Ainda sobre milagres
03/09/2006
- Opinión
Desde a tarde de 27 de agosto, a Igreja do Brasil reza e chora. Está de luto pela morte daquele que foi talvez a maior figura do episcopado brasileiro dos últimos cem anos. Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida morreu às 18 hs, após uma longa e dolorosa luta contra um câncer de fígado, aos 75 anos de idade.
No artigo anterior, escrito quando ainda se encontrava entre nós, falamos com tênue esperança do milagre que todos pedíamos com fé e confiança a Deus: Dom Luciano conosco por mais um tempo. Pode-se dizer que não fomos atendidos?
Como padre, Luciano Mendes de Almeida foi um jesuíta forjado na têmpera da escola de Santo Inácio. Doutorado em filosofia, mostrou-se brilhantemente inteligente ainda que procurasse esconder seus dotes intelectuais. Foi professor e formador dos jovens jesuítas por longos anos.
Já como bispo, durante 12 anos auxiliou o cardeal-arcebispo dom Paulo Evaristo Arns em São Paulo. Nesse tempo, dedicou-se a levantar e potenciar a Pastoral do Menor, hoje uma das obras mais importantes da Igreja, graças à qual a mortalidade infantil no Brasil decresceu consideravelmente nos últimos anos. Organizou na zona leste da capital paulista uma centena de abrigos para menores abandonados. Organizou na zona leste da capital paulista uma centena de abrigos para menores abandonados. Acostumado a dormir no máximo quatro horas por noite, era visto seguidamente nas ruas, de madrugada, recolhendo as crianças jogadas nas calçadas.
Mas era também um hábil diplomata. Com a fala mansa, o eterno sorriso nos lábios e a facilidade para as relações inter-pessoais conseguia façanhas que outros, menos pacientes, não alcançavam. Foi assim que na Conferência do Episcopado latino-americano em Santo Domingo, em 1992, conseguiu que saísse o documento de conclusões que todos já desesperavam de ver ao final de tantos e tantos dias de trabalho, discussões e impasses. Varando noites sem dormir, comendo pouco e conversando com uns e outros de todas as tendências, articulou o documento que proclamou como prioridade da Igreja do continente o protagonismo dos leigos e reafirmou a opção pelos pobres.
Em várias ocasiões tive o privilégio de vê-lo, ouvi-lo, trabalhar com ele. Impressionava-me sua obsessiva caridade, que o fazia dar atenção a cada pessoa como se fosse a única no mundo. Ao sair de casa, era abordado por um sem número de pessoas que lhe pediam óculos para o filho, matrícula para o outro, remédio para a mãe doente. A todos e a todas atendia com a mesma solicitude e a mesma devoção.
Hoje, diante do fato doloroso de sua morte, percebemos todos que o milagre nos foi concedido. O milagre é a vida de Dom Luciano. Uma vida em constante pró-existência, vivida para fora de si e em busca obsessiva do outro a quem servir. Uma vida toda ela configurada pelo amor que se apressa e se traduz em serviço humilde, constante e fiel a todos, sobretudo àqueles que estão mais despossuídos de toda dignidade e de toda esperança.
A morte de Dom Luciano provoca um sentimento de orfandade em toda a Igreja do Brasil. Ao mesmo tempo, é um testemunho luminoso de até onde pode ir a grandeza do ser humano criado por Deus à sua imagem e semelhança quando se abre inteiramente à graça. Que essa testemunha fiel possa inspirar-nos e converter-nos sempre mais a entregar nossa vida ao que realmente vale a pena: o anúncio da Boa nova e a construção de um mundo mais justo e mais humano.
- Maria Clara Bingemer , teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. E autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. (www.users.rdc.puc-rio.br/agape)
https://www.alainet.org/pt/articulo/116880?language=es
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