O kirchnerismo balança, mas não cai

Embora Scioli seja o governador de Buenos Aires e um dos políticos mais populares do partido, Kirchner não o considerava um aliado próximo.

21/08/2015
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 scioli
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O fim do kirchnerismo, no poder desde 2003, é anunciado desde 2004. Analistas da mídia conservadora e portenhos de classe média chegaram a convencer-se de que Cristina Kirchner não chegaria ao fim de seu segundo mandato. Pesquisas de 2014 e do primeiro semestre deste ano indicaram Mauricio Macri, líder da oposição mais conservadora, ou Sergio Massa, líder dos peronistas dissidentes, como favoritos para a eleição presidencial.

 

Em 9 de agosto deram-se as eleições primárias, obrigatórias para a definição de candidatos pelos partidos por lei de 2011. O pré-candidato único do kirchnerismo, Daniel Scioli, obteve 38,4% dos votos válidos, pouco menos que os 40% com 10% de vantagem sobre o segundo colocado necessários para vencer no primeiro turno em 25 de outubro (também se pode vencer em primeiro turno com 45%, seja qual for o resultado dos demais candidatos). Salvo no sentido trivial de que em 10 de dezembro a Argentina não será mais governada por um chefe de Estado de sobrenome Kirchner, pode-se mais uma vez, desde já, considerar exageradas as notícias sobre o falecimento do kirchnerismo. Mesmo derrotado, seria a principal oposição. 

 

A frente amplíssima do prefeito Macri obteve 30,1%, somados os pré-candidatos da Proposta Republicana (PRO), o próprio empresário de direita (24,3%), o da envelhecida e tradicionalmente social-liberal UCR, encabeçada por Ernesto Sanz (3,4%) e a da jovem e supostamente centro-esquerdista Coalizão Cívica, Elisa Carrió (2,3%). Os peronistas dissidentes conseguiram 20,63%, entre Massa (14,2%) e seu rival José Manuel de la Sota (6,4%). Além disso, os “Progressistas” liderados pelo Partido Socialista tiveram 3,5%, a Frente de Esquerda trotskista, 3,3%, e o “Compromisso Federal” liberal de Rodríguez Sáa, 2,1%. Outros cinco grupos de esquerda conseguiram menos de 1,5% e foram com isso inabilitados.

 

Mauricio Macri, líder da oposição mais conservadora, também é grande força nas eleições de 2016

 

 

A abstenção foi de mais de 26% e 5,5% de votos foram brancos e nulos, o que reduziria o apoio a Scioli a meros 26,3% dos eleitores. Mas mesmo se estas foram eleições primárias sem precedentes, esses números não são particularmente preocupantes. A abstenção foi de 21% tanto nas presidenciais de 2011 quanto nas legislativas de 2013, com votos brancos e nulos entre 4% e 5%. No mínimo, a primária pode ser vista como uma pesquisa que consultou três quartos do eleitorado e, certamente, é mais confiável do que qualquer amostragem convencional.

 

Pode não ter sido o candidato ideal para a presidenta. Embora Scioli seja o governador de Buenos Aires, a maior e mais rica província argentina, e um dos políticos mais populares do partido, ela não o considerava um aliado próximo. Evitou prestigiá-lo até junho de 2013, quando a ruptura de Massa dividiu o partido em um momento de fragilidade do governo de Kirchner. Esta deixou de lado as ressalvas e os vagos planos de escolher um herdeiro mais fiel à sua linha para respaldar quem tinha mais chances de levar seu partido à vitória e convenceu o ministro do Interior, Florencio Randazzo, mais simpático à esquerda, a desistir. 

 

Filho do dono de uma rede de lojas de eletrodomésticos, Scioli vem de uma família mais do que abastada, tanto que, em 1977, teve de negociar o resgate do irmão mais novo, sequestrado por montoneros. Formou-se em Administração de Empresas e dirigiu a Electrolux na Argentina, mas ficou mais conhecido como campeão de motonáutica. Começou a disputar em 1986, perdeu o braço direito em um acidente numa corrida de 1989, mas voltou a vencer vários campeonatos nos anos 1990. Foi na qualidade de ídolo esportivo (assim como Carlos Reutemann) que Carlos Menem o convidou a entrar no Partido Justicialista (peronista) e venceu a primeira eleição, para deputado federal, em 1997. Foi ministro de Eduardo Duhalde, vice-presidente de Néstor Kirchner e é governador de Buenos Aires desde 2008.

 

Ele tem certa dose de carisma, mas, para vencer no primeiro ou no segundo turno, Scioli vai precisar dos votos da esquerda. Tem feito o possível: apesar de sua história, ele e o irmão não tiveram dificuldades em colaborar com ex-montoneros nos governos dos Kirchner, que, embora tivessem apoiado a política neoliberal de Menem, lideraram pragmaticamente como nacionalistas de centro-esquerda após o fracasso da conversibilidade criar a necessidade de desafiar os credores e as transnacionais. Apesar da reputação de “kirchnerista moderado”, o atual governador faz campanha na mesma linha, defendendo o desenvolvimentismo baseado na integração dos “mais humildes” e a aliança regional na “Pátria Grande”. Desde abril, viajou pela América Latina para obter o apoio de Lula, “grande referência latino-americana e grande protagonista de todas as mudanças e transformações na região”, e depois fez o mesmo com Pepe Mujica, Michelle Bachelet, Tabaré Vázquez, Dilma Rousseff e Raúl Castro.

 

Macri, apesar da aliança com um partido nominalmente de esquerda, representa inequivocamente a direita mais dura. Massa optou por um discurso de “terceira via” e por disputar com Macri o apoio patronal, postura que ante a polarização de se esperar na reta final provavelmente se mostrará contraproducente e resultará na divisão de seus votos entre as forças tradicionais, como se viu no Brasil com Marina Silva. Lá como cá, a esquerda mais “autêntica” terá de optar entre cortejar o retrocesso certo com o voto nulo e torcer o nariz para dar apoio crítico à continuidade. Da mesma forma, a vitória eleitoral parece ser um problema bem menor do que as dificuldades de governar em clima de crise mundial.

 

*Reportagem publicada originalmente na edição 863 de CartaCapital, com o título "Balança, mas não cai"

 

21/08/2015

http://www.cartacapital.com.br/revista/863/balanca-mas-nao-cai-2128.html

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/171892?language=en
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