Don Pedro

19/11/2007
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Eu o conheci na enfermaria da Curia Generalizia da Companhia de Jesus em Roma. O famoso endereço conhecido mundialmente onde reside o Superior Geral da Companhia de Jesus, também chamado "o Papa negro". Fui ali levada por um amigo jesuíta chileno, que me perguntou se eu desejava vê-lo.

Tinha medo de ver diminuído pela doença o homem que eu tanto admirava e cujos textos, pronunciamentos, gestos proféticos, atitudes, olhava com paixão e veneração. O encontro com Don Pedro, o famoso Padre Pedro Arrupe SJ, que governou a ordem religiosa mais potente da Igreja Católica nos revolucionários tempos do Concílio Vaticano II foi repleto de afeto e serenidade.

Já não falava nem se movia. Magro e fragilizado pela doença, encontrava-se recostado na cama com uma pilha de travesseiros apoiando-lhe as costas. Quando o Pe. Ochagavía que me acompanhava, lhe dirigiu a palavra, vi seus olhos claros e brilhantes moverem-se e buscarem a direção de onde a voz vinha. Os famosos cativantes olhos do Pe. Arrupé voltaram-se na direção de meu amigo.

Depois que eu fui apresentada: "uma professora do Brasil que lhe tem muita devoção e carinho", os dois faróis luminosos voltaram-se para mim. Disse-lhe algumas palavras com a voz embargada pela emoção. Ele engasgou-se e tossiu. Meu amigo explicou-me que às vezes tentava falar mas não conseguia.

Naquela noite, demorei a conciliar o sono. O olhar de Don Pedro Arrupe, tão profundo e ainda cheio de vida, me perseguia. E eu relia aquela vida que marcara de maneira tão forte a face da Igreja e do mundo e agora se encontrava imóvel na cama da enfermaria da Cúria.

Estaria fazendo cem anos no último dia 14 de novembro o basco Pedro Arrupe, nascido em Bilbao. Estudou medicina e resolveu ser jesuíta. Uma vez dentro da Companhia pediu para ser enviado como missionário ao Japão. Ali passou longos anos, aprendendo fluentemente japonês - uma das nove línguas que dominava - e assimilando muito dos orientais, inclusive no que se refere a posturas e métodos de oração. É célebre uma foto de Arrupe em posição de lótus e olhos fechados, mergulhado em profunda oração.

Nomeado mestre de Hiroshima, viu-se um dia diante da hecatombe do cogumelo atômico, a bomba assassina da vida e da esperança de milhões. Imediatamente transformou o noviciado em hospital. Os noviços alternavam os tempos de oração com o cuidado aos feridos e desabrigados e o mestre, com seus conhecimentos de medicina, também.

Essa atenção ao chamado de Deus em cada circunstância, por mais desconcertante que fosse; essa abertura ao novo que se apresenta sem aviso e requer uma resposta foram sempre uma marca de sua vida. E foi assim que um dia se viu eleito por seus companheiros Superior Geral da Companhia de Jesus. Despediu-se dos outros trabalhos apostólicos e mergulhou de cheio na difícil e bela missão de levar adiante aquele corpo apostólico de 36.000 homens conhecido como a cavalaria ligeira da Igreja.

Nos tempos pós-conciliares, Don Pedro abriu seus ouvidos como bom discípulo e ouviu que o Senhor lhe pedia que lançasse a Companhia no serviço à fé inseparável da construção da justiça. Sabia que isso teria conseqüências práticas. Era um risco e como tal foi assumido. E daí resultaram algumas dores mas também
tantas bênçãos para a Igreja, que viu os jesuítas na vanguarda do movimento que levou a vida religiosa a encarnar-se no coração da marginalidade e da pobreza.

Homem de larga visão e grande coração, de profunda espiritualidade e incrível audácia apostólica, Arrupe tinha faro de perdigueiro para sentir os sinais dos tempos, para onde apontava o Espírito Santo. Foi assim que criou um serviço aos refugiados, os "boat people" que vagavam sem rumo e sem abrigo pelo mundo , que até hoje funciona, prestando relevantes serviços nos cinco continentes.

Arrupe inovou em todos os campos apostólicos: na educação, no apostolado social, na espiritualidade. Ao mesmo tempo, raras pessoas foram tão fiéis. A Deus, à Igreja, ao carisma da ordem à qual pertencia e à qual serviu incansavelmente até que um derrame, em uma viagem de volta da Ásia em 1981, retirou-lhe a fala e os movimentos. Teve que renunciar ao cargo de geral e ver suas forças cada vez mais diminuídas até sua morte em 1991. Um longo calvário de 10 anos que selou uma vida inteiramente dedicada a Deus e ao outro.

Como todos os profetas, nem sempre foi compreendido, inclusive pela própria Igreja que tanto amava. Como todos os santos, ninguém o excedeu em humildade e amor, nunca destruindo, sempre construindo e agregando, disposto a abri mão de sua própria pessoa para que a missão não fosse prejudicada.

Por todo lugar onde passou, deixou marca indelevel: de abertura, de simplicidade, afabilidade, visão larga e audácia missionária. Apaixonado por Deus e pelo projeto do Reino, viveu até o fim aquilo que um dia escreveu e que ainda hoje cativa a tantos e tantas: "Apaixone-se! Tudo será diferente!"

Quando saí daquela enfermaria, sabia que havia encontrado um homem apaixonado. Apaixonado pelo Deus que o seduziu e o conduziu à vocação religiosa. Apaixonado pelo povo de Deus a quem serviu ativa e passivamente, nas andanças apostólicas e na longa crucifixão que o imobilizou na cama por tantos anos. Na vida de Don Pedro, a ação não deixava de acontecer, embora sob forma de paixão.

A celebração de seu centenário é profundamente inspiradora para todos nós, que vivemos em meio a um mundo secularizado e plural, desejando nele fazer acontecer o projeto do Reino. A figura de Pedro Arrupe é como um farol luminoso que nos encoraja a não ter medo de nada e ousar sempre o novo . O pior que pode acontecer é equivocar-nos. Mas seria muito pior não tentar nem ousar nada por medo que isso aconteça.

- Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape).
https://www.alainet.org/pt/articulo/124341?language=es
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