O regresso do fascismo: a propósito do Charlie Hebdo
15/01/2015
- Opinión
Como era de prever, o ataque contra o Charlie Hebdó desencadeou uma onde mediática global de condenação ao "terrorismo islâmico". Sente-se um certo fedor de "11 de Setembro à francesa" [1] . Como também era de prever, a direita ocidental capitaliza essa onda procurando orientá-la para uma combinação de islamofobia e autoritarismo, de justificação da cruzada colonial contra a periferia muçulmana e ao mesmo tempo de impulso no ocidente à discriminação interna contra as minorias de imigrantes árabes, turcos e outras. E como também era de prever, não faltaram cortesãos progressistas do sistema que – depois de abrir o guarda-chuva assinalando em primeiríssimo lugar que o "ataque terrorista"... "deve ser condenado sem atenuantes" atribuindo-o ao "fanatismo religioso"(obviamente islâmico) – passam sisudamente a enumerar algumas culpas ocidentais sem darem tempo para um mínimo de prudência e decoro diante de um assunto que cheira a podre.
O mínimo que se pode dizer é que o caso Charlie Hebdo ingressou velozmente no pântano da confusão. Os dois supostos atacantes foram liquidados dois dias depois dos ataque, ainda não se sabe bem como foram tão facilmente identificados numas poucas horas – salvo se aceitarmos a incrível versão policial de que um deles esqueceu o seu documento de identidade no automóvel utilizado no atentado. Paul Craig Roberts, ex-subsecretário do Tesouro dos Estados Unidos, assinala que "a polícia encontrou o cartão de identidade de Said Kouachi na cena do tiroteio (próximo da sede do Charlie Hebdo). Soa familiar? Recordem que as autoridades (estado-unidenses) afirmaram haver encontrado o passaporte intacto de um dos supostos sequestradores do 11 de Setembro entre as ruínas das torres gémeas. Uma vez que as autoridades descobrem que os povos ocidentais estúpidos vão acreditar em qualquer mentira transparente, vão recorrer à mentira repetidas vezes" [2] .
Não haverá julgamento, os irmãos Kouachi não desmentirão nem confessarão nada. Por outro lado, em diferentes meios jornalísticos surge a informação de que estes irmãos franceses filhos de imigrantes argelinos teriam sido recrutados há algum tempo pelo aparelho de inteligência francês que os encaminhou para o jihadismo na sua luta contra o governo sírio. Surge inclusive o nome do agente recrutador, um tal David Drugeon, assinalado desde há tempos como um personagem de alto nível do aparelho de inteligência francês – que naturalmente desmentiu a referida informação, reiterada antes e depois do desmentido por meios de comunicação estado-unidenses e europeus [3] .
E como se isto fosse pouco, um dia depois do "atentado", de modo muito marginal, deu-se a conhecer o estranho suicídio de Helric Fredou, comissão subdirector da Polícia Judiciária de Limoges que trabalhava no caso Charlie Hebdo [4] .
Guerras e bufões Philippe Grasset assinala com razão que o ataque contra o Charlie Hebdo não é um "atentado terrorista" e sim um "acto de guerra" perfeitamente orientado para um objectivo concreto realizado por meio de uma operação tipo comando [5] . Mas de que guerra se trata?
Uma primeira constatação é que a França tem actualmente, de maneira formal, cerca de 8 mil soldados em diferentes intervenções militares na periferia, mais de 5 mil em África e importantes contingentes na Ásia Central e no Médio Oriente, a mais recente foi no Iraque com o argumento de combater o "Estado Islâmico" [6] . A intervenção no Afeganistão, subordinada ao comando militar dos Estados Unidos, deslocava uns 4 mil soldados por volta de 2009 [7] .
Ainda que a operação mais ruidosa tenha sido realizada contra a Líbia, os bombardeamentos franceses, factor decisivo na intervenção da NATO, causaram milhares de mortes entre a população civil, importantes centros urbanos foram destruídos, o estado líbio foi liquidado. Segundo diferentes avaliações a seguir ao derrube de Kadafi, cerca de dois milhões de líbios, um terço da população total, deixaram o país submerso no caos, disputado por bandos rivais. Também a França intervém activamente na operação da NATO contra a Síria, introduzindo mercenários e armas.
