O golpe de Veja na eleição de 2014 (II)

13/01/2015
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A capa-panfleto

O exemplar de Veja chegou às bancas na sexta, 24 de novembro, fora da rotina: sempre chega sábado. Não há dúvida de que a revista pretendia entregar munição ao candidato Aécio Neves e pautar o restante da mídia, cuja maior parte nunca regateou esforços para eleger o tucano. Era uma operação destinada a derrotar Dilma, pouco importando a veracidade da informação. E a publicação em si, como já demonstramos, era já um acréscimo, uma vez que a notícia estava devidamente divulgada, viralizada na internet, potencializando toda a carga de ódio e intolerância presente nas hostes aecistas. O Grupo Abril tinha absoluta consciência dos seus resultados.  

A capa, certamente pensada e repensada pelos editores, é um primor de criação golpista: criminaliza Dilma e Lula da forma mais abjeta possível. Quem lida com jornalismo sabe que cada momento da edição tem vida própria. A capa é essencial a qualquer revista, e fala por si. Esta, a do golpe, esticou a corda no limite em sua editorialização e tentou de todo modo investir em seu apelo estético-emocional. Foi preparada para servir de munição, para caminhar com as próprias pernas, servir à campanha adversária, como serviu.

Reproduzida amplamente – milhões de exemplares chegaram a diferentes pontos do país como resultado de uma produção centralizada –, a capa tornou-se um eficiente instrumento em mãos de militantes aecistas. Produção centralizada sem que se identifique onde era esse núcleo central. Ainda há de ser revelado, que a verdade tarda, mas não falha. E o jornalismo, façamos uma pausa para dizer isso, tem o condão de fazer acreditar que lida com a verdade. Parece verdade. Mesmo quando seja a mais deslavada mentira, mesmo quando mistificação. Não é fácil à sociedade distinguir o quanto de real existe em cada matéria, em cada reportagem, em cada texto, e às vezes, quando se dá conta, os resultados pretendidos já foram alcançados.

A capa passava de mão em mão como verdadeira, vinda de um ente poderoso, um órgão de comunicação, não era (não?) proveniente da direção da campanha de Aécio. Não aparecia como tal. Podia, e creio foi, ser recolhida como expressão da verdade – e influir decisivamente no resultado eleitoral, em especial no contingente dos indecisos. Inocência, aqui, não cabe. Sabe nada, inocente. Tudo foi meticulosamente pensado e organizado pelo Grupo Abril, numa operação político-midiático-golpista, não custa insistir.

Há um lado gráfico tenebroso, apelativo. Há o fundo negro, em meio ao qual surgem as fotos tensas, de Dilma e de Lula, escolhidas a dedo, pouco mais da metade dos rostos de cada um, como se surgissem das trevas. Ao preenchermos buracos, nossa imaginação vê o editor dando ordens: “Pegue aí as piores fotos que temos no arquivo”. A foto de Dilma, parece, foi repaginada, para bem pior. O “selo”, acima da chamada, é “Petrolão”. E a chamada, caprichada para a incriminação: “O doleiro Alberto Youssef, caixa do esquema de corrupção na Petrobras, revelou à Polícia Federal e ao Ministério Público, na terça passada, que Lula e Dilma Rousseff tinham conhecimento das tenebrosas transações na estatal”. E logo abaixo a manchete propriamente dita, em vermelho: “Eles sabiam de tudo”.

Veja caprichou. A capa era o principal instrumento a ser colocado nas ruas, sabia disso. A melhor peça publicitária da campanha de Aécio. De graça. Nem em nossos exercícios de imaginação dá pra especular se Aécio chegou a ver a capa antes de ser disparada. Os dirigentes da campanha do tucano não podiam querer algo melhor, isso é possível dizer com segurança. Senão nos detalhes, com certeza tinham conhecimento do que viria. Uma operação dessas não surge assim como uma tempestade em dia de céu azul, sem uma concertação. Afinal, tinha o objetivo político de ajudar uma candidatura, que precisava ser avisada para tomar as providências, sobretudo a providência da distribuição da capa. Que poderia ser oferecida pelos próprios organizadores do golpe midiático, mas isso não se pode afirmar porque não confirmado. A imaginação, nesse caso, se contém.

Mais que o texto interno, importava a capa, a manchete “Eles sabiam de tudo” e a composição, vá lá, artística, incriminatória de Lula e de Dilma, de modo, insista-se, a interferir numa eleição em que as pesquisas davam a presidenta com coisa de 8, 9 pontos à frente. A operação golpista pretendia, já se disse, tirar essa diferença e dar a vitória a Aécio, candidato da revista e de toda a mídia hegemônica. O jornal O Globo do sábado 25 dá título esclarecedor, revelador da importância da capa como instrumento publicitário da campanha tucana. “PSDB distribui panfletos com capa de revista em todo o país” é o título da matéria de Cristiane Jungblut, enviada especial a Belo Horizonte para acompanhar manifestação tucana. Um subtítulo esclarece: “Campanha de Aécio aposta que reportagem de Veja vai desgastar Dilma”.  

Atos semelhantes, organizados pelos tucanos, com distribuição massiva da capa de Veja, foram realizados também em São Paulo, Rio Grande do Sul e Distrito Federal. No vão do Masp, em São Paulo, é colocado um banner da capa da revista com cerca de 5 metros de altura. Milhões de exemplares da capa espalharam-se pelo país. O golpe caminhava. A campanha de Aécio e a revista Veja uniam-se nas ruas, numa ousadia sem limites. E sem nenhuma preocupação de dissimular a unidade político-midiática: Veja e o restante da mídia hegemônica na luta para derrotar a candidata Dilma Rousseff.

Golpismo e vacinas

Antes de seguir adiante, convém dar uma olhadinha no restante do material de ataque a Dilma e Lula, Veja 2397. Na Carta ao Leitor (“Choque de realidade”), seu editorial, Veja, sem ter demonstrado nada, sem ter nada à mão, salvo sua especulação, dá como certo que o material que incrimina Dilma e Lula “logo estará nas mãos do juiz Sérgio Moro, responsável pelo caso, em que passam a contar como suspeitos um ex e uma atual e, quem sabe, futura presidente da República”. Já sentenciou, já decidiu que “eles” serão arrolados como suspeitos, vejam só. Acentua, numa linguagem conhecida, que diante do que vem sendo revelado “as consequências do escândalo são difíceis de mensurar”. Que consequências? Golpe? Impeachment? Deixa no ar, claro. A jornalista Tereza Cruvinel, no artigo “Oposição perde a segunda arma do impeachment”, no Brasil 247, é explícita. Fala do golpe da revista Veja – usa a palavra golpe, não faz rodeios –, mostra que não aconteceram os resultados eleitorais nem os desdobramentos institucionais pretendidos, mas “serviu para colocar a palavra ‘impeachment’ em circulação”, no que tem razão.

Veja, no número golpista, faz uma espécie de “vacina” ao final da Carta ao Leitor, tendo consciência da operação que está realizando, consciência da tentativa de interferir claramente no processo eleitoral: “Veja publica essa reportagem às vésperas do turno decisivo das eleições presidenciais” – começa assim o parágrafo final, mas anotem a observação final, tão criteriosa – “obedecendo unicamente ao dever jornalístico de informar imediatamente os fatos relevantes a que seus repórteres têm acesso”. E termina solene: “Basta imaginar a temeridade que seria não trazê-los à luz para avaliar a gravidade e a necessidade do cumprimento desse dever”. Trata-se de um texto claro, quase uma confissão de culpa, envergonhada. Quase dizendo aos leitores “é, tivemos de fazer isso, mas, vejam bem, o fizemos em nome do bom jornalismo”. Ora, ora. Uma boa parte da consciência crítica brasileira sabe o modus operandi de Veja. Não precisava se explicar. Está tudo revelado. Os fatos em sequência revelaram o golpe midiático, felizmente frustrado.

Na abertura da “matéria-bomba”, na página 58, outra vacina reportando-se novamente à Carta ao Leitor. “Veja não publica reportagens com a intenção de diminuir ou aumentar as chances desse ou daquele candidato” – quase uma confissão enviesada da tentativa golpista. “Veja publica fatos com o objetivo de aumentar o grau de informação de seus leitores sobre eventos relevantes, que, como se sabe, não escolhem o momento para acontecer” – vejam, os fatos não escolhem momento para acontecer, podem acontecer a poucas horas de uma eleição presidencial, quer Veja explicar, candidamente.  

O material interno da revista é muito pobre, porque fantasioso. O núcleo do escândalo montado resume-se a escassas cinco linhas, essenciais para a tentativa do golpe midiático, na página 61, em que o doleiro teria declarado que Lula e Dilma sabiam de tudo o que ocorria na Petrobras, sem que até agora a revista tenha apresentado uma única, escassa prova de que, de fato, Youssef tenha declarado o que a revista revela, sem que uma única fonte tenha falado para comprovar. Não respeita sequer alguns critérios do jornalismo meramente declaratório, sabidamente um recurso que sempre reclama complemento, confirmação, checagem.

Só para argumentar, ainda que o tal doleiro tivesse afirmado o que Veja diz, poderia um órgão de imprensa, que levasse a sério a profissão, aceitar manchetar isso sem nenhuma busca criteriosa da verdade? Lembro-me dos meus tempos de Estadão: a orientação era tomar furo se não confirmássemos seriamente o que tínhamos em mão. Estou me referindo ao Estadão, reconhecidamente um jornal secularmente conservador. Para Veja, o que importa são seus objetivos. E, nesse caso, não há sequer a comprovação de que o “jornalismo declaratório” de Veja tivesse respaldo.

E, convenhamos, algo envolvendo um ex-presidente da República e a atual presidenta da República não mereceria cuidados bem maiores do que simplesmente confiar num delator, e isso, lembrando, na hipótese, ainda não comprovada, de ele ter de fato dito o que a revista revela? Não caberia trabalhar mais, checar por todos os lados, ouvir outras fontes, como recomenda qualquer manual de redação, especialmente se naquelas horas se estava decidindo quem seria o próximo presidente da República?

Claro: Veja sabia bem o que fazia. Tinha consciência de que os critérios em que se assentava sua, vá lá, matéria estavam a anos-luz do que se conhece como jornalismo. Tanta consciência que lá pelas tantas, depois de ter soltado as cinco linhas de acusação gratuita que deu, vá lá, sustentação à sua capa, lá pelo meio, sem nenhum destaque, sem nenhum “olho”, ela diz, outra vacina:

“Obviamente, não se pode condenar Lula e Dilma com base apenas nessa narrativa”. É isso mesmo, Veja diz que não se pode condenar Lula e Dilma, mas é o que faz com sua capa espetacular e especular. Quase inacreditável, só possível numa operação golpista. Antes, na matéria, já havia admitido que “o doleiro não apresentou – e nem lhe foram pedidas – provas do que disse”. O jornalismo admite isso? Evidente que não. Jornalismo quer provas, fatos, dados consistentes.
 
Uma leitura atenta do texto evidencia a possibilidade de desconstrução do exercício cheio de imaginação de Veja, todo ele voltado à tentativa de incriminar Lula e Dilma, não importando a inexistência de bases reais para tal incriminação, como ela própria acaba dizendo. Qualquer estagiário de jornalismo daria zero à matéria. Por inconsistente. Por fantasiosa. Por não respeitar os mínimos critérios éticos do jornalismo.

Há um certo quê de ironia involuntária no fato de Veja, no mesmo número, em “Datas”, na página 44, registrar a morte, aos 93 anos, de Ben Bradlee, ex-editor executivo do Washington Post, o jornalista que coordenou a cobertura do caso Watergate. Essa cobertura ficou como um exemplo para o jornalismo mundial. Nada se publicava sem checagem segura, por todos os lados. Não bastavam as informações do “Garganta Profunda”, agora revelado como Mark Felt, ex-diretor assistente do FBI que contribuiu decisivamente para a deflagração em 1972 do escândalo que derrubou Nixon.

Bradlee exigia que seus notáveis repórteres, Bob Woodward e Carl Bernstein, buscassem outras fontes que as confirmassem, sem as quais não permitia que nada fosse publicado – sobre Felt, consulte-se livro de Bob Woodward, de 2005, O Homem Secreto, da Rocco, dedicado, aliás, a Ben Bradlee.Veja não separa sua vocação conservadora, sua posição política vinculada aos ideais neoliberais, do jornalismo. Sua atividade editorial – difícil chamá-la de jornalismo – é inteiramente permeada de ódio, e nessa visão tudo se justifica, tudo aquilo que o jornalismo liberal reclama se sacrifica, inclusive a verdade, ou, ao menos, a busca da verdade. Nunca, com esse olhar cheio de ódio, conseguirá seguir o conselho de Bradlee, publicado por ela mesma ao registrar a morte dele: “Faça o melhor e mais honesto jornal que você puder hoje. E um ainda melhor no dia seguinte”.Veja consegue sempre ser pior no dia seguinte.

E o número golpista não se restringe à “matéria-bomba”. Veja vai à sua cozinha, e requenta vários escândalos, com maior, menor ou nenhum grau de verdade, todos eles ligados ao “governo do PT”. A manchete: “A década dos escândalos”. Naturalmente, não houve escândalos sob Fernando Henrique Cardoso no olhar partidarizado de Veja. Em seguida, longa matéria também sobre “Os 10 ataques que envenenaram a campanha”, título destacado na página 68. A chamada, na mesma página, esclarece o objetivo: “O PT distorceu fatos, falsificou a história e manipulou eleitoralmente a divulgação de informações, jogando o nível da disputa na lama”.

Olhando-se com atenção de que ataques fala Veja, tem-se a impressão (impressão?) de que os textos foram redigidos a quatro mãos – redação da revista e assessoria do candidato tucano. É a tentativa de demonstrar, nos dez pontos levantados, que a campanha petista, e apenas ela, envenenou a disputa eleitoral, e distorceu e falseou fatos sobre o adversário e suas teses, e inventou teses a favor da presidenta Dilma. É como se houvesse, de um lado, um candidato cheio de veracidade e, além de tudo, um gentleman, e de outro uma candidata pronta para atacar ao rés do chão. Não tomou cuidado, em nenhum momento, de revelar ao menos alguns dos violentos ataques do candidato Aécio Neves, que chegaram ao nível do desrespeito pessoal à presidenta. A matéria é outra peça de campanha de Aécio, uma defesa apaixonada de seu programa, tentativa de desmontar tudo o que a campanha de Dilma e a própria presidenta diziam sobre a natureza neoliberal das propostas do adversário.

Dilma bate duro: foi crime

É provável que nas discussões em torno da tentativa de golpe midiático, e aqui voltamos a um certo grau de imaginação, tenha havido os que não considerassem a possibilidade do uso do horário eleitoral pela presidenta Dilma para responder à revista. Seria arriscado atacar um órgão de imprensa, poderia parecer um desrespeito à liberdade de expressão, como costuma raciocinar Veja – liberdade de expressão para ela é o direito de a revista dizer o que quiser e bem entender sem nenhuma obrigação para com a verdade.

Sabe-se que a campanha petista descobriu, ainda na quinta, que Veja preparava alguma coisa contra Dilma. Não sabia exatamente o quê. Depois, vazou a capa. Conhecendo como conhecia a revista e seus métodos, sabia que nas páginas internas haveria pouco além daquilo. No horário eleitoral do meio-dia, na sexta-feira 24, Dilma reagiu fortemente, com a consciência de que aquela deveria ser a única resposta, deixando o programa da noite, o último, para um término em alto estilo. Assim foi feito. E Dilma falou:  

“Todos os eleitores sabem da campanha sistemática que a revista move há anos contra mim. Mas, desta vez, Veja excedeu todos os limites. Desde que começaram as investigações sobre ações criminosas do senhor Paulo Roberto Costa eu tenho dado total respaldo à Polícia Federal e ao Ministério Público. Até a sua edição de hoje, às vésperas da eleição, em que todas as pesquisas apontam minha vantagem sobre o adversário, Veja tentou insinuar minha omissão diante dos fatos. Isso já era um absurdo, já era uma tremenda injustiça.

