Dom Aloísio: doçura e vigor

29/01/2008
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O ano que passou foi marcado por uma grande perda para a Igreja do Brasil. Em um só ano perdemos Dom Ivo Lorscheiter, Dom Luciano Mendes de Almeida e agora, em dezembro último, Dom Aloísio Lorscheider. É toda uma geração de bispos que deu à Igreja do Brasil um nome respeitado no mundo inteiro que se vai, deixando-nos saudosos e algo nostálgicos.

Conheci dom Aloísio nos idos dos anos 70, quando trabalhava na CNBB. Ele era presidente da Conferência e dom Ivo, secretário-geral. Bem diferentes os dois primos, embora irmanados em comunhão de ideais e linhas de trabalho. Enquanto Dom Ivo transpirava vigor por todos os poros, inclusive por sua alentada estatura e o tom da voz, Dom Aloísio sempre foi a doçura em pessoa. Voz mansa, alegria e sorriso permanente nos lábios, passava semeando paz e bem – o lema de sua espiritualidade franciscana – pelos corredores do casarão da ladeira da Glória, sede da Conferência.

Apesar de toda essa doçura, não deixava de transmitir e comunicar firmeza e vigor inquebrantáveis. Assim foi que inúmeras vezes sua voz se fez ouvir em defesa dos direitos dos pobres e contra as atrocidades que a tortura cometia nos porões da ditadura militar. Como lembra a nota da OAB por ocasião de sua morte, o período em que presidiu a CNBB corresponde ao mais duro e dramático da luta pela redemocratização do Brasil, na qual teve papel decisivo e atuação da mais transparente coragem. Naqueles anos ainda promoveu campanha pela reforma agrária e pelo fim dos conflitos no campo. Recebeu inúmeras ameaças de morte, que sempre enfrentou com notável confiança em Deus. Como arcebispo de Fortaleza, de 1973 a 1995, continuou sua trajetória em favor da reforma agrária e pelo fim dos conflitos de terra no Ceará.

Era, na verdade, um místico. E essa mística, essa intimidade com o mistério que vivia, transparecia em todas as suas atitudes que testemunhavam uma comovente fidelidade ao Evangelho. Talvez o mais notável episódio de sua vida seja o que lhe aconteceu em 1994, ao inspecionar as condições de um presídio na Grande Fortaleza. Nessa ocasião, foi feito refém pelos detentos, sendo libertado apenas 18 horas depois. A Igreja inteira viveu momentos de angústia temendo pelo que pudesse lhe acontecer. A tudo enfrentou com tranqüilidade e alegria.

Passados 15 dias, voltou ao presídio para realizar a cerimônia de lava-pés com os presos. Assim fazendo, dava um testemunho visível e palpável do perdão e do amor sem limites que o próprio Jesus recomendou que fosse vivido por seus discípulos qual novo mandamento: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Com este gesto de humildade e serviço a seus agressores, portou-se como digno filho de São Francisco, testemunhando a perfeita alegria que se mantém viva mesmo em meio às provações e aos sofrimentos.

Doutor em teologia, bispo, cardeal e aventado como possível Papa após a morte de Paulo VI, jamais se viu em sua pessoa nenhum apego aos cargos e honrarias que lhe eram outorgados por sua santidade e competência. A tudo assumia com a simplicidade e o espírito de pobreza próprios a sua espiritualidade, mostrando ao mundo um estilo de viver o episcopado totalmente na contramão da lógica do poder que domina os grandes desse mundo.

Com sua morte, tal como o disseram homens da Igreja e da política brasileira, fica o testemunho e o convite a seguir seu exemplo. Sobrepondo-se ao sentimento de orfandade com sua perda e ausência, desponta a esperança de que outros seguirão seu caminho e novamente fortalecerão os joelhos trêmulos e os ombros vergados dos pobres e oprimidos, ajudando-os a acreditar que sua libertação está próxima.

- Maria Clara Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
https://www.alainet.org/pt/articulo/125401?language=es
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