Os discutíveis efeitos jurídico-políticos da delação premiada
As discussões processuais relacionadas com a prova de fatos criminosos desperta sempre uma grande curiosidade no povo e, quanto maior se mostram os efeitos de uma determinada investigação policial ou judicial, maior o interesse da mídia em opinar sobre eles. Quem sai perdendo aí, seguidamente, é a verdade. Entre acentuar uma suspeita e falar sobre o ocorrido, sem outra prova que não a da delação, pode-se antecipar um julgamento público irreversivelmente danoso para um/a inocente.
A operação lava-jato corre o risco de dar bom exemplo. A cada revelação de delatores sobre responsabilidade pessoal de alguém beneficiado com desvio de dinheiro oriundo de contratações fraudulentas com a Petrobras, as notícias adquirem efeitos os mais diversos e até, em certos casos, contraditórios. As reações variam conforme a conveniência, a ideologia, a cor partidária, a classe, a cultura tanto de quem lhe fornece a versão quanto de quem a recebe. Se a delação é feita contra um político pertencente a um outro partido, ainda mais se adversário, não há como deixar-se de dar todo o crédito a esse tipo de prova e encerrar-se a discussão com imediata sentença de condenação, seguida de prisão. Se for feita contra alguém do nosso partido, ou até financiou a eleição do nosso candidato, bom, aí tem-se de garantir a produção de outras provas, já que a presunção de inocência é um preceito constitucional e ninguém pode ser considerado culpado até sentença que transite em julgado…
Se a sentença pode errar, a mídia também, Assim como a primeira não está imune de condenar um/a inocente, a segunda tem muito mais chance de fazer isso, especialmente quando não tem ou não quer dar oportunidade, tempo e espaço ao contraditório.
O certo é que a delação premiada já está prevista no país em várias leis, comentadas em vários sites da internet e artigos de doutrina, como a lei dos crimes hediondos 8.072/90, art. 8º, parágrafo único; a lei da organização criminosa 12850/2013, art. 3º, inciso I; a de lavagem de capitais 9.613/98, art. 5º; a de proteção a vítimas e testemunhas, 9.807/99, arts. 13 e 14; a lei que pune o tráfico de drogas 11.343/2006, art. 41. O Código Penal também dispõe da delação premiada quando prevê o crime de extorsão mediante sequestro (art. 159, § 4º);
A lei de proteção a vítimas e testemunhas (9807/99) chega a prever até o perdão ao delator:
Art. 13. Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado:
I – a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa;
II – a localização da vítima com a sua integridade física preservada;
III – a recuperação total ou parcial do produto do crime.
Hoje, sob a vertigem das opiniões apaixonadas pró e contra as pessoas já acusadas pela delação, os argumentos favoráveis a esse tipo de prova se baseiam no fato de a simples possibilidade de diminuição de uma pena oferecer chance de elucidar-se completamente a prática de ilícitos penais, com a vantagem de encurtar-se a tramitação processual, tornar-se desnecessária a produção de outras provas, poupar-se tempo e dinheiro públicos, o Estado poder punir quem se desconhecia ser responsável por um determinado crime, fosse por coautoria, cumplicidade direta ou indireta.
João Baptista Herkenhoff, um conhecido jurista capixaba, defensor dos direitos humanos, não pensa assim. Como juiz aposentado e experiente conhecedor das dificuldades inerentes ao trabalho de se conhecer a verdade de fatos passados, que aparecem nos processos judiciais sempre vestidos de versões contraditórias e provas sujeitas a falsidade, revela em todos os seus muitos livros uma constante preocupação. Nunca desconsidera a presença, em cada processo judicial, de um drama humano, para superação do qual não só a lei importa, mas também a ética e o respeito à dignidade humana como condições essenciais das garantias devidas à uma verdadeira justiça.
Na edição do jornal Grande Bahia do dia 20 deste março, ele tratou de lançar luz sobre a delação premiada e o fez de um modo muito diferente daquele que tem inspirado as paixões correntes em torno do tema, particularmente aquelas que aplaudem a delação como prova irrefutável, adequada e conveniente, capaz de obter o conhecimento da verdade, mesmo aquela sustentada por mera aparência, mas de todo oportuna para quem mais não pretenda do que punir, seja ao custo que for:
“Neste artigo trato da delação premiada, sob o ângulo ético e doutrinário. As reflexões baseadas na Ética e na Doutrina têm valor permanente, ou seja, valem para o presente, valeram para o passado e valerão para o futuro.” (…) “…não vejo com simpatia o instituto jurídico da delação premiada.” (…) “Introduzida há poucos anos no Direito brasileiro, a delação premiada de muito tempo é utilizada em países como Estados Unidos, Alemanha e Itália. O fato de ser adotada em nações poderosas não aconselha a imitação porque cada país tem sua história, seus valores, o direito de traçar seu caminho. A meu ver, a delação premiada associa criminosos e autoridades, num pacto macabro.” “Ao premiar a delação, o Estado eleva ao grau de virtude a traição.” (…) “Então, é de se perguntar: pode o Estado ter menos ética do que os cidadãos que o Estado encarcera? Pode o Estado barganhar vantagens para o preso em troca de atitudes que o degradam, que o violentam, e alcançam, de soslaio, a autoridade estatal?”
Em poucas palavras, como é do seu feitio, o autor coloca em séria dúvida todo esse alarido presente hoje no país em torno de uma prova considerada indiscutível, mas cercada por questões de relevância como deixam claro as suas perguntas. Inclusive do ponto de vista puramente técnico, João Baptista questiona a produção desta prova:
“Na maioria das situações, creio que o uso da delação premiada tem pequena eficácia, uma vez que a prova relevante, no Direito Penal moderno, é a prova pericial, técnica, científica, e não a prova testemunhal, e muito menos o testemunho pouco confiável de pessoas condenadas pela Justiça.”
Se a delação premiada tem contribuído, então, para alguns dos indiciados da lava- jato confessaram seus crimes e até devolverem dinheiro furtado, melhor. Isso não autoriza antecipar-se de forma generalizada, como está ocorrendo, a impossibilidade de ela, seja por interesse de quem delata, seja por vingança, aproveitar o clima de caça e atirar a esmo, calculando o tamanho da sua diminuição de pena pelo número de vítimas das suas acusações.
Março 23, 2015
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