Soberania e governança digital

Cabe, então, nos perguntarmos que implicações poderiam ter essa revolução digital para o nosso futuro, como afetar seu curso e como reduzir a vulnerabilidade que gera essa alta dependência tecnológica.

17/06/2015
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 globo
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Podemos imaginar a vida sem tecnologias digitais? Sem celular, SMS, e-mail e sem redes sociais; com semáforos dessincronizados, computadores em greve, centrais telefônicas colapsadas, congestão nos bancos, satélites desconectados, etc.  Faz somente duas décadas que nós desconhecíamos esses inconvenientes e o pesadelo que seria prescindir deles. Agora as tecnologias digitais se transformaram no sistema nervoso central da economia, da informação, da investigação, da política, inclusive dos modos de organização da sociedade e, em boa medida, das formas de inter-relação pessoal.

 

Cabe, então, nos perguntarmos que implicações poderiam ter essa revolução digital para o nosso futuro, como afetar seu curso e como reduzir a vulnerabilidade que gera essa alta dependência tecnológica.

 

Por estarem tão imbricadas em nossas vidas, essas tecnologias se tornaram transparentes: frequentemente já nem as percebemos e, justamente por isso, nos preocupamos pouco em considerar os riscos ou os impactos negativos possíveis. Sem dúvida, as denúncias de Edward Snowden sobre espionagem cibernética constituíram um sinal de alerta a respeito dos perigos de um sistema capaz de vigiar todo o mundo o tempo todo. Mas as implicações são muito mais amplas. Deixar “pela sorte” a evolução dessas mudanças significa, na prática, deixar que elas determinem o mercado (mundial) ou outros poderes - por fora dos critérios democráticos ou do interesse público -,  fato que afeta a configuração  mesma do poder.[1]

 

Os Estados Unidos, super-potência nesse assunto, tem isso claro. Suas grandes corporações dominam quase todas as áreas do fazer digital, desde as infraestruturas bases da rede de redes, passando pelo comércio eletrônico, o mercado publicitário, os buscadores e o armazenamento de dados[2]. Para manter sua posição dominante, o governo estadounidense defende um mercado desregulamentado para suas corporações transnacionais (mas com regulação máxima na proteção da propriedade intelectual), que é impulsionado mediante a negociação de acordos de livre-comércio ou em organismos mundiais como a Organização Mundial de Comércio. Também impulsiona sua supremacia tecnológica, que abarca a capacidade de vigilância e espionagem, a mineração (exploração) de dados e o desenvolvimento de armas cibernéticas, entre outros. E procura manter o controle dos mecanismos de governança globais da Internet.

 

Na América Latina, embora os responsáveis políticos da região estejam entendendo cada vez mais o alcance dessa revolução digital e a importância de tirar proveito dela, parecem ainda ter pouca capacidade de resposta a respeito de suas implicações no que concerne à redistribuição de poder, ou frente ao risco subjacente de expor os países da região a novas formas de dependência e neocolonialismo. Entre as áreas chave da intervenção estariam a soberania, segurança e governança global.

 

Soberania e segurança

 

O cyber espaço deixou de ser simplesmente uma realidade virtual ao se transformar no coração de um sistema supranacional, que constitui uma dimensão nova do planeta, que se agrega ao território, ao subsolo, à atmosfera e ao espaço ultraterrestre. Sua particularidade é ser um espaço ilimitado; embora, como as demais dimensões, possa ser colonizado e objeto de lutas de poder e de domínio. Conseqüentemente, além do seu potencial para o desenvolvimento, ele tem implicações fundamentais para a soberania nacional e regional; não obstante, por esse mesmo caráter supranacional, nenhum país pode exercer essa soberania de maneira isolada.

 

Esse fato, combinado com a lógica da convergência das novas tecnologias (tudo é código binário, então podem passar pelos mesmos canais) implica que a crescente dependência dos sistemas digitais, em quase todos os âmbitos, cria uma grande vulnerabilidade, em proporções que nossos países não haviam conhecido antes e que estão mal preparados para enfrentar. Para citar um exemplo, 98% do tráfego do Internet entre América Latina e o resto do mundo, e aproximadamente de 70 a 80% do tráfego interno da região, transita por servidores do EUA para chegar a seu destino. Ou seja, uma mensagem que se envia de Montevidéu a Buenos Aires pode transitar por vários servidores dos EUA no seu caminho.  Isso não somente aumenta os custos das comunicações, mas torna sua segurança vulnerável.

