As esquerdas na encruzilhada:
Eleições, crise do centrismo e o quadro político brasileiro
01/12/2014
- Opinión
A queda de votos do PT e suas razões
As eleições no Brasil, vencidas por Dilma Rousseff, registram o acirramento da luta política no país, o que se manifesta pela estreita vantagem eleitoral obtida e recuo expressivo da representação parlamentar do Partido dos Trabalhadores (PT), pela votação marginal das esquerdas e o avanço significativo dos setores conservadores no Legislativo. A diferença eleitoral em favor do PT nas eleições presidenciais se manteve estável entre 2002 e 2006, na faixa dos 22% dos votos válidos, mas a partir de 2010 caiu para 12,1% e em 2014, para apenas 3,3% destes. No Parlamento, o PT conquistou 70 cadeiras, em 2014, perdendo 21 em relação ao seu melhor resultado, alcançado em 2002. O Congresso eleito é considerado o mais conservador desde 1964 e nele as bancadas sindicais e dos movimentos sociais perderam mais de 50% de seus representantes
Como explicar este descenso da votação do Partido dos Trabalhadores e o desempenho pífio das esquerdas, especialmente após os protestos de junho de 2013 que levaram mais de um milhão de pessoas às ruas em todo o país e a confrontações bastante violentas?
Ao meu ver, este descenso está vinculado a uma inadequação de estratégias para lidar com a nova conjuntura que emerge a partir da década de 2010. Esta conjuntura está marcada por restrições econômicas internacionais que impulsionam as internas e limitam o espaço estrutural do centrismo, afetando a América Latina no seu conjunto e impulsionando uma situação social populista. As restrições internacionais se referem à interrupção do ciclo de boom das commodities, queda de superávits comerciais, e limitações a partir de 2012 nas entradas de capitais estrangeiros. Elas diminuem os excedentes que compõem a taxa de lucro do grande capital nacional e estrangeiro e restringem o espaço para as políticas distributivas e de ampliação do mercado interno, que se chocam com os limites da superexploração, característica estrutural do capitalismo dependente.
A situação social populista, tal como descrita por Ernesto Laclau, em seu livro La razón populista (2005), é marcada pelo predomínio das demandas equivalenciais sobre as demandas diferenciais, próprias dos Estados liberais, e se estabelece quando o espírito nivelador prevalece levando os indivíduos a constituírem uma unidade, o povo, como sujeito social em busca de uma interpelação que lhe revele as razões da condição de exclusão em que se encontram e o inimigo a ser vencido. Diferentemente, o Estado liberal se coloca como o de todos e atende às interpelações dos indivíduos verticalmente, de cima para baixo, evitando polarizações e o primado da lógica da confrontação. No Estado liberal, a unidade das demandas dos indivíduos é minimizada e estes assumem o seu lugar numa sociedade civil estratificada, burguesa, buscando seus interesses privados e diferenciados, sem apelar à construção de um sujeito coletivo, uma vez que cabe ao Estado articular a totalidade.
A situação populista no Brasil e seus efeitos
Junho de 2013 revela o surgimento no Brasil exatamente de uma situação social populista, onde o acumulo de tensões leva os indivíduos com as demandas mais diversas a identificarem-se mutuamente, criando mobilizações de massa que quebram os princípios de funcionamento do Estado liberal em vários níveis ao:
- criarem um sujeito coletivo que rompe com o mecanismo verticalizado e hierarquizado de interpelação e com sua temporalidade, lenta e moderada para o atendimento de demandas;
- estabelecerem uma polarização social que rompe com a concepção de uma sociedade homogênea e diversificada, indicando a existência de uma exclusão permanente e estrutural imposta por grupos sociais minoritários às amplas maiorias;
- buscarem a nomeação de um inimigo, que responsável pela exclusão permanente e estrutural, deve ser vencido.
As estimativas sobre o perfil das massas que saíram às ruas em junho de 2013 são imprecisas, mas é certo que uma parcela significativa era composta por jovens e por setores de baixos ingressos. Segundo cálculos do Ibope as famílias com 2 a 5 salários mínimos – que correspondem àquelas dos trabalhadores de baixa renda, com recursos suficientes para não participarem do bolsa família, mas em condição de vulnerabilidade econômica e social – compunham 30% dos manifestantes e somados aos 15% que vivem em famílias que recebem até 2 salários mínimos, representavam 45% dos manifestantes.
A este segmento se somam as famílias com renda entre 5-10 salários mínimos que representaram 26% dos manifestantes e compõem uma classe trabalhadora de renda média. No conjunto, pelo menos, 71% dos manifestantes configuram frações heterogêneas da classe trabalhadora.
Trata-se de uma população que foi às ruas de forma difusa, impulsionada por um sentimento de exclusão, reivindicar a aplicação dos direitos sociais da carta constitucional de 1988 – que garante formalmente os direitos à saúde, educação, lazer, segurança, a previdência, assistência social, proteção à maternidade e à infância – e estendê-la para incluir aí o direito ao transporte e à informação. A quebra da estética liberal de fazer política, implicou um esvaziamento do centro, abrindo-se o espaço para uma ofensiva dos extremos, à direita e à esquerda, que misturavam-se nas manifestações, muitas vezes conflitivamente, empunhando bandeiras contraditórias.
Nas manifestações junho de 2013, a situação populista cumpria dois de seus requisitos: a criação de um sujeito coletivo manifesto em mobilizações de massa e a reinvindicação da polarização social, mas falhava num terceiro aspecto, a identificação do inimigo, razão do seu caráter extremamente difuso, de sua frágil unidade e de sua vulnerabilidade a articulações discursivas que o propusessem. Frente a esta situação social, a preservação do estilo liberal do governo Dilma, vinculado aos interesses dos mais amplos segmentos, isto é, os extremamente pobres e os extremamente ricos, e profundamente institucionalizado, ao atuar politicamente no marco da relação de força entre os 3 poderes sem mobilizar a participação popular, torna-se uma enorme desvantagem.
O governo Dilma manteve-se como um governo de todos, hierarquizado e não definiu nenhum inimigo que fosse na direção do desejo de nomeação, articulado à explicitação das frustrações, descontentamentos e enorme emprego de energias populares. Inversamente, o sistema midiático e a direita lançaram suas interpelações à população: inicialmente o inimigo seria a corrupção impulsionada pelos partidos políticos; posteriormente a interpelação foi se fixando quase exclusivamente no PT e no governo Dilma, como os seus principais responsáveis. Foi apenas no processo eleitoral que a popularidade do governo Dilma voltou a subir, saindo da faixa dos 30% para os 40%, quando sua campanha política indicou como o inimigo o risco da volta do neoliberalismo radical. Todavia a recuperação da popularidade foi tímida e esta manteve-se muito longe do patamar anterior às manifestações de 2013, quando se situou em torno dos 70%. A experiência de governo que contrariou a campanha, mantendo a estética liberal, não se propondo a identificar o inimigo que as massas buscavam nas ruas, limitou fortemente esta recuperação.
As eleições revelaram uma alteração da geografia do voto do PT:
- A maior parte da votação do PT se deslocou para o Nordeste que ultrapassou a contribuição do Sudeste – região de maior concentração de votantes no país, cerca de 44% – por 37% x 36;
- recuou significativamente a votação do PT no conjunto das capitais, em particular as do Sul e Sudeste, enquanto aprofundou-se significativamente a do interior e em menor intensidade a de capitais do Nordeste;
- nos munícipios onde a maior parte da população recebe bolsa-família, Dilma atingiu 72% dos votos válidos no segundo turno, enquanto que naqueles onde menos da metade da população recebe o benefício, alcançou apenas 47,5% destes.
Tais evidências revelam a expressiva perda de votos do PT entre os segmentos que participaram das manifestações de junho de 2013, isto é, trabalhadores de renda média ou baixa, que não foram alvo da política petista de combate à pobreza, focalizada e dirigida à extrema pobreza – basicamente aqueles segmentos populacionais com renda mensal inferior a ½ salário mínimo, ao passo que, segundo o Dieese, encontram-se em condições carência de satisfação de necessidades básicas aqueles indivíduos que percebem menos que 1 salário mínimo mensal, situação de 56% da população brasileira em 2013, segundo a PNAD.
O equívoco do conceito de classes médias
Esse contingente populacional não é constituído por classes médias. Um grande equívoco conceitual com incidência sobre a construção de políticas públicas foi a construção do conceito de classe médias pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), que inclui nesta faixa um amplo conjunto populacional constituído por aqueles que recebiam renda entre R$ 291 e R$ 1019, em valores de abril de 2012, isto é entre 0,46 e 1,63 salários mínimos. Apenas nas condições de 2009, segundo documento da SAE, 68% dos brasileiros se encontravam da classe média-média para baixo, isto é, recebiam ou estavam em famílias com renda per capita inferior a 1,03 salários mínimos (ver: Perguntas e respostas sobre a definição de classe média).
Longe de constituírem uma classe média, com características e ideários pequeno-burgueses, estes contingentes amplamente heterogêneos constituem frações distintas da classe trabalhadora. Algumas em situação de pobreza, desassistidas das políticas de renda mínima e percebendo entre 0,46 e um salário mínimo per capita, outras em situação de vulnerabilidade, porque próximas da situação de pobreza e pressionadas a formar o valor de sua força de trabalho num mercado de trabalho com exigências crescentes de qualificação, desempenho e consumo, onde o piso do que é pobreza se eleva.
Portanto o que explica a perda destes contingentes da classe trabalhadora no arco de votação do PT não é seu aburguesamento, mas o fato de serem abandonados pelas políticas públicas. Pesquisas sobre a concentração de renda que incluíram a declaração do imposto de renda como indicador e não a autodeclaração, mostram que entre 2006-2013 a concentração de renda não baixou, permaneceu estável e altamente desigual, evidenciando o caráter centrista dos governos petistas.* O 1% mais rico da população se apropriava de 1/3 da renda e os 10% mais ricos de 60% da mesma em 2012. É exatamente a combinação de reversão da conjuntura internacional favorável, forte redução da taxa de crescimento econômico no governo Dilma, com aumento de empregabilidade e conservação de altos níveis de desigualdade que abriu o espaço para explodir tensões acumuladas. Entre os fatores que pressionam a desigualdade para cima está a brutal elevação de preços de aluguéis e do metro quadrado dos imóveis residenciais,** que somados às intervenções urbanísticas associada aos megaeventos, deslocaram expressivos contingentes populacionais para as periferias das grandes cidades, agravando os problemas de mobilidade urbana nas capitais.
Para retomar a hegemonia sobre estes segmentos populacionais cabe ao Governo Dilma reconhecer a situação populista que persiste no Brasil, e que tende a se aprofundar, e indicar um inimigo, considerando a relação de forças que se apresenta, atendendo aos anseios de polarização social da população. A ausência de uma interpelação mais concreta do inimigo durante a campanha eleitoral – o inimigo estaria no passado, seria a volta do neoliberalismo radical representado pelo PSDB, DEM ou pela rede de Marina – é insuficiente para ampliar a reconquista das bases populares petistas ou mesmo para mantê-las, uma vez que este teria sido derrotado na própria campanha eleitoral.
O centrismo petista e a fragmentação das esquerdas no processo eleitoral – dividida em 4 partidos (PSOL, PCB, PSTU, PCO) incapazes de unificar candidaturas e programas eleitorais – levou a um pífio resultado no Legislativo, resultado da ausência ou da desorganizacão de suas interpelações às múltiplas demandas progressistas colocadas por expressivos contingentes que foram as ruas em junho de 2013: desmilitarização da polícia, descriminalização do consumo de drogas, descriminalização da interrupção da gravidez, legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, entre outras. Na ausência de interpelação verticalizada à esquerda destas demandas difusas e horizontalizadas, a direita lançou as suas, aproveitando-se de suas instituições hierarquizadas e consolidadas na sociedade civil, ampliando a bancada da bala e a bancada evangélica no Legislativo, indicando como inimigo o pacifismo, a tolerância e a liberalização dos costumes.
Qual deve ser a agenda do governo Dilma? a ruptura com o centrismo!
O que poderão então fazer o governo Dilma e o PT neste cenário? Não adianta colocar a prioridade em temas que dependam do Congresso, como reforma política e regulamentação da mídia. Por mais importantes que sejam, essas pautas escapam ao controle do Poder Executivo e ao Presidencialismo de coalizão, dada a relação de forças desfavorável no Legislativo.
A prioridade deverá estar em romper com a hegemonia do capital financeiro sobre o Estado e o orçamento público. Para isto torna-se necessário reduzir drasticamente as taxas de juros, reformular o Conselho Monetário Nacional, hoje reduzido ao Ministro da Fazenda, ao Ministro do Planejamento e ao Presidente do Banco Central, incluindo nele atores que no passado dele fizeram parte, como o Ministro do Trabalho, da Indústria, etc. Trata-se de liberar o orçamento federal, comprometido em 40% do seu montante com o pagamento de juros e amortizações, para investimentos públicos massivos em educação, saúde, habitação, mobilidade urbana e infraestrutura. Tais investimentos permitiriam direcionar uma política pública para amplas camadas das classes trabalhadoras que hoje não encontraram apoio significativo nas políticas governamentais.
A redução das taxas de juros permitiria ainda saltar os obstáculos que superexploração do trabalho parece colocar ao dinamismo do mercado interno, em função das pressões sobre os custos que a elevação salarial provoca numa burguesia dependente que repassa aos seus trabalhadores as perdas oriundas da competição assimétrica com o grande capital internacional. Tal redução diminuiria os custos de produção e permitiria criar durante algum tempo um boom neodesenvolvimentista que até aqui permanece mais como uma promessa que como um resultado efetivo dos governos petistas. Este boom poderia ser a base para a formação de um resultado muito mais favorável no Congresso em 2018, o que permitiria lançar projetos muitos mais ousados de reforma da sociedade brasileira.
Todavia não vai ser fácil para o governo Dilma mudar sua forma de fazer política. A dinâmica da campanha, onde a militância momentaneamente se autonomizou do Partido, e este do governo, reintroduzindo vitalidade ao bloco histórico liderado pelo PT, precisa se consolidar, mas possui bases muito frágeis que podem, todavia, se fortalecer novamente num cenário mais dramático de crise institucional. Os primeiros sinais do governo Dilma vão no sentido de ampliar sua aproximação à direita, diminuindo as tensões com a oligarquia financeira e o empresariado; novo ciclo de alta dos juros e a definição de uma equipe econômica.
Tal leitura do recado das urnas é equivocada, amplia o seu desgaste de curto e médio prazo, abrindo o espaço para novas ofensivas da direita. A ofensiva fascista que se observou nas ruas brasileiras, seja em setores específicos dos movimentos de massa em 2013, seja durante ou após a campanha eleitoral de 2014, solicitando impeachment ou intervenção militar, se alimenta da combinação entre situação populista, política deflacionista e desgaste das esquerdas. Caso esta venha a se combinar no futuro com a elevação dos níveis desemprego, como ocorreu na Alemanha em Weimar, pode criar uma situação explosiva, levando ao recrudescimento de expressivos movimentos de massa fascistas que questionem o centrismo de esquerda na busca de soluções radicais.
Tal situação necessita ser avaliada com cuidado pelo amplo leque de forças de esquerda no país para se pensar os caminhos de uma nova etapa de políticas públicas macroeconômicas e sociais que sejam o lastro para uma ofensiva político-cultural capaz transformar amplamente as estruturas jurídico-políticas da sociedade brasileira, democratizando-a.
Notas
* Veja-se o artigo “A estabilidade da desigualdade de renda no Brasil: 2006-2012”, de Marcelo Medeiros, Pedro Sousa e Fabio Castro.
** O índice FIPE-ZAP que mede a oscilação de preços dos imóveis em grandes capitais apontou uma valorização de 97% e 143% dos alugueis em São Paulo e no Rio de Janeiro, entre janeiro de 2008 e julho de 2014. Já o preço do metro quadrado do imóvel residencial oscilou no período em 260% no Rio de Janeiro e em São Paulo em 214,9% contra a inflação do IPCA de 45%.
- Carlos Eduardo Martins é professor adjunto e chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ) e coordenador do Grupo de Integração e União Sul-Americana do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso).
01/12/2014
https://www.alainet.org/pt/articulo/165855?language=es
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