“Hoje, a revista excedeu todos os limites da decência e da falta de ética, pois insinua que eu teria conhecimento prévio dos malfeitos da Petrobras e que Lula seria um dos articuladores. A revista comete essa infâmia sem apresentar nenhuma prova. É um crime. É mais do que clara a intenção malévola de Veja de interferir de maneira desonesta e desleal nos resultados das eleições. A começar pela antecipação da edição semanal para hoje, sexta-feira, quando normalmente chega às bancas no domingo.

“Mas, como em outras vezes, em outras eleições, Veja vai fracassar em seu intento criminoso. A única diferença é que desta vez ela não ficará impune. A Justiça livre deste país seguramente vai condená-la por este crime. Ela e seus cúmplices tampouco conseguirão sucesso em seu intento de confundir o eleitor. O povo brasileiro tem maturidade para discernir entre mentira e verdade. O povo sabe que nunca compactuei com corrupção. Sou uma defensora intransigente da liberdade de imprensa, mas a consciência livre da Nação não pode aceitar que, mais uma vez, se divulguem falsas denúncias, em meio ao processo eleitoral. Os brasileiros darão respostas nas urnas. E eu darei minha resposta a eles na Justiça”.

O texto é claro: tratou-se de uma tentativa de golpe midiático, embora não seja exatamente essa a expressão utilizada por Dilma. Trata-se de um crime, ela diz, a intenção malévola de interferir de maneira desonesta e desleal nos resultados das eleições. Afirma que Veja já fez isso em outras eleições, e de fato exemplos não faltam. E que recorrerá à Justiça para que ela pague pelo crime cometido. Desta vez, Veja foi longe demais, embora nunca se possa prever qual será a posição do Judiciário face às iniciativas da presidenta para fazer com que a revista pague pelo crime.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 29 de outubro, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, criticou duramente os vazamentos seletivos e mirou, sobretudo, o advogado de Alberto Youssef, Antonio Figueiredo Basto.

“Estava visível que queriam interferir no processo eleitoral. O advogado do Alberto Youssef operava para o PSDB do Paraná, foi indicado pelo (governador) Beto Richa para a coisa de saneamento (Conselho de Administração da Sanepar), tinha vinculação com partido. O advogado começou a vazar coisa seletivamente. Eu alertei que isso deveria parar porque a cláusula contratual diz que nem Youssef nem o advogado podem falar. Se isso seguisse, eu não teria compromisso de homologar a delação”.

Não bastasse a tentativa do golpe midiático de Veja, localizou-se ainda um episódio de nítida inspiração golpista – a exploração do internamento hospitalar do doleiro Alberto Youssef. Qual o centro da articulação que transformou tal internação em envenenamento, ninguém sabe ainda. Isso também teve natureza essencialmente midiática, só que centrada na rede mundial de computadores. A internet foi invadida pela notícia de que o doleiro estava internado em hospital de Curitiba, na UTI, envenenado por organofosforado. Uma queda de pressão arterial foi convertida em envenenamento, e o boato foi se transformando numa verdade indiscutível, que se prolongou até o meio do dia da própria votação, domingo, mesmo que a Polícia Federal já o tivesse desmentido.

O fato só foi devidamente esclarecido, ao menos oficialmente, na noite de sábado pela Polícia Federal. O doleiro havia passado mal no final da manhã, tivera uma forte queda de pressão em decorrência do uso de medicação contínua no tratamento de doença cardíaca crônica, e fora levado no início da tarde para a UTI do Hospital Santa Cruz por agentes da Polícia Federal. Até uma falsa página do G1 no Paraná foi inventada para sustentar a mentira, com o óbvio propósito de ligar o fato a uma “queima de arquivo” por parte do PT. A manchete da falsa página era categórica: “Doleiro Youssef é achado morto em hospital de Curitiba”, e foi ao ar às 10 horas de domingo de modo a que as especulações prosseguissem e pudessem influenciar o resultado eleitoral.

