Sobre discursos, perdão e tolerância

25/09/2006
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Agora já passou o calor maior da polêmica e talvez não fosse mais o momento de se comentar o penoso incidente que envolveu o Papa Bento XVI e a Igreja da qual é Pastor. Uma citação feita pelo Papa em discurso na Universidade de Ratisbona feriu profundamente a sensibilidade do mundo muçulmano e abriu passo a um clima de mal-estar e desentendimentos entre a Igreja Católica e o Islã. A questão é delicada e o problema suscitado, mais ainda. Em um momento em que os grandes valores éticos mundiais encontram-se ameaçados por uma crise de grandes proporções, as religiões têm sido conclamadas a dialogar e unir forças para lutar juntas pelo resgate da paz, da justiça, de tudo aquilo enfim que constitui a base ética universal. É triste que justamente dentro deste contexto aconteça algo como o incidente que marcou presença na mídia mundial com força inusitada. A sensibilidade religiosa do Islã é de todos conhecida. Recentes controvérsias, como a da caricatura apresentada em periódico sobre o profeta Maomé e a ameaça que pesou sobre o poeta Salman Rushdie, que usou trechos do Alcorão em seu livro "Versos satânicos", estão bem presentes em nossa memória. Era de se esperar por parte da Igreja Católica, assim como de qualquer outra igreja ou agremiação religiosa, um cuidado especial ao usar exemplos e citar fatos referentes ao Islã e, sobretudo, à figura do profeta Maomé, que é constitutivo do credo e da profissão de fé muçulmana. Por outro lado, o que se assistiu na mídia foi uma demonstração de que o diálogo inter-religioso, tão desejado por todos, ainda se encontra bastante incipiente e frágil. O Islã declarou sua ofensa pelo que havia sido dito pelo Papa. Bento XVI apressou-se em dizer publicamente que lamentava profundamente o ocorrido e respeitava muito os muçulmanos. Na resposta, a subida de tom: isso não satisfazia. Exigiam-se desculpas mais formais. À atitude intolerante da qual se acusava o Papa, respondia-se com uma atitude no mínimo igualmente intolerante. E como intolerância gera intolerância e violência gera violência, inquietantes sinais começaram a aparecer: manifestações ofensivas em praça pública, ameaças pelos diferentes canais da mídia, o Vaticano cercado de seguranças e soldados portando metralhadoras etc. O que começara como consideração de uso inadequado de expressões que ganhavam tom de ofensa já se transformava em ameaça efetiva de violência pairando sobre Roma e, através dela, sobre toda a Europa. Parece evidente que o Papa em nenhum momento quis ofender o Islã. Fica patente porém que é preciso ser extremamente cuidadoso ao referir-se à experiência religiosa dos outros. Todo cuidado é pouco ao pisar na terra santa do coração alheio. Necessário se faz reconhecer também que por parte do Papa houve o movimento de lamentar o ocorrido. Não se pode dizer que tenha ocorrido endurecimento e rigidez em admitir o reconhecimento da ofensa involuntariamente provocada. Seria, portanto, lamentável se o outro lado endurecesse e se recusasse a deter o movimento de intolerância e se fechasse ao diálogo. O Papa João Paulo II, na entrada do milênio, já pediu perdão ao mundo por todas as vezes em que a Igreja usou de violência, mesmo na defesa da verdade. Este pedido é assumido por seu sucessor, que lamenta o ocorrido e não deseja que prejudique o diálogo com o mundo muçulmano. Essa atitude humilde e respeitosa que a Igreja deseja ter para com as outras religiões ainda tem muito a crescer. É de se esperar que o lamentável incidente de Ratisbona seja ocasião de aprendizagem e crescimento nesse desejo e propósito. - Maria Clara Lucchetti Bingemer, , professora do departamento de teologia da PUC-Rio e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de "Violência e Religião" (Editora PUC-Rio/Edições LoyolA), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
https://www.alainet.org/pt/articulo/117241?language=es
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