exatamente os mesmos nomes.

 

Isso não tira aos governos de esquerda latino-americanos a responsabilidade por seus erros e um deles é a dependência excessiva de lideranças carismáticas, cujos riscos hoje se mostram com mais clareza na Venezuela.  

 

A possibilidade de escolha é necessária, mas a alternância não é um fim em si. Se as oposições têm a possibilidade de apresentar e divulgar suas propostas e um projeto de governo e nação continua a ser aprovado e sustentado pela maioria, não há razão para não continuá-lo por décadas a fio.

 

Mas onde há personalização não há politização. Quanto mais a responsabilidade por um processo é atribuída a um indivíduo, menos se governa de fato e mais os quadros se tornam irresponsáveis e as bases passivas e acomodadas.

 

Quem não participa das decisões não se compromete com sua execução ou fiscalização e se torna politicamente indiferente, mesmo quando está em risco a sobrevivência do movimento que melhorou seus padrões de vida.

 

A isso se soma a tendência crescente do próprio governante de julgar seus colaboradores mais pela lealdade pessoal do que pela capacidade de pôr um projeto em prática, cercar-se de aduladores e perder o contato com a realidade.

 

O debate necessário para a definição de um sucessor tem seus riscos, pode alimentar divisões e rivalidades e não basta para garantir a pluralidade ou a democracia partidária, mas a impossibilidade de admiti-lo é mau sinal. Não há como dizer que uma nação foi transformada se um líder é tido como insubstituível.

 

No Equador, a Aliança PAIS de Rafael Correa, no poder desde 2007, fez aprovar uma emenda pela reeleição indefinida, mas esta não será válida para a eleição de fevereiro de 2017 e Correa anunciou a intenção de deixar a política. Tanto o atual vice, Jorge Glas, quanto o anterior, Lenín Moreno, se mostram capazes de derrotar a oposição nas pesquisas.

 

Na Bolívia, faltam mais de três anos e meio para a próxima eleição e, se o MAS é um partido digno desse nome, é tempo mais que suficiente para encontrar quem possa continuar o trabalho de Morales e conquistar a confiança dos bolivianos.

 

*Reportagem publicada originalmente na edição 890 de CartaCapital, com o título "Hora de passar o bastão"

 

07/03/2016

http://www.cartacapital.com.br/revista/890/hora-de-passar-o-bastao

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/175871?language=es
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