 

A região está apenas acordando para a necessidade de desenvolver a capacidade de soberania tecnológica. A construção em curso do anel ótico sul-americano e o projeto de um cabo subaquático entre Brasil e Europa, são sinais positivos nesse sentido, mas insuficientes.

 

Entre os assuntos a considerar com urgência está a codificação das mensagens como norma obrigatória para toda a comunicação. O Brasil a contempla em seu Marco Digital, adotado este ano; mas para que seja efetivo é necessário acordos internacionais.[3] Uma etapa intermediária, de simples execução, seria estabelecer acordos entre os países para que forcem suas companhias das telecomunicações a codificar as comunicações entre elas.  Como ponto de partida, esse marco poderia acordar espaços de integração, como a UNASUL. Além disso, para uma maior segurança, seria aconselhável não depender dos sistemas de codificação desenvolvidos por potências mundiais como os EUA, pelo menos para as comunicações intra-regionais, o que implica desenvolver capacidades próprias.

 

Também se poderia pensar na instalação de grandes servidores nacionais e/ou regionais para o armazenamento seguro dos dados na nuvem, com legislações apropriadas para proteger a propriedade e a confidencialidade.

 

Outro aspecto, talvez mais complexo, é a enorme influência cultural exercida pelas companhias transnacionais de comunicação.  Seus modelos comerciais e algoritmos determinam, em boa parte, as modalidades das comunicações pessoais e institucionais: o que aparece primeiro nos buscadores, como nós nos relacionamos com os “amigos” e os “seguidores” nas redes sociais, que notícia se destaca na Internet, etc. Embora algumas iniciativas existam para desenvolver plataformas alternativas, não é fácil que funcionem, devido ao fenômeno do “efeito de rede”, onde todos vão ao espaço mais bem sucedido. É possível pensar em desenvolver alternativas próprias em nível regional?

 

A esses problemas se soma o rastreio permanente do comportamento dos usuários que fazem uso de companhias transnacionais de Internet; a apropriação sem autorização de seus dados pessoais; seu armazenamento, processamento e venda, quando não sua entrega às agências de segurança. Diante disso, é necessário regulamentar certos aspectos de como atuam essas empresas em nossos países.

 

Governança global da Internet

 

Ao se voltar para um universo tão complexo, com tantas ramificações, a governança da Internet já não pode ser encarada somente como uma questão de especialistas de informática. Tem implicações múltiplas para políticas públicas. Vejamos, por exemplo, o caso do poder dos monopólios. O "efeito de rede" da Internet tende a gerar o que os economistas chamam de “monopólios naturais”, que são espaços de concentração de poder. Há muitas décadas que os Estados reconheceram a necessidade de adotar leis que limitam os monopólios privados, ou declarar determinadas áreas estratégicas como os serviços públicos. Não é somente para evitar distorções do mercado, mas porque permitir tais concentrações de poder em um setor estratégico implica um perigo para a democracia mesma: as empresas terminam controlando os Estados. Mas em âmbito global, que organismo pode controlar os monopólios? Neste momento, não existe.

 

Outro exemplo: a cidadania está exposta, mundialmente, ao roubo e à exploração de seus dados pessoais na nuvem por parte de companhias inescrupulosas ou de agências de segurança. Mas existe um vazio legal para saber que legislação é aplicada para proteger seus direitos: do país onde vive, do país onde o servidor que armazena os dados está localizado, ou no país sede da empresa. Tampouco existe organismo internacional responsável por lidar com essas situações.

 

Atualmente, nos círculos - ainda estreitos - que se preocupam com a governança da Internet, está sendo travada uma intensa luta mundial de como ela deve se configurar. Está claro que não será viável manter o status quo no futuro, que é o sistema sob a tutela do governo estadounidense. Formalmente, o ICANN (Corporação para a atribuição de nomes e números na Internet, entidade não governamental, criada sob leis estadounidenses) tem sob sua gestão a IANA (Autoridade de Números atribuídos à Internet), que atribui os nomes do domínio e numera o IP, mediante contrato com o Departamento de Comércio dos EUA  Esse contrato vence em 2015 e, de acordo com o que Washington anunciou, será transferido a um organismo multisetorial, que poderia ser a própria ICANN reconfigurada.  No que diz respeito às decisões no plano da infraestrutura da Internet, são feitas pela IETF (Internet Engineering Task Force), onde participa principalmente o setor privado. Embora o papel desses organismos seja essencialmente o técnico, é sabido que as decisões técnicas implicam às vezes aspectos políticos.

 

Os EUA defendem o modelo de “governo multisetorial em pé de igualdade” (equal-footing multistakeholderism - onde os governos, o setor privado e a sociedade civil teriam voz e poder igual nas decisões), o que implica, na prática, que uma corporação privada teria poder de veto sobre qualquer decisão de política pública que a afete. Assim mesmo, rejeita todo sistema multilateral dentro dos marcos das Nações Unidas com o argumento de que a briga entre governos terminaria fracionando ou “balcanizando” a Internet. É um sistema projetado para assegurar a maior impunidade possível das grandes corporações de Internet.

 

Vários governos não estão no acordo. A China, por exemplo, país que já conta com um quarto dos internautas do mundo, acaba de anunciar que defende sim uma só Internet global, mas afirmando seu direito de poder participar de sua governança. Neste sentido, expressou sua disposição para integrar o Conselho de uma ICANN renovada, sempre e quando essa se dissocie do contrato firmado com o governo dos EUA.[4]

 

Neste cenário, acaba de surgir um novo espaço: a chamada Iniciativa NetMundial (INM), lançada pelo Fórum Econômico Mundial (FEM), que obteve o endosso da ICANN e do CGI.br (Comitê Gestor da Internet do Brasil). A INM, que se apropriou  do nome da reunião multisetorial que o Brasil organizou em abril passado, pretende ser um espaço multisetorial que se opere “desde as bases”, com o objetivo de tratar de questões que os outros organismos existentes não abordam, como “as questões relativas ao uso do Internet (como a liberdade da expressão, da privacidade, do cyber delito, etc.)”[5]. Ou seja, assuntos de política pública.

 

O convite aos atores da sociedade civil para nomear representantes do Conselho de Coordenação desatou um intenso debate e um divisor de águas nos círculos (ainda que bastante especializados) da sociedade civil que seguem esses assuntos.

 

A Coalizão por uma Internet Justa e Equitativa (Just Net) emitiu um pronunciamento se posicionando sobre a iniciativa, no qual expressa a preocupação por causa do "assalto neoliberal à democracia" que está ocorrendo na área da governança global, que tem significado o descuido crescente da desigualdade econômica e social, em defesa do interesse dos 1%. Sendo assim, assinala que está claro que esse assalto priorizou a governança da Internet, por muitas razões: “A primeira é que é um território em que os mecanismos e os modelos do governança estão ainda em construção. É evidentemente mais fácil captar os processos e os protocolos de governança onde eles ainda não existem ou que são débeis, do que pressionar contra estruturas e mecanismos pré-existentes. Segundo, na medida em que existe uma autoridade estatal no âmbito da governança da Internet, as rédeas do tecno-governo estão firmemente nas mãos do governo estadounidense, principal aliado e beneficiário da ofensiva neoliberal"[6].

 

Ao indicar que esta é “uma conjuntura decisiva para a governança global”, a Just Net apela ao governo do Brasil e às organizações da sociedade civil para repensar o seu apoio a uma iniciativa impulsionada pelo Fórum Econômico Mundial.

 

Para os países latino-americanos, a abordagem destes temas de soberania, cyber segurança e a participação na governança global da Internet poderia ser muito mais efetiva se fosse feita com políticas alinhadas e atuando como bloco, do que proceder de forma individual.  A Unasul, certamente, deu um primeiro passo para a elaboração de uma política de cyber segurança e cyber defesa no Conselho de Defesa. Mas em muitos aspectos esse continua sendo um tema pendente.

 

Sally Burch é jornalista e integrante do conselho da ALAI.

 

*Tradução: João Gabriel Almeida (Coletivo Chasqui)

**Revisão: Adriana Garcia Varandas (PET Letras UFSC/ Coletivo Chasqui)

 

[1] Sobre este tema, ver a revista “Internet, poder y democracia”, América Latina en Movimiento, No 494, abril 2014.  http://www.alainet.org/publica/494.phtml

[2] Ver a entrevista com Robert McChesney: “Como desmonopolizar a Internet”, http://www.alainet.org/active/72995

[3] Isto torna-se mais praticável já que diversos organismos internacionais de Internet, incluindo a Internet Society (ISOC), estão levantando isso como necessidade.

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/170476?language=es
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