Estrela-guia
31/10/2007
- Opinión
Ela é uma pessoa doce, afável, cativante e, como canta o hino não oficial de Minas, quem a conhece não esquece jamais. Portadora de boas novas, capta sempre o lado positivo de pessoas e situações. Plena de compaixão e prenhe de misericórdia, ela esbanja tolerância e nada que é humano a escandaliza.
Se algum dia o travo de amargura lhe feriu a alma, jamais saberemos. “Alegria se reparte; dor não”, costuma repetir.
O marido, Antônio Carlos Vieira Christo, já transvivenciado, e com quem viveu mais de 60 anos, dela dizia ser a candidata ideal a ministra das Relações Exteriores, devido a seu talento de identificar semelhanças onde impera o antagonismo; proximidade onde reina a distância; alvíssaras onde campeia a discórdia.
Nascida em Belo Horizonte em 1917, filha de eminente farmacêutico e prendada quituteira, é a primogênita de dez irmãos, dos quais a metade ainda vive. Alfabetizada no Grupo Escolar Barão do Rio Branco - pelo qual, mais tarde, passaram seus oito filhos -, teve uma infância feliz na mesma rua em que nasceram os primeiros deles e onde, por coincidência, reside hoje: Tomé de Souza.
Sua adolescência foi agraciada por bailes que nela incutiram o gosto portenho pelo tango, sem lhe afetar o entusiasmo carnavalesco. Professora à conclusão de seus estudos no Colégio Sacré Coeur de Marie, tornou-se militante da Ação Católica e, por graça divina, cristã progressista avant la lettre, despida de moralismos e cheiro de incenso.
Ainda jovem, familiarizou-se com as obras de Bernanos, Claudel, Maritain, Leonel Franca e Alceu Amoroso Lima. Deste, privou a amizade. No Rio, onde residiu até que o marido assinasse o Manifesto dos Mineiros e Vargas o obrigasse a retornar a Minas, ela, grávida deste cronista, rogou a Deus, ao ouvir conferência de frei Pedro Secondi, que lhe desse um filho dominicano...
Entregue aos cuidados da educação dos filhos, impedida de trabalhar fora, dedicou-se à culinária, sem jamais afastar-se da militância na Ação Católica, da qual participa ainda hoje. Jamais perde missa aos domingos, ainda que televisada; gosta de rezar o terço, mas não a convidem para retiros espirituais; detesta o silêncio dos claustros. Se o marido tinha em quê de Teatro Municipal, ela é a própria escola de samba...
Aos 60 anos, saiu pelo interior de Minas, visitou ranchos e fazendas, recolheu velhos e engordurados cadernos de receitas e, juntando a fome com a vontade de comer, iniciou, com o clássico Fogão de Lenha – 300 anos de cozinha mineira, uma exitosa carreira literária, hoje ampliada para oito obras destinadas ao deleite de nosso sabor e saber.
Ganhou fama, deu aulas de culinária para varredoras de rua e executivos, viajou Brasil afora e a vários países para participar de festivais gastronômicos. Cozinhou para chefes de Estado, como Fidel e Raúl Castro, e celebridades, como Sobral Pinto, Chico Buarque, Raduan Nassar, Leonardo Boff, dom Paulo Evaristo Arns, Roberto Drummond, Lula e João Pedro Stédile. Transportou, das Alterosas a Moscou, os ingredientes de uma feijoada completa, na qual mergulharam de boca, em plena perestroika, diplomatas brasileiros e autoridades soviéticas.
Curiosa, nunca deixa saber de si, mas se interessa por cada detalhe do que ocorre à sua volta. Avó de 16 netos e bisavó de 8, dialoga de igual para igual com cada um deles, conseguindo a incrível façanha de jamais ter sido quebrada uma só das peças de cristal e porcelana que lhe enfeitam a sala de visitas.
Leitora voraz, prefere livros de ficção, romances históricos e boa teologia. E não dispensa dois jornais diários. Seu organismo ignora o colesterol, o que lhe permite trafegar, sem ameaça à silhueta e à saúde, do feijão tropeiro à mais sortida compota de doces. Quatro vezes por semana dedica-se, pela manhã, à natação e exercícios com bicicleta.
Seu nome é Maria Stella Libanio Christo, minha estrela-guia. Não tenho complexo de Édipo, sou o próprio. Hoje, ela completa 90 anos.
