A implacável ditadura da beleza

20/11/2006
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Ana Carolina se foi, leve e etérea com seus 1,74m, 40 quilos e 21 anos de idade. Seu rosto lindo de olhos cor de mel, dirigidos para a lente do fotógrafo, parecem distantes e impessoais. Ela habita um país distante, feito de tecidos, perfumes e salto alto. Ali não existem as coisas concretas da vida. Não se come, não se bebe, vive-se de ar, de brisa, de nada.

Neste país dos figurinos, das passarelas, dos cliques dos fotógrafos, das páginas de jornais e revistas, no entanto, também se morre. Morre-se de fraqueza, de vazio interno e externo, de diafanidade artificial e produzida pela ausência do sustento da vida: comida, bebida, saúde e vitalidade. Morre-se da tortura do ideal inalcançável da esquálida magreza, filha da cobrança implacável do mercado, que decreta que o padrão de beleza é ser magra. Morre-se torturado nos porões da mais implacável das ditaduras: a da beleza fabricada às custas da saúde da humanidade.

Ana Carolina morreu de infecção causada pela anorexia. A doença já a vitimava há muito tempo, mas a modelo fazia ininterruptas viagens com medo de perder o trabalho com o qual ajudava a família e se sustentava. Contraía dívidas que lhe comiam boa parte do salário. E em distantes países aonde a tirana beleza da qual era porta-voz a levava precisava subtrair açúcar e franjas de mantimentos da lanchonete, a fim de poder manter um mínimo de forças que lhe permitissem enfrentar as jornadas do dia seguinte.

Era quase uma menina. Mas sobre ela pesava uma carga enorme de expectativas profissionais, familiares, estéticas. Tinha de ser e manter-se magra, e para isso era preciso comer pouco ou nada. Tinha de submeter-se a ritmos estafantes de desfiles, fotografias, sentindo o corpo vergar-se de fraqueza, mal nutrido e alimentado. Tinha de viver de empréstimos, apostando na ilusão de que um dia a fama e o salário alto viriam. Tinha de ajudar a família com seu trabalho.

Ana Carolina manteve seu peso abaixo do necessário. E de quebra levou osteoporose, infecção urinária e falência renal. E a despedida prematura da vida que por ela esperava de braços abertos. Atrás de si, as lágrimas inconsoláveis da mãe que a amava, do namorado, da família e amigos. Morreu vítima da crueldade de uma sociedade que vive de criar paradigmas e ícones anti-humanos. Uma sociedade que incita as mulheres a negarem sua natureza e sua corporeidade curvilínea, feita para gestar, nutrir e alimentar. Uma sociedade que transforma belas e jovens mulheres em meros objetos de consumo a serem triturados pelos dentes vorazes da mídia e do mercado.

No auge da fraqueza, internada no hospital, Ana Carolina teve um lampejo de desejo refugiado talvez na infância. Libertou-se por um instante da ditadura a que estava submetida e pediu uma coxinha e um sorvete de limão. A satisfação de seu paladar combalido pelo jejum constante não foi suficiente, no entanto, para levantá-la do leito onde a prostrara a anorexia. Como tantas outras modelos tiranizadas pelo padrão vigente de beleza Ana Carolina se foi.

Sua suave beleza, imortalizada pelo milagre da fotografia permanece. E é um testemunho e uma denúncia dura e permanente de quanto as mulheres ainda são vítimas de todo tipo de violência na sociedade em que vivemos. Descansa em paz, menina bonita. No céu há muita coxinha e sorvete de limão para saciar a fome a que submeteram teu jovem corpo. E ainda amor gratuito e infinito para te saciar por toda a eternidade.

- Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
https://www.alainet.org/pt/articulo/118295?language=es
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