No Paraguai, tendência é de polarização

02/04/2009
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Ao analisar o processo político paraguaio, Charles Quevedo projeta um cenário de avanço nas mobilizações sociais e de polarização entre os setores populares e as elites do país. “Estamos vivendo um novo ciclo de ação coletiva no Paraguai”, analisa. Engenheiro de formação e funcionário do Ministério da Fazenda, Quevedo é professor de Filosofia e mestrando em Sociologia. De formação gramsciana, ele acredita que, apesar das contradições, a chegada de Fernando Lugo à presidência criou condições para o fortalecimento dos setores progressistas da sociedade civil, o que pode redundar num processo de aprofundamento das lutas sociais. “Isso vai exigir do governo tomar o rumo com o qual iniciou o processo eleitoral”, avalia nesta entrevista ao Brasil de Fato.

Brasil de Fato – Desde a posse de Fernando Lugo, em agosto do ano passado, quais foram suas principais dificuldades enfrentadas até agora?

Charles Quevedo – As origens do governo Lugo têm a ver com uma aliança em que entraram setores muito heterogêneos, de esquerda, de centro-esquerda e mesmo setores conservadores que não estavam no governo anterior. Esse é o cenário dentro do qual se movimenta o governo. E a dificuldade que se projeta no começo da gestão é justamente a impossibilidade de se avançar com a aprovação de leis, porque o parlamento está ocupado pelos partidos tradicionais, que basicamente são todos conservadores. Essa tem sido a principal dificuldade enfrentada para se realizar mudanças mais fortes.

- Nesse cenário em que o governo encontra dificuldades no Congresso e também não consegue promover reformas no Poder Judiciário, você acredita que a saída de Lugo será uma composição mais à direita ou contar com a mobilização dos movimentos sociais?

Diferentemente dos processos na Bolívia e na Venezuela, em que Evo Morales e Hugo Chávez chegaram ao poder apoiados por um amplo movimento popular, no Paraguai não houve esse panorama. Assim, Lugo não conseguiu escapar do esquema institucional que estava montado. Ele não tem muitas opções e tem que negociar com os setores conservadores, o que significa que está se acomodando em um espaço de centro.

Mas há uma questão. O poder não se concentra somente no Estado; tomá-lo não é simplesmente ocupar o governo. O poder também se move na sociedade civil, espaço no qual se luta pela hegemonia. Nesse sentido, o crescimento dos setores progressistas nesse âmbito tem sido um dos avanços mais importantes. Eu creio que há condições, dentro do governo, para apoiar tal crescimento. Há ministérios, instituições, com a presença de pessoas progressistas. Por isso, acho que o cenário mais promissor é que ocorra, a médio e longo prazo, um fortalecimento dos movimentos populares na luta por hegemonia.

- A presença de quadros da esquerda no governo não pode gerar uma apatia nos movimentos sociais?

Por minha experiência pessoal, já que trabalho no Ministério da Fazenda, considero positiva a presença de progressistas nas instituições do Estado. Porque, dentro das instituições, há possibilidade de revisar as políticas, fazer as coisas. Obviamente que existem situações de pessoas que mudam de posição ao entrar em contato com o poder. É um risco que sempre existe em qualquer processo popular. Mas eu considero positivo. Os setores progressistas podem reorientar as políticas do governo rumo a posições mais interessantes.

- Intelectuais como John Holloway costumam criticar os processos bolivianos e venezuelanos por essa questão.

De um ponto de vista gramsciano, isso estaria totalmente em contraposição ao que pensa John Holloway. A postura de Holloway, nesse sentido, é esperar o grande dia. O dia em que tomaremos o Palácio de Inverno [local tomado pelas forças bolcheviques durante a Revolução Russa, em 1917]. Coisas que não ocorrem. Tomar o governo não é tomar o poder. O poder se conquista antes de tomar o Estado, ele se constrói na sociedade civil, criando uma nova hegemonia, que inclui a participação em processos parlamentares e em instituições do Estado, que são campos da luta de classe.

- E que movimentos da sociedade civil você destacaria como mais promissores?

Historicamente, o movimento camponês teve um papel importante. É um movimento que passa por momentos de latência, nos quais não aparece, mas segue trabalhando em sua organização, na capacitação dos militantes, formando redes, mantendo contatos com outros setores. Eu creio que estamos vivendo um novo ciclo de ação coletiva no Paraguai, e o principal componente é o movimento camponês.

- E como você avalia a resposta do governo em relação à reforma agrária?

O movimento camponês no Paraguai é o mais forte, e também possui o inimigo mais poderoso. As elites agroexportadoras são as mais fortes no rol do poder. Por isso, a médio prazo, deve acontecer um processo de luta muito intenso. Acho que vão ocorrer avanços, mas o movimento camponês precisa buscar aliados. O movimento sindical está completamente afastado do camponês. Não se consegue criar uma agenda de temas comuns, e isso é fundamental para o avanço do movimento social no Paraguai.

- Além das mobilizações de camponeses, as centrais sindicais estão anunciando uma greve geral, em razão do não-reajuste do salário mínimo. O que isso representa para o governo Lugo?