Não creio possa essa iniciativa de Veja ser retirada de um contexto mais amplo. A história nos ensina que não devemos. Que nos recordemos do Ipes, do Ibad, da preparação golpista contra Goulart. Que liguemos tudo isso ao Instituto Millenium, de hoje. Que entendamos que a mídia não age solitariamente. Que está vinculada a uma perspectiva política, que conforma o que Gramsci chamava, lá trás, de partido político em amplo sentido, e partido conservador. Que substitui e impulsiona o partido da direita no Brasil, não importa o nome que a ele se dê.

E não se deve ignorar que a mídia não parou de trabalhar depois da eleição da presidenta Dilma. Trabalhar incansavelmente para desestabilizar o governo dela e, no limite, se reunir forças, chegar ao impeachment. Está certa Tereza Cruvinel ao dizer que, para além da tentativa golpista naquele momento, Veja conseguiu colocar a palavra impeachment no mercado de ideias, palavra que foi abraçada pelos gatos pingados golpistas que foram às ruas até agora e pelos partidos de oposição, inclusive por alguns de seus principais líderes. O problema não está nas ruas. Está na tentativa ideológica, bem pensada, de naturalizar a ideia do impeachment, perigosamente.

Estamos a léguas da possibilidade de golpes militares nos dias de hoje na América Latina. Mas não de outro tipo de golpe. Paraguai e Costa Rica nos ensinam. Nossa realidade é outra. Dilma foi eleita com 51,64% dos votos dos brasileiros. Temos um movimento social capaz de se mobilizar, como se comprovou na campanha. Mas, para contrapor, o principal partido do país está sob um ataque virulento, demonizado, como se fosse um partido de bandidos, e o PT, por mais erros que tenha, e os tem, é a mais importante e ampla organização partidária que o Brasil já conheceu. Só não se sabe quais as consequências que o partido experimentará diante de fogo tão cerrado. As operações que correm no Judiciário, por mais verdadeiras que possam ser, têm uma natureza obviamente seletiva, visando ao PT e minimizando quaisquer impactos que atinjam os partidos de oposição, especialmente o blindado PSDB. E essa seletividade, essa criminalização do PT, é claramente dirigida pela mídia, incansável nesse objetivo.

Será possível seguir avançando na democratização da sociedade brasileira se a mídia não for submetida às determinações constitucionais, se não estiver sob o jugo da lei? Será possível possa continuar a mídia brasileira como um cavalo desembestado, sem freio, ciente de que pode tudo, ao arrepio da lei, inclusive tentar golpes, como o fez agora, nas eleições de 2014? Mais do que nunca, creio estar na ordem do dia a regulação da mídia, que assegure o pronto direito de resposta, que garanta o cumprimento dos dispositivos constitucionais, que não permita os monopólios, que fortaleça os meios de comunicação comunitários, que dê forças às empresas estatais de comunicação, às empresas da sociedade civil, que horizontalize a propriedade.

Sem regulação da mídia, viveremos o sobressalto permanente das tentativas de golpe, as tentativas de desrespeito às urnas, desrespeito às decisões soberanas das maiorias, destruição de reputações, irresponsabilidade no exercício do jornalismo. O jornalismo é uma atividade nobre, e não pode continuar nas mãos de quatro, cinco famílias que se acreditem capazes de fazer o que lhes der na telha para garantir o privilégio de uns poucos e que se dão ao direito de, sempre na nossa história, colocar-se partidariamente contra quaisquer governos progressistas em nosso país.  

- Emiliano José é jornalista, deputado federal (PT-BA) e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate
 
Teoria e Debate, Edição 132, 13 janeiro 2015
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/166779?language=en
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