Políticos, profissão e vocação

03/11/2006
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Max Weber no texto “A política como profissão/vocação” refere-se aos políticos que fazem do mandato popular mera profissão – e lucrativa – como que instalados atrás de um balcão onde se negocia, além de bens materiais, vantagens simbólicas (cargos, influência, facilidades, prestígio, em suma, poder).

Abraçam a política por vocação aqueles que se sentem motivados por ideais e valores, devotados às aspirações de seus eleitores, comprometidos com projetos históricos. Desses, não raro alguns se deixam picar pela mosca azul e sacrificam o idealismo em nome do pragmatismo.

Os fracassos da esquerda no século XX amesquinharam-lhe a política. Projetos de nação minguaram para projetos de eleição. A esquerda perdeu boas oportunidades de criar um novo modelo político. Na Rússia revolucionária, aceitou por herança a estrutura autocrática do regime czarista. O Partido sucedeu a família imperial, com a diferença, meritória, de erradicar a miséria e cumprir a profecia de Tocqueville, proferida em 1833, de que a Rússia, em breve, dividiria com os EUA o título de potência mundial.

Nas democracias formais a esquerda tem sido cooptada pelas forças adversárias. O cheiro do poder inebria-a. Difícil preservar um de seus maiores valores: a ética. Quando oposição, seus militantes não temem a repressão e muitos sofrem prisões, torturas e mutilações. Outros padecem o exílio ou a morte. Revestidos do mandato popular, os sobreviventes raramente conseguem evitar serem tragados pelo Leviatã a que se refere Hobbes.

O vigor revolucionário arrefece-se diante do imperativo de acordos e alianças, acertos e conchavos, como o balseiro que, em mar revolto, se deixa levar por ventos adversos. Aos poucos, o militante distancia-se de sua margem de origem e aproxima-se da oposta. Ele, que tanto sonhou com o poder popular, agora trata de ampliar e arar o próprio espaço de poder. O povo, o pobre, o oprimido lhe soam quais incômodas abstrações. Sente mesmo certo mal-estar quando alguém ousa refletir-lhe o rosto no espelho do passado. Como Fausto, vendeu a alma ao demônio. Apegado ao poder, suas ambições pessoais passam a ter mais relevância que o serviço a quem o revestiu de mandato. A vocação transmuta-se em profissão. O partido, em mera máquina eleitoreira. Fetichiza-se a política e corrompe-se a subjetividade do político.

Fetichismo deriva de feitiço, ídolo feito por mãos humanas. É sinônimo de idolatria. Em política fetichismo é a absolutização da vontade do político. Seu querer tem mais importância que o do povo. Opera-se uma inversão, como no “mistério fetichista do capital” (Marx), que oculta e distorce o real, invertendo-o.

Na política a inversão ocorre quando a vontade do governante e/ou do seu partido se torna paradigma, e não a dos governados. O poder fetichista, auto-referente, só se afirma se primeiro destruir o poder originário e normativo de toda política - o poder da comunidade, o que “emana do povo e em seu nome será exercido”. No caso, deveria ser exercido...

Nem todos os revolucionários e idealistas que provam do cálice do poder deixam-se embriagar. Há quem ouse reinventar a política: Spartacus, Joana D’Arc, George Washington, Hidalgo, Bolívar, Che, Fidel, Allende. Em defesa de seus princípios e ideais, não temeram o risco de morte. Jamais fizeram do poder um fim em si mesmo e, muito menos, meio de ampliação do patrimônio pessoal. Foram todos fiéis à aspiração de quem os apoiava.

Os políticos são todos funcionários públicos. Funcionário significa o que ocupa e cumpre uma função. É uma peça da engrenagem que, em princípio, deveria girar a favor do povo. E governo vem do verbo grego gobernao – pilotar a nau ou o barco. Governantes são pilotos eleitos pelos passageiros, que deveriam lhes indicar a rota e o destino.

O fetichismo do poder alcança seu paroxismo nos impérios. O azteca, o romano, o nazista e o estadunidense adotaram a águia como símbolo. Mais poderosa entre as aves, ela cai como um raio sobre a sua vítima e a aprisiona com suas garras mortíferas. No capitalismo fascista, que sucede ao liberal e ao neoliberal, a relação política do Estado com a nação cede lugar à relação policial: vigilância, desconfiança, suspeita, coação, censura, dominação, sujeição e destruição. É o que ocorre hoje nos EUA.

Todos esses desvios só podem ser corrigidos mediante uma profunda reforma política. E anterior a ela um debate se impõe: que concepção de democracia deve servir-lhe de paradigma? Como criar uma institucionalidade política capaz de impedir que se faça do mandato uma profissão em proveito próprio? Como a imunizar do fetichismo e da tendência ao fascismo?

O desafio consiste em evitar que o Estado de Direito coincida com o Estado da direita.

- Frei Betto é escritor, autor de “Gosto de Uva” (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/117981?language=es
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