Desentendimentos entre colonos

04/05/2015
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“Eram certamente os que constituíram a estrutura básica racial, os primeiros colonos — degredados, desertores, náufragos — gente da Renascença, que o crime, a ambição ou o espírito aventureiro fizera abandonar a Europa civilizada. Apresentavam um produto humano fisicamente selecionado, tendo resistido aos perigos, tribulações e sofrimentos da longa e incerta travessia.” (Paulo Prado, Retrato do Brasil.)

 

Não é uma surpresa do destino que no Brasil existam conflitos e desajustes intercivilizatórios, por maior que tenha sido a resistência dos colonos que acreditaram nessas terras e fizeram viagens longas até o Novo Mundo.

 

Na mesma calçada, trombam pessoas de níveis educativos contrastantes. Uns jogam lixo no chão com naturalidade e alimentam suas almas de comida lixo televisiva. Outros são minorias na tentativa de separar material reciclável e educar-se através da prática saudosista de leitura de livros instrutivos.

 

Na mesma avenida, trafegam bichos em busca sedenta de roer e desgastar os focos de civilização. Outros são minorias na tentativa de interpretar fielmente o que poucas autoridades conseguem: códigos, leis, regras.

 

Há um acúmulo de crises na sociedade brasileira. A basilar é a de educação. Professores grevistas que recebem seus pagamentos do governo tentam persuadir outros de que a educação no Brasil vai de mal a pior por causa de salários do magistério. Vemos que, após tanta negociação com sindicatos, o governo dá salários melhores a professores, mas eles se motivam a ensinar quem-sabe-o-que a estudantes com fome de instrução e saber. Portanto desculpem, professores, mas o problema da educação não é salarial.

 

A prole dos perdidos cresce e corrompe o país. Não me foge da cabeça a cena de marmanjos sentados na calçada a provocar pessoas na rua em vez de estudar e trabalhar. Logo, não se sabe como resolver os desentendimentos graves entre cidade e favela, como os que denigrem a reputação de uma cidade implodida, o Rio de Janeiro. É evidente que, cedo ou tarde, o problema bateria na porta dos grupos sociais aos que menos falta, com “arrastões” em estações de metrô e sequestros vexaminosos de turistas que têm a boa vontade de injetar dinheiro onde passeiam.

 

Os desentendimentos persistem. É assim que me choquei com a crise que assola a segurança pública no Brasil quando vi na Internet o vídeo de uma abordagem policial num bairro de periferia urbana. É regra que qualquer cidadão deve obedecer à voz de agentes de segurança pública. No entanto, espectadores gravaram com seus celulares o que era, ao mesmo tempo, indocilidade de um transeunte abordado e uso de força física para contê-lo. Pelos comentários que se ouviam, até parecia que o vilão era o policial!

 

Esses exemplos indicam que há que melhorar o treinamento cidadão de brasileiros e instruí-los a conviver em cidades, por mais indecifrável que seja nossa modernidade. Há ignorâncias que resultam em desentendimentos sobre a competência, o dever e a responsabilidade de cada um.

 

É certo que esses desentendimentos não começaram hoje só porque alguém se descontrolou ou porque há níveis tão diversos de instrução no Brasil. Não há como fugir dos encontros intercivilizatórios na mesma calçada quebrada, na mesma avenida esburacada e nos mesmos espaços públicos abandonados onde se idealizam convivências na diferença.

 

Mas é possível reduzir extremos de civismo e de instrução.

 

Minha esperança, contudo, não ignora a preocupação de Paulo Prado (como se deduz da citação acima) de que o Brasil já começou com o pé esquerdo e a escória da Europa. Agrego eu, porém, que o problema é global e flagela até cidades como Londres, Paris e Nova Iorque, tão abertas ao cosmopolitismo quanto fadadas a hospedar o melhor e o pior do mundo.

 

No Brasil, há um aceno secular a favor do cultivo da nacionalidade e de caracteres que unem brasileiros em torno de costumes, gostos, experiências e práticas comuns. Apesar disso, creio que nem aqui nem em nenhum outro lugar do planeta se evitem completamente desentendimentos intercivilizatórios. Por isso, prossigo com a ideia de que o Brasil tem o desafio interno inadiável de melhorar o nível de civismo e instrução de sua gente.

 

Somente assim, será possível evitar que bichos, gatunos, colonos degenerados e monstros dominem a cena pública no Brasil, como em parte tem ocorrido. Igualmente, seres de bem e de ideias terão espaço para higienizar e instruir o Brasil antes que a ignorância e o mal tomem conta.

 

Para isso, leitor, comecemos com dois exercícios diários. Um no controle do televisor: DESLIGAR. Outro na luminária da escrivaninha: LIGAR.

 

http://www.brunoperon.com.br

https://www.alainet.org/pt/articulo/169380?language=es

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