Os grandes desafios de hoje às conferências de direitos humanos

19/02/2016
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“Tratar a humanidade como um fim em si implica o dever de favorecer, tanto quanto possível, o fim de outrem. “, disse Kant. emmanuel kant
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Os poderes econômicos contrários às garantias devidas aos direitos humanos, particularmente os sociais, têm um poder de divulgação, defesa e imposição bem superior às previstas nos ordenamentos jurídicos internacionais e nacionais para impedir o desrespeito devido à dignidade de todo o ser humano, fundamento desses direitos.

 

Uma ideologia fortemente individualista e privatista como essa conta com um apoio financeiro e midiático, dedicado quase exclusivamente à proteção da segurança das pessoas, como se todo o direito se resumisse nela e fosse responsabilidade exclusiva do Estado. Incutindo-lhes diariamente um medo pânico da violência característica de hoje, disseminada em toda a parte, para enfrentamento da qual só se considera responsável o Estado, impede-se qualquer questionamento sério dessa realidade onde ela é mais injusta. A segurança é reservada apenas para quem já é capaz de segurar alguma coisa, própria dos titulares de direitos patrimoniais, mas não para quem não tem nada, embora seja titular de direitos sociais.

 

Assim, os injustos efeitos da moderna globalização dos mercados são escondidos por trás das suas “necessidades”, impondo serem satisfeitas, e são sofridos, por grande parte das suas vítimas, como fatalidade sem remédio. As responsabilidades jurídicas por esse dano são de difícil, senão impossível, identificação e sanção, pois a satisfação das necessidades das vítimas, mesmo as vitais, é vista como pondo em risco as do capital, refletido naqueles mercados.

 

Essa espécie de medo estigmatiza todas/os as/os defensoras/es de direitos humanos, frequentemente criminalizando a sua militância política e a sua prestação de serviços jurídicos, seja pelo que fazem, efetivamente, seja pelo que o imaginário paranoico desse medo dita como ilícito penal. A história se encarrega de venerar como heróis, quase sempre depois de elas/es já terem virado pó, pessoas vítimas dessa mesma forma de preconceito. Isso faz sentido: depois de mortas, já não incomodam mais.

 

Essa desigualdade de poder tem levado a lei a colocar os direitos humanos num patamar capaz de não exacerbar o medo, contendo sua existência e validade nos limites da conveniência dele e não são poucas/os as/os intérpretes da lei aceitarem isso, até de forma ingênua ou inconsciente. Com base num estudo de Marilena Chauí, Maria Victoria Benevides (in “Educação, Cidadania e Direitos Humanos”, Petrópolis: Vozes, 2004, p. 50) denunciou o fato:

“…de certa maneira, parece necessário às classes dominantes criminalizar as classes populares, associando-as ao banditismo e à violência; porque essa é uma maneira de circunscrever a violência, que existe em toda a sociedade, apenas aos “desclassificados”, que, portanto, mereceriam todo o rigor da polícia, da suspeita permanente, da indiferença diante dos seus legítimos anseios. Essa é uma das razões para a ênfase que se dá, nos meios de comunicação de massa, à violência associada à pobreza, à ignorância e à miséria. É o medo dos de baixo se revoltarem, um dia, que motiva os de cima a manterem o estigma sobre os direitos humanos. Estigmatizando os direitos humanos pretendem, também, eliminar a ideia democrática da igualdade e da solidariedade, mantendo-se intactos os privilégios de uma nova “nobreza” criada pelo capitalismo.” (Marilena Chauí)

 

Por força dessa desigualdade, o grau de resistência das muitas vítimas de ameaça e violação desses direitos sofre uma tentação contínua de desanimar, desistir de fazer frente à injustiça social característica desse poder dos “de cima”. Talvez nisso resida o principal desafio das Conferências de direitos humanos que o país está realizando, em boa hora. Se o pais todo está mergulhado em crise, como se propala, isso não pode nem deve assustar a fé de quem acredita e luta em defesa desses direitos, pois, para essa, a crise é permanente, se nutre e reproduz pela própria natureza do sistema econômico aqui vigente. Nenhuma é tão grave como a que os ameaça e infringe.

 

Não importa que, à direita, por considerá-los estorvo, e à esquerda, por considerá-los uma invenção de burguesia para manter a sua dominação, os direitos humanos continuem atacados e até humilhados com um passivo grande de muitas derrotas. O paradoxo reside no fato de, nessas mesmas derrotas, existir um sinal seguro de suas vitórias, provado historicamente, porque todas essas vitórias passaram por demoradas e dolorosas fases, identificadas pela íntima prestação de serviço que antecedeu seus êxitos, às multidões de derrotadas/os também por todo o todo o tipo de poder, lei, Estado e sociedade. À leitura de qualquer Declaração desses direitos, é fácil provar-se terem sido conquistados por iniciativa conjunta das próprias vítimas da sua violação e de quem foi solidário, companheira/o delas. De um protagonismo ético-político como esse, renovado agora nas Conferências, elas tem provado ser estranha a liberdade dos mercados. Essa por preferir libertar coisas, como mercadorias, não se interessa em libertar gente.

 

Presentes nessas Conferências, então, vão-se reencontrar quantas/os sofrem agressões à sua dignidade própria e quem as/os defende. Desde um povo pobre e miserável, índias/os, catadoras/es de material, sem-terra e sem-teto, quilombolas, atingidos por barragens, crianças, idosas/os, mulheres e homens discriminadas/os por sua orientação sexual, negras/os a pardas/os separadas/os por preconceitos de raça e etnia, até ONGs e lideranças de entidades, coletivos, organizações e movimentos populares dedicados à defesa da humanidade inteira, já que toda ela titula esses direitos.

 

Com toda a certeza não partirão da fria previsão legal dos direitos humanos, mas sim do testemunho vivo das vítimas da sua violação. Uma análise rigorosa das causas dessa injustiça – como a do poder do capital, refletido em exclusão social, dos paradigmas dele servos na interpretação das leis, do Poder Público ineficiente na sustentação das garantias desses direitos, da indiferença planetária com a pobreza, a opressão, a repressão e a desigualdade resultante disso tudo, da inimizade até com a a terra e a natureza – vai dar às/aos participantes dessas Conferências as condições prévias ao planejamento, execução e avaliação da sua atuação militante no presente e no futuro.

 

Há de ser um trabalho duro mas feito com prazer e alegria, como sempre acontece nesses encontros, pois os direitos humanos, muito mais do que quaisquer outros, refletem a possibilidade jurídica de se ultrapassar o poder que a própria lei tem se mostrado insuficiente de garantir, como o da felicidade, por exemplo. Kant, contestado em muitas outras coisas, parece ser difícil contrariá-lo numa das suas lições diretamente relacionadas com o direito e a justiça, lembrada por Fabio Konder Comparato e muito oportuna para iluminar nossas Conferências (“A afirmação histórica dos direitos humanos”, São Paulo: Saraiva, 1999, pág. 21). Com ela, deixo aqui o meu abraço a todas/os participantes das nossas Conferências de Direitos Humanos:

“… se o fim natural de todos os homens é a realização de sua própria felicidade, não basta agir de modo a não prejudicar ninguém. Isto seria uma máxima meramente negativa. Tratar a humanidade como um fim em si implica o dever de favorecer, tanto quanto possível, o fim de outrem. Pois sendo o sujeito um fim em si mesmo, é preciso que os fins de outrem sejam por mim considerados também como meus.”

 

fevereiro 19, 2016

https://rsurgente.wordpress.com/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/175523?language=es
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