Feliz idade, mamãe!
- Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Maria Stella Libanio Christo, de “Saborosa viagem pelo Brasil” (Mercuryo Jovem), entre outros livros.
Se algum dia o travo de amargura lhe feriu a alma, jamais saberemos. “Alegria se reparte; dor não”, costuma repetir.
O marido, Antônio Carlos Vieira Christo, já transvivenciado, e com quem viveu mais de 60 anos, dela dizia ser a candidata ideal a ministra das Relações Exteriores, devido a seu talento de identificar semelhanças onde impera o antagonismo; proximidade onde reina a distância; alvíssaras onde campeia a discórdia.
Nascida em Belo Horizonte em 1917, filha de eminente farmacêutico e prendada quituteira, é a primogênita de dez irmãos, dos quais a metade ainda vive. Alfabetizada no Grupo Escolar Barão do Rio Branco - pelo qual, mais tarde, passaram seus oito filhos -, teve uma infância feliz na mesma rua em que nasceram os primeiros deles e onde, por coincidência, reside hoje: Tomé de Souza.
Sua adolescência foi agraciada por bailes que nela incutiram o gosto portenho pelo tango, sem lhe afetar o entusiasmo carnavalesco. Professora à conclusão de seus estudos no Colégio Sacré Coeur de Marie, tornou-se militante da Ação Católica e, por graça divina, cristã progressista avant la lettre, despida de moralismos e cheiro de incenso.
Ainda jovem, familiarizou-se com as obras de Bernanos, Claudel, Maritain, Leonel Franca e Alceu Amoroso Lima. Deste, privou a amizade. No Rio, onde residiu até que o marido assinasse o Manifesto dos Mineiros e Vargas o obrigasse a retornar a Minas, ela, grávida deste cronista, rogou a Deus, ao ouvir conferência de frei Pedro Secondi, que lhe desse um filho dominicano...
Entregue aos cuidados da educação dos filhos, impedida de trabalhar fora, dedicou-se à culinária, sem jamais afastar-se da militância na Ação Católica, da qual participa ainda hoje. Jamais perde missa aos domingos, ainda que televisada; gosta de rezar o terço, mas não a convidem para retiros espirituais; detesta o silêncio dos claustros. Se o marido tinha em quê de Teatro Municipal, ela é a própria escola de samba...
Aos 60 anos, saiu pelo interior de Minas, visitou ranchos e fazendas, recolheu velhos e engordurados cadernos de receitas e, juntando a fome com a vontade de comer, iniciou, com o clássico Fogão de Lenha – 300 anos de cozinha mineira, uma exitosa carreira literária, hoje ampliada para oito obras destinadas ao deleite de nosso sabor e saber.
Ganhou fama, deu aulas de culinária para varredoras de rua e executivos, viajou Brasil afora e a vários países para participar de festivais gastronômicos. Cozinhou para chefes de Estado, como Fidel e Raúl Castro, e celebridades, como Sobral Pinto, Chico Buarque, Raduan Nassar, Leonardo Boff, dom Paulo Evaristo Arns, Roberto Drummond, Lula e João Pedro Stédile. Transportou, das Alterosas a Moscou, os ingredientes de uma feijoada completa, na qual mergulharam de boca, em plena perestroika, diplomatas brasileiros e autoridades soviéticas.
Curiosa, nunca deixa saber de si, mas se interessa por cada detalhe do que ocorre à sua volta. Avó de 16 netos e bisavó de 8, dialoga de igual para igual com cada um deles, conseguindo a incrível façanha de jamais ter sido quebrada uma só das peças de cristal e porcelana que lhe enfeitam a sala de visitas.
Leitora voraz, prefere livros de ficção, romances históricos e boa teologia. E não dispensa dois jornais diários. Seu organismo ignora o colesterol, o que lhe permite trafegar, sem ameaça à silhueta e à saúde, do feijão tropeiro à mais sortida compota de doces. Quatro vezes por semana dedica-se, pela manhã, à natação e exercícios com bicicleta.
Seu nome é Maria Stella Libanio Christo, minha estrela-guia. Não tenho complexo de Édipo, sou o próprio. Hoje, ela completa 90 anos.
Feliz idade, mamãe!
- Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Maria Stella Libanio Christo, de “Saborosa viagem pelo Brasil” (Mercuryo Jovem), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/124003?language=en
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