O silêncio de deus 60 anos depois

05/06/2006
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O papa alemão olhou, recordou, chorou e rezou. Diante do museu do horror, onde mais de um milhão de vidas foram ceifadas, conseguiu experimentar apenas perplexidade, terror e humilhação. Bento XVI, em visita à Polônia, não se esquivou de cruzar o portão da morte que levava ao principal campo de concentração do III Reich, palco das maiores atrocidades hitleristas. Não realizou sua peregrinação apenas como Papa, mas - em suas próprias palavras ­ como um “filho da Alemanha”. Levava sobre os ombros, ainda que revestidos com as vestes brancas do Pontificado, todo o sangue por cujo derramamento uma parte de seu povo foi responsável. Contemplando as câmaras de gás, os trens da morte, o cenário onde ainda paira o tom mortífero da “solução final” hitlerista, Bento XVI fez seu mais emocionante e emocionado discurso desde que foi eleito Papa, em abril de 2005. Discurso atravessado de perplexidade, estupefação e não entendimento. Discurso todo ele feito pergunta angustiada lançada à face de Deus: “Por que o silêncio de Deus diante daquele extermínio programado? Por que, Senhor, permaneceste em silêncio?” Muitos, à semelhança do Papa Bento XVI, fizeram semelhante pergunta após a Segunda Guerra Mundial, quando a Europa e todo o Ocidente gemiam humilhados diante dos escombros de uma raça e da própria humanidade. Hans Jonas, eminente cientista alemão, não deixou de fazê-la. Jurgen Moltmann, talvez o maior teólogo cristão vivo nos dias de hoje, também a fez. Elie Wiesel, escritor judeu que foi vítima do nazismo, escapando vivo por milagre de Auschwitz, repetiu a pergunta ao assistir à agonia interminável de um adolescente que não conseguia morrer na forca por não ter peso suficiente para que a corda partisse sua espinha e lhe trouxesse o alívio da morte. Em seu livro “Noite”, Elie Wiesel diz que, contemplando a agonia do menino, ouvia a voz de alguém que, atrás de si, sufocado por semelhante espetáculo, perguntava sussurrando: “Onde está Deus?” E ele diz ter ouvido em seu coração a resposta: “Está ali, pendurado na forca”. A chamada de atenção de Bento XVI para o silêncio de Deus diante da violência e do assassinato implacável traz, portanto, a impostação correta para a posição que o mesmo Deus toma diante da violência e do mal. Deus silencia porque se encontra junto às vítimas, não aos carrascos. Enquanto as vítimas são silenciadas pelo terror, pela tortura, pela morte, Deus não pode falar. Reduzido à impotência do amor compassivo e solidário, pode somente calar-se com elas. Enquanto os carrascos gritam e dão ordens, Deus se cala. Seu silêncio, porém, não é de tolerância, mas de amor compadecido e solidário. Amor que tudo pode, mas que não pode reagir à violência com violência igual ou maior. Amor que tudo pode, mas não pôde impedir o holocausto de seis milhões de judeus na Segunda Guerra. Amor que tudo pode, mas não pôde impedir que o próprio Filho morresse crucificado. E segue sem poder impedir que a Paixão de Jesus Cristo continue acontecendo hoje em Abu Graib, em Guantanamo, nos presídios de São Paulo, nas favelas cariocas. Reduzido à impotência e ao silêncio pelo amor que é sua identidade mesma, Deus se cala. E o ser humano não compreende e o interpela: Por quê? Ontem como hoje a aparente e silenciosa cumplicidade de Deus com a injustiça, a violência e a matança dos inocentes espanta a humanidade. Bento XVI, sem deixar de espantar-se igualmente, buscou um sentido para o silêncio divino e fez dele o conteúdo de seu discurso quando da visita ao campo de extermínio. Diante do silêncio de Deus que se fez sentir enquanto o holocausto era perpetrado, o Papa declarou ser quