Todorov e os inimigos íntimos da democracia

04/02/2013
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A

 

Tzvetan Todorov, Os inimigos íntimos da democracia, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, 215 p.
 
Há poucos dias o jogador Josy Altidore foi vitima de insultos racistas na Holanda. Cada vez que tocava na bola os torcedores da equipe contraria começavam a imitar um macaco. A resposta do jogador a tais manifestações de racismo foi a seguinte:
 
“O que você pode fazer? Apenas espero que esses torcedores encontrem um meio de melhorar (como pessoas). Você só pode rezar por elas. Eu sinto como se tivesse uma obrigação com o meu clube e minha família, de não reagir a coisas como essa e mostrar que o clube é melhor do que isso e que eu fui muito bem criado para responder a tão ridículo comportamento. A gente devia esperar que a humanidade pudesse crescer, mas isso ainda está vivo, o racismo. Tudo o que podemos fazer agora é nos educar e educar as crianças para serem melhores do que isso. Eu não vou combatê-los (os torcedores racistas). Eles têm seus problemas e precisam de ajuda. Vamos rezar por eles e esperar que eles melhorem.”[1]
A declaração de Altidore nos coloca no centro de uma das teses levantadas por Tzvetan Todorov no livro em questão: o racismo. No seu breve e incisivo ensaio, este filólogo, historiador das idéias e intelectual búlgaro radicado na França, expõe com proverbial claridade sobre quais seriam os principais riscos que enfrentam as democracias no mundo contemporâneo, a saber, o messianismo, o ultraliberalismo e o populismo.
O mais assustador deste perigo é que ele nasce da própria esfera democrática, quando os valores e mecanismos mutuamente compartilhados adquirem um “descomedimento” (húbris), ou seja, um uso excessivo e distorcido de tais valores. Isso resulta quando os ideais da vida democrática como progresso, liberdade ou povo são absolutizados a tal ponto que se transformam em elementos de coerção das comunidades e dos indivíduos. Nas palavras de Todorov “O povo, a liberdade, o progresso são elementos constitutivos da democracia; mas se um deles se emancipa de suas relações com os outros, escapando assim a qualquer tentativa de limitação e erigindo-se em único e absoluto, eles transformam-se em ameaças: populismo, ultraliberalismo, messianismo, enfim, esses inimigos íntimos da democracia.” (Todorov, op. cit.: 18).
No inicio do livro, Todorov tenta demonstrar que à diferença do que é difundido permanentemente pelos políticos, experts e mídia em geral, o islamismo integrista e os grupos terroristas jihadistas (como a Al-Qaeda) não representam uma ameaça significativa para as democracias ocidentais se comparada com aquelas formas totalitárias ocorridas durante o século XX, tais como o comunismo ou o nazifascismo. Aquela é uma perspectiva errada, construída intencionalmente para ocultar os verdadeiros riscos que enfrentamos atualmente, pois o perigo realmente imperante consiste nas forças deletérias internas que a própria democracia produz e, desta maneira, combatê-las e neutralizá-las é tanto mais difícil, pois elas invocam o espírito democrático quando na realidade se encontram corroendo seus mesmos pilares: o Mal surgindo do Bem.
Na historia humana a procura do Bem freqüentemente se ergueu a partir do convencimento de que os outros precisam de ajuda e “salvação”, razão pela qual me transformo na encarnação dessa missão de construir a redenção universal.[2] Este messianismo que se expressou em diversos momentos históricos - nas guerras revolucionarias e coloniais, bem como no projeto comunista-, mas na forma contemporânea ele se veste com as roupagens dos valores democráticos universais, quando na são simplesmente desejos de poder e riqueza travestidos de humanismo.
Assim, surge em primeiro lugar o chamado “direito de ingerência”, quer dizer, se num determinado país se realizam violações aos direitos humanos, outros países podem decidir utilizar a força para evitar que ditas violações se continuem consumando (Kosovo). Outra modalidade deste novo messianismo tem sido cunhada com o nome de “guerra contra o terrorismo” em que se torna valida e imprescindível a ocupação de um determinado país em caso de que ele se encontre sendo utilizado como base de operações de grupos terroristas (Afeganistão). Por sua vez, a guerra preventiva considera legitima a utilização da força para livrar ao conjunto da humanidade de algum perigo iminente. Finalmente, existe a formula da chamada “guerra humanitária”, em que também se produz a imposição pela força a outros países ou nações dos valores universais, utilizando para isso intervenções militares com ocupação territorial, como tem sido evidente nos casos de Iraque ou da Líbia.
De fato, o conceito de guerra humanitária representa uma contradição fragrante, dado que dificilmente se pode pensar que as ações decorrentes de uma guerra possam trazer algo de humanidade no seu seio. No entanto, o que é passível de apreciar trás todos estes conceitos é que a grande maioria das intervenções tem sido motivada por razões de orgulho e de poder e que sua justificação aduzindo pretextos humanitários representa um tipo de messianismo interessado que provoca mais danos que benefícios para os povos que se pretende proteger. Efetivamente, o resultado desses empreendimentos somente conduziu a um aumento dos desastres da guerra com sua enorme seqüela de vitimas inocentes.
A outra forma que a democracia possui para converter-se em sua própria inimiga, diz respeito à perda do equilíbrio que deveria existir entre o poder consagrado ao povo e a liberdade dos indivíduos. Portanto, o vinculo que se estabelece entre a soberania do povo e a autonomia da pessoa –nos adverte Todorov- precisa ter uma limitação mutua em que “o individuo não deve impor sua vontade à comunidade, e esta não deve interferir nos assuntos privados de seus cidadãos.” (Todorov, op. cit.: 16).
A oposição entre populismo e ultraliberalismo convoca-nos então a pensar nos limites que é indispensável estabelecer para que as duas dimensões se mantenham em equilíbrio, ainda que, parafraseando Norbert Elias, isto se dê através de um “equilíbrio móvel de tensões”. Sempre existe o perigo de que a consagração do popular possa se tornar na encarnação do bem coletivo e, conseqüentemente, alimentar a idéia de que certos valores como a pátria, a raça ou a comunidade, devem ser compartilhados pela totalidade dos seres humanos. Na verdade, se o equilíbrio é instável, isto implica que se pode transitar facilmente para expressões de autoritarismo, xenofobia, racismo e intolerância à diversidade, quando o diferente é rejeitado por constituir ameaça à essência de determinado povo.
Geralmente este populismo se apresenta sob a forma de demagogia, prometendo dar soluções fáceis a problemas complexos sem existir nenhuma certeza de que as poderá cumprir. O populismo representa uma política de curto prazo que se limita a propor saídas tangíveis a uma audiência massiva ávida de respostas – geralmente através de um contato direto em espaços públicos – e cujos medos são exacerbados. Na experiência recente, o populismo europeu tem atacado o multiculturalismo argumentando que ele encarna uma ameaça para a identidade nacional.[3]
Desta maneira, o populismo hipertrofiado impede reconhecer a humanidade dos outros e dissemina a intolerância daquilo que é diferente. Por isso a democracia corre um grave risco quando é substituída pelo populismo, “que ignora a diversidade interior da sociedade e a exigência de visar, para além das satisfações imediatas, as necessidades do país em longo prazo.” (Todorov, op. cit.: 195).
Contrariamente, no conflito com o populismo e suas formas autoritárias, a hipervalorização dos indivíduos pode acarretar o desprezo por tudo aquilo que visa ao coletivo. Sendo assim, a liberdade individual e a vontade do individuo se superpõe a qualquer intento de construir o bem-estar geral, em que finalmente as pessoas são movidas por um repertorio de preferências individuais, especialmente econômicas, vêem-se isoladas umas das outras e rejeitam a tessitura social. Sabemos por toda a tradição sociológica que a sociedade não se resume à mera soma dos indivíduos que fazem parte dela: diferentemente disso, ela é um produto das interações precedentes e constantes que se estabelecem entre seus membros.
Sendo a liberdade individual um aspecto fundamental da democracia, esta pode também constituir-se numa ameaça quando se cinde do todo social, quando consagra a vontade dos indivíduos por sobre o resto da coletividade, quando adquire um poder ilimitado acima da vontade geral. No intento de libertar às pessoas das ataduras e da subordinação do Estado, o ultraliberalismo deixa aos indivíduos a mercê do mercado e as empresas. Opondo-se a toda medida de regulação por parte dos poderes públicos, o ultraliberalismo deixa a humanidade órfã de proteção, entregada ao livre jogo da oferta e da procura, dos mercadores, dos financistas e dos poderosos.
Estamos finalmente ante a presença de uma tríade (messianismo, populismo, ultraliberalismo) que vai corroendo os fundamentos da própria promessa democrática, de sorte que os princípios essenciais do discurso democrático se transformam em ameaças concretas: “a liberdade torna-se tirania, o povo se transforma em massa manipulável, o desejo de promover o progresso se converte em espírito de cruzada. A economia, o Estado e o direito deixam de ser meios destinados ao florescimento de todos e participam agora de um processo de desumanização.” (Todorov, op. cit.: 197).
Que podemos fazer para superar este cenário aparentemente irreversível? Acredito que Todorov concordaria com o teor do discurso de Josy Altidore citado no começo. Quiçá se uma resposta semelhante possa ser procurada nas suas palavras finais do autor, quando assinala que um remédio para nossos males contemporâneos deveria consistir numa evolução das mentalidades que permita “recuperar o entusiasmo do projeto democrático” e tentar construir um melhor equilibro entre seus princípios fundamentais, progresso, povo e liberdade.
Nelson Mandela costumava dizer que, assim como a escravidão e o apartheid, a pobreza não é um acidente. É uma criação do homem e pode ser eliminada com as ações dos seres humanos. Talvez as aspirações e esperanças de Todorov passem longe dos desafios que temos pela frente, mas seu diagnóstico das sociedades modernas e seu apelo incontestável à força da vontade humana são um primeiro intento válido de avançar no esforço coletivo para fazer do mundo um espaço de convivência mais plural, afetuoso e fraterno.
Fernando de la Cuadra
Sociólogo chileno. Pesquisador da Rede Universitária de Pesquisadores sobre a América Latina (RUPAL). http://fmdelacuadra.blogspot.com.br/


[1] Allan Caldas, “Racismo interrompe jogo na Copa da Holanda”, O Globo, 29/01/2013.
 
[2] As referencias teológicas se devem precisamente ao caráter missioneiro da empresa, que como todo ato religioso se incumbe de um profundo voluntarismo e Fe derivado da Graça Divina, aspectos que o autor recupera no debate entre Pelágio e Santo Agostinho a respeito da dualidade entre a vontade humana e a predestinação divina.
 
[3] A conseqüência mais dramática desta ideologia são os assassinatos em serie cometidos na Noruega em que um nacionalista fanático matou a 84 pessoas em nome de uma suposta proteção ou resguardo da identidade cultural tradicional.
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/164364?language=en
Subscrever America Latina en Movimiento - RSS