Dito de outro modo, o estado francês é hoje uma componente decisiva do dispositivo operacional da NATO que está empenhado numa estratégia de intervenção global destinada à recolonização ocidental do planeta. O comando supremo cabe, naturalmente, aos Estados Unidos. A estratégia operatória da referida agressão não se limita a um conjunto de acções militares do tipo clássico e sim a um leque completo de dispositivos destinados à desestruturação, à caotização de diferentes áreas do "resto do mundo", à sua transformação numa massa informe que seja presa fácil para a depredação. Assim o demonstra a longa série de intervenções ocidentais recentes na Ásia, África e América Latina, em alguns casos através de invasões militares como no Afeganistão e Iraque, em outros combinando bombardeamentos e/ou introdução de mercenários como na Líbia ou na Síria, ou ainda instalando bases militares e inflando exércitos locais e bandos paramilitares como na Colômbia – mas em todos os casos incentivando formas caóticas e ultra violentas que desarticulam o tecido social de que as realidades actuais do México, Líbia ou Iraque são um bom exemplo.
Estas acções são combinadas com um vasto desenvolvimento comunicacional destinado a controlar e arregimentar as sociedades ocidentais, bem como a degradar, desarticular, submeter o resto do mundo. É reafirmado o velho mito do ocidente como civilização verdadeira, única com legitimidade universal relegando os demais à categoria de "bárbaros" ou "semi-civilizados", conforme as circunstâncias. Mito imperial que atravessou toda a história da modernidade até chegar à sua mutação actual em delírio criminal no século XX como fascismo ou nazismo. Desse modo, o liberalismo imperialista civilizador, o cristianismo colonial redentor e o nazismo que floresceram em três momentos diferentes acabam agora em plena decadência sistémica convergindo numa mistela grotesca, expressão de sociedades privilegiadas em recuo cultural. Assim é que a Frente Nacional, abertamente neonazi convertida no primeiro partido político da França, enlaça na prática com comunicadores ou intelectuais da moda como Éric Zemmour que reivindica a colaboração com a ocupação alemã durante a segunda Guerra Mundial e a segregação das minorias muçulmanas e outras, tudo isso em nome dos "valores cristãos" da França [8] ou outros como Bernard-Henri Levy, instigador do genocídio da NATO na Líbia. A partir da sua alta posição, o presidente socialista François Hollande explica a intervenção na Síria e no Iraque e o apoio ao regime neonazi da Ucrânia como fazendo parte da sua luta pela defesa dos interesses da França.
Santiago Alba Rico elogia os assassinados do Charlie Hebdo colocando-os na categoria de bufões e explica-nos "o horror de que as suas vítimas se dedicassem a escrever e desenhar... tarefas que uma longa tradição histórica compartilhada situa no extremo oposto da violência... Em termos humanos, sempre é mais grave matar um bufão do que um rei porque o bufão diz o que todos queremos ouvir ainda que seja improcedente ou inclusive hiperbólico... O que mata um bufão, ao qual encomendámos o livre-dizer, mata a própria humanidade. Também por isso os assassinos de Paris são fascistas. Só fascistas matam bufões. Só fascistas acreditam que objectos não hilariantes ou não ridicularizáveis. Só os fascistas matam para impor seriedade" [9] .
Não creio que Hitler, ao exercer a arte de escrever, o "Mein Kampf" por exemplo, estivesse a realizar uma actividade oposta à violência e sim, muito pelo contrário, a legitimá-la. Por outro lado, é necessário destacar que grandes massacres foram acompanhados pela ridicularização das vítimas. Nesse sentido, a arte de ridicularizar surge como um complemento necessário da matança, cobri-la com um manto de humor oculta a tragédia, desculpabiliza os assassinos.
Tenho diante de mim três fotografias do "Batalhão policial 101", unidade operacional alemã famosa pela sua extrema crueldade durante a Segunda Guerra Mundial nos territórios ocupados da Europa do Leste. Numa delas vê-se um grupo de soldados-polícias alemães mortos de riso a rodearem um velho judeu barbudo, os nazis muito divertidos estão em vias de cortar-lhe a barba. Nas outras duas aparecem a custodiar um grupo de judeus na localidade de Lukov a ponto de serem enviados ao campo de extermínio de Treblinka. Numa delas um soldado nazi diverte-se à grande obrigando um velho judeu andrajoso a realizar gestos bufonescos [10] .
Os reis costumavam incluir bufões na sua corte, os quais vertiam humor burlando-se, por vezes astutamente, do rei e de alguns cortesãos – mas sobretudo dos inimigos do rei e dos vassalos mais pobres, camponeses ou humildes artesãos, ridicularizando seus gestos, sua maneira de falar e vestir, ou seja, suas culturas. Um bufão da corte não é um bufão em geral, não está ali porque sim, não é a expressão de algo bom e sim, antes, o encarregado de banalizar a tragédia, de fazê-la divertida.
