Democracia e Economia: a urgência das reformas estruturais
- Opinión
Até onde a democracia deve prevalecer numa sociedade? Que temas da vida pública os regimes democráticos devem enfrentar na construção da qualidade de vida na polis? Qual o significado da expressão “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos dessa Constituição” (artigo primeiro, parágrafo único da Constituição Federal de 1988)? Como deve se desenvolver a relação entre “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (inciso IV do artigo primeiro da mesma Constituição)? Qual o alcance da “soberania”, como fundamento descrito no mesmo artigo, em seu parágrafo primeiro?
Tais questões, que desde 1988 pairam sobre nossas consciências, assumiram relevo especial nos últimos anos, em especial na década posterior à promulgação da Constituição Federal. Por que razão?
De 1989 em diante, o mundo tomou conhecimento de uma nova doutrina para assuntos econômicos nas relações entre o Estado e a sociedade, claramente descrita por Paulo Nogueira Batista no documento “O Consenso de Washington: A visão neoliberal dos problemas latino-americanos”, de 1994. O país mal saíra de uma ditadura, instaurada em 1964 para conter o avanço de ideias reformistas, combatidas como se fossem a implantação de um regime comunista no Brasil.
Aqui, a economia e a demografia haviam dado um salto em algumas décadas, iniciado com o surgimento de alicerces industriais ao lado de antiga base agrária e, posteriormente, o deslocamento de expressivo contingente populacional rural, urbanizado de forma precária e desigual. Além disso, no plano das relações externas, com vistas a forjar seu processo de “modernização” e de aceleração de sua industrialização, a nação fora seduzida na década anterior (1970), com outros países periféricos, a um agressivo processo de endividamento, dada a abundância de crédito nos mercados externos.
As bases em que fora constituído esse endividamento, porém, fizeram ruir a estabilidade interna-externa de nossa economia quando se rompeu, por iniciativa do governo americano, a paridade dólar-ouro, levando-nos à crise da dívida externa e seu grave impacto nas finanças nacionais.
A Constituição Federal de 1998 nasceu, portanto, na seara da economia, após o enfrentamento do endividamento externo e da sucessão de planos anti-inflacionários frustrados, num vazio de perspectivas para a economia, o que gerou a ação ordenada de bancos e instituições financeiras pela criação de seus departamentos de economia, que passaram a produzir relatórios, indicando “especialistas” a serem entrevistados pela mídia, fornecendo-lhe assim a compreensão “racional” dos fatos econômicos, já, desde ali, assentados em complexa linguagem matemática.
Aos poucos, se consolidou a hegemonia do capital financeiro na produção cotidiana da notícia acerca daquela temática (PULITI, 2013). Tal processo acelerou o divórcio entre a economia e a democracia. Progressivamente, sob comando dessa lógica, a economia virou ciência exata, construindo argumentos que passaram a desqualificar as contribuições da esfera democrática para os seus rumos.
A ação de parlamentares e seus partidos nesse campo passou a ser considerada “populista”, “demagógica”, produzida sob o manto da “irresponsabilidade fiscal”, acolhidas e promovidas, porém, as manifestações dos representantes de bancos e outras instituições, como consultorias, financeiras, gestores de fundos, em especial aqueles reunidos em torno da Pesquisa FOCUS, interlocutores privilegiados do Banco Central na formulação das expectativas de inflação, entre outros números da economia e das finanças públicas.
A análise dos números e as decisões sobre os temas da economia, em especial sobre juros e câmbio, inflação e política fiscal, aspectos críticos dessa área em qualquer país, foram assim subtraídas do parlamento, ambiente de exercício da democracia representativa, restando ao Congresso Nacional, Câmara e Senado, o varejo dos interesses de seus membros e das cúpulas partidárias, a liberação de verbas orçamentárias, a indicação de aliados à ocupação de cargos públicos na administração federal, entre outros mimos que passaram a sustentar a relação de fidelidade às ações dos governos de plantão.
Nesse processo, a produção acadêmica dos centros de pesquisa e pós-graduação em economia de nossas universidades, em especial nas federais, bem como os estudos de entidades oficiais ou não (IBGE, IPEA, IEDI ) foram perdendo voz e vez no espaço essencial da democracia (o Parlamento), ali crescendo, já consolidados na mídia, como vetores de influência, as pressões das agências internacionais de classificação de risco (IWATA, 2012), pareceres, artigos de opinião e relatórios de consultorias privadas da área financeira, com astronômico desequilíbrio em termos de espaço na mídia impressa, radiofônica ou televisiva.
Dessa forma, contra o “populismo” político dos parlamentares e seus partidos prevaleceria então a “ visão técnica ” de consultores e economistas de bancos, banindo-se as “tentações em atender ao eleitor”, substituídas pela “razão”, expressa nas equações matemáticas, sustentáculo das explicações macroeconômicas dos porta-vozes de instituições financeiras.
Ora, sobretudo a partir dos séculos XIX e XX, a análise econômica revelou interpretações de seus fatos com expressiva diversidade de opiniões, até conflitantes em seus diagnósticos e nas soluções apontadas para seus problemas. Se Keynes foi vitorioso após 1945, o keynesianismo seria duramente atingido após 1970 e, ao lado do marxismo, considerado derrotado após 1989. Com que objetivo? A favor de que interesses? Quais as consequências dessa ruptura para países em desenvolvimento?
Podemos afirmar quais são: O esvaziamento da ação coletiva pública a favor da polis e sua submissão à corrupção e ao varejo dos interesses individuais da maioria dos parlamentares e das cúpulas de seus partidos, o enfraquecimento do debate assentado nas diversas correntes de pensamento, com sua substituição passiva às superestruturas de poder e interesse dos grupos econômicos e políticos que buscam a acumulação do capital na esfera financeira.
É óbvio que as mudança de planos, práticas e valores de parte, senão da maioria, dos partidos de esquerda no país facilitou essa hegemonia, haja vista a submissão das alianças lideradas pelo PT desde 2002 aos dogmas macroeconômicos de mercado (CARNEIRO, 2006), o afastamento de suas históricas bases sociais que e o divórcio entre o apoio recebido dessas bases, sobretudo em 2014 e desde o último 16 de dezembro, e a continuidade de políticas de ajuste fiscal, mantido o figurino herdado de 1999 após o acordo do governo FHC com o FMI.
Agora, para superarmos esse atraso com um outro programa de governo e de desenvolvimento, devemos pautar na esquerda e no restante da sociedade, como tema estruturante, a macroeconomia.
Trata-se de fazermos o debate das causas, da natureza da inflação brasileira e dos meios de se combatê-la, das relações entre os juros, o câmbio e os investimentos na esfera produtiva, do papel do Banco Central e a política monetária.
É essencial o debate transparente da tributação, da política fiscal e do desenvolvimento, focando tanto as preocupações de curto prazo quanto os projetos de médio e longo prazo, com destaque para o papel da educação e da inovação na construção da cidadania ativa, do acesso ao trabalho com dignidade e produtividade.
É urgente também o enfrentamento das reformas estruturais, na tributação, no desenvolvimento urbano, nas comunicações e no sistema financeiro, a reforma agrária, bem como da inserção brasileira na economia mundial com novas matrizes produtivas e de maior valor agregado.
Recolocar a economia sob comando da democracia de forma crítica, massiva e qualitativa e construir uma situação oposta à nefasta e arrogante supremacia dos mercados e sua desqualificação da democracia, o que há anos prevalece, são os desafios de fato para ontem, hoje, amanhã e para 2018.
Referências:
CARNEIRO, Ricardo (org.) – “ A Supremacia dos mercados e a política econômica do governo Lula”, Editora Unesp,2006, São Paulo
IWATA, Ricardo K. “ Ordem Mundial e Agências de Rating: O Brasil e as agências na era global 1996-2010”, Editora Senac, 2012, São Paulo
PULITI, Paula – “ O juro da notícia –Jornalismo econômico pautado pelo capital financeiro”, Editora insular, 2013, Florianópolis, Santa Catarina.
- Paulo Rubem Santiago é Professor da UFPE, membro da Executiva Nacional do PDT e presidente da Fundação Joaquim Nabuco
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