Desde o começo, a maioria das centrais sindicais apoiou a candidatura de Lugo, assim como a maioria das organizações camponesas, à exceção da Federação Nacional Campesina, que defendeu o voto em branco. Basicamente, todos os movimentos camponeses e sindicais apoiaram Lugo, mas sempre se disse que seria um apoio crítico. No momento em que o governo tomasse medidas diferentes do que se imaginava, os movimentos reclamariam. E é isso o que está acontecendo agora. Por isso eu digo que estamos vivendo um novo ciclo de ação coletiva que é muito singular, porque vai exigir do governo tomar o rumo com o qual iniciou o processo eleitoral. Ou seja, não serão protestos contra o governo Lugo, e sim pressões para que ele tome certas medidas e adote certas posições.

- Porém, se as mobilizações sociais devem aumentar, também se percebe pressões cada vez mais fortes dos setores conservadores.

Essa é a questão mais complicada que se apresenta para o governo. Vai requerer muita habilidade política do presidente Lugo e da equipe de governo. É difícil antecipar qual seria o desenlace dessa situação, mas se pode prever um cenário de polarização entre os setores. O que tampouco é negativo, porque isso vai facilitar a consolidação de movimentos de resistência nos setores populares, que anteriormente não podiam manifestar suas posições.

Nas eleições, a esquerda esteve muito fragmentada. Se ela tivesse conseguido unificar mais as candidaturas, a composição parlamentar hoje seria muito diferente, porque o crescimento dos votos nos setores progressistas foi muito grande em relação à eleição passada. Houve um aumento de 55% no eleitorado que vota em candidatos progressistas e de esquerda.

- No início do ano, os movimentos sociais iniciaram uma série de protestos exigindo a saída dos ministros da Corte Suprema, em consonância com o projeto do governo Lugo. No entanto, vem ocorrendo o processo inverso, com os ministros se tornando inamovíveis até os 75 anos. Por que isso aconteceu?

Eu creio que houve uma precipitação dos movimentos, um certo erro estratégico. Uma mobilização como essa requereria uma unificação mais forte dos setores populares. A unidade dos movimentos progressistas deveria estar mais consolidada antes de uma proposta assim tão ousada. No entanto, mesmo com esse erro estratégico dos movimentos, eu creio que, cedo ou tarde, ocorreria essa situação. Porque o Poder Judiciário é o último reduto do Partido Colorado, que agora está fora das instituições que eram a base de seu poder – um poder baseado no clientelismo –, e já não tem recursos das estatais.

- Neste sentido, como você vê a rearticulação dos setores de oposição ao governo Lugo?

Há divergências entre as classes dominantes. Elas já não estão unidas como antes; também possuem interesses distintos. A direita não está conseguindo formar um bloco organizado, o que também significa uma chance para os setores progressistas.

- Isso não acontece também porque o governo Lugo vem sendo, de algum modo, favorável aos interesses econômicos das classes dominantes?

Provavelmente. Lugo foi acompanhado, na campanha, por empresários que agora ocupam ministérios. O ministro da Indústria e Comércio pertence a uma elite capitalista tradicional no país. Isso significa que eles fizeram algum cálculo estratégico para verificar as vantagens com a saída do Partido Colorado.

- Durante a campanha eleitoral, defendia-se muito o combate à corrupção como forma de quebrar o eixo de sustentação da oligarquia paraguaia. Como você avalia esse processo atualmente?

Na minha opinião, o tema da corrupção funciona como um mito na política paraguaia. Ela explica tudo. A pobreza, o poder do Partido Colorado... a corrupção explica qualquer coisa no Paraguai. E, na verdade, não explica nada. É um mito no sentido de que se exagera o impacto real que ela tem. O Paraguai podia funcionar com muito menos corrupção, no entanto, ainda existiria pobreza e exploração. Essas questões são explicadas por outras causas, como a concentração de terra, o modelo produtivo agroexportador, a relação com nossos vizinhos, ou seja, uma série de questões estruturais dentro das quais a corrupção é apenas um elemento a mais.

- Como você avalia, então, as políticas do governo Lugo em relação ao modelo econômico?

Somente chegar ao governo não dá força suficiente para realizar transformações estruturais que afetem o modelo em si. É preciso uma hegemonia muito forte para realizar mudanças de políticas públicas através do Parlamento. Portanto, o governo necessita de muito mais força do que a que dispõe atualmente.

- Você gostaria de mencionar algo para finalizar a entrevista?

Parece-me importante o tema das relações entre os movimentos sociais de diferentes países. Historicamente, os movimentos sociais, intelectuais, os setores progressistas do Paraguai estiveram muito ilhados do contexto regional. É uma questão a ser superada. Estamos vivendo uma oportunidade histórica para isso.

QUEM É

Intelectual ligado aos movimentos sociais paraguaios, Charles Quevedo, 33 anos, é engenheiro de formação e funcionário do Ministério da Fazenda. Leciona Filosofia no Instituto Superior de Estudos Humanistas e Filosóficos (ISEHF), em Assunção, e atualmente cursa mestrado em Sociologia na Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (FLACSO).

Quem é

-Daniel Cassol é correspondente de Brasil de Fato em Assunção (Paraguai)

Brasil de Fato – edição 318 - de 2 a 8 de abril de 2009 – Pág. 11

https://www.alainet.org/pt/articulo/133117?language=es
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