Fazer palhaçadas na corte, ou seja, no ocidente, ridicularizando as crenças e costumes de muçulmanos bombardeados, invadidos, colonizados, faz parte da banalização do mal, integra a maquinaria ideológica legitimadora da tentativa ocidental de colonização da periferia. O suposto "humor libertário" do Charlie Hebdo ensina-nos que tudo pode fazer parte da festa, os fascistas realmente existentes não matam bufões em geral e sim certos bufões incómodos e em numerosos casos incorporam bufões à sua corte. A ridicularização da vítima é um aspecto significativo do humor fascista, faz parte da humilhação do martirizado.
Finalmente, nem tudo é ridicularizável. Não creio que seja um fascista quem considere que é inadmissível fazer piadas com o assassinato maciço de crianças na Palestina executado pela aviação israelense, ou com os massacres da população civil na Líbia realizados pela aviação da NATO, ou com os assassinatos de camponeses na Colômbia praticados pelos paramilitares. Quem considere que é possível, sim, converter esses factos em objectos de riso pode ou não ser ideologicamente fascista mas certamente trata-se de um canalha.
Bárbaros e civilizados
Para além da questão de saber se o ataque contra o Charlie Hebdo foi uma operação montada pelo aparelho de inteligência francês, só ou em cooperação com a CIA ou outra estrutura, ou então uma acção de um grupo islâmico manipulado pelo aparelho francês ou inclusive independente e hostil ao ocidente, o certo é que uns ou outros consideraram-no um objectivo concreto da guerra globalizada em curso.
Seguindo a "hipótese 11 de Setembro" (auto-atentado), tratar-se-ia de mobilizar na cruzada imperial uma Europa esmagada pela recessão. Poderíamos fazer coincidir o acontecimento o anúncio de que a União Europeia vai entrando numa etapa de deflação que ameaça ser prolongada e está completamente submetida à estratégia global dos Estados Unidos. Isso significa que as elites dominantes precisam criar rapidamente factores de coesão social funcionais a suas aventuras militares e financeiras. O demónio islâmico pode bem justificá-lo, para fazer aceitar ou obrigar a aceitar guerras externas combinadas com repressões e empobrecimentos internos.
A quota de barbárie introduzida com o golpe de estado na Ucrânia e a tentativa posterior de depuração étnica no Sudeste desse país acompanharia a ascensão generalizada do fascismo na Europa, desde a Ucrânia e os países bálticos, até chegar à Frente Nacional em França e ao movimento Pegida na Alemanha, passando pelo Amanhecer Dourado da Grécia. O que prefigura a conformação de um fascismo muito extenso no espaço europeu a coincidir com a previsível ascensão do Partido Republicano nos Estados Unidos. Neste cenário a intensificação de actos de barbárie imperial na periferia estaria a convergir com a internalização de formas significativas de barbárie no centro imperial.
Seguindo a hipótese oposta, estaríamos na presença do início da caotização do centro imperial do mundo. O desenvolvimento da sua "Guerra de quarta geração" contra a periferia começaria a ter um efeito boomerang sobre o protagonista ocidental. O provocador ocidental do caos começa por sua vez a ser caotizado por um desenvolvimento que começa a escapar ao seu controle e que gera deslocações na sua retaguarda. A crise económica, suas derivações financeiras, ecológicas, sociais e militares iriam submergindo o espaço euro-norteamericano numa espiral descendente irreversível.
Em ambos os casos, as imponente civilização ocidental, seus pretensos "valores universais", estariam a evaporar-se – deixando a descoberto a sua barbárie profunda.
[1] Thierry Meyssan, "¿Un 11 de septiembre en París?. ¿Quién está detrás del atentado contra Charlie Hebdo?" , Voltairenet.org, 8 de enero de 2015
[2] Paul Craig Roberts: "Ataque contra 'Charlie Hebdo' fue una operación de falsa bandera" , RT, 11/01/2015
ver também: Kevin Barret, "Planted ID card exposes Paris false flag" , PRESSTV, Sat Jan 10, 2015
[3] Mitchel Prothero, "Videos show Paris gunmen were calm as they executed police officer, fled scene" , McClatchy DC, January 7, 2015
[4] Quenel+, "Le numéro 2 de l'enquête sur Charlie hebdo s'est suicidé" , 8 janvier 2015
[5] Philippe Grasset, "Un "11-septembre à la française" ?" , Dedefensa.org, 08/01/2015
[6] "De l'Irak au Mali, le casse-tête budgétaire de l'armée française" , Les Echos, 23/09/2014,
[7] "French forces in Afghanistan" , Wikipedia,
[8] Éric Zemour, "Le suicide français", Albin Michel, Paris 2014.
[9 Santiago Alba Rico, "Lo más peligroso es la islamofobia" , Rebelión, 08/01/2015,
[10] D. J. Goldhagen, "Los verdugos voluntarios de Hitler", páginas 314 e 331, Taurus, Madrid, 1997.
https://www.alainet.org/pt/articulo/166825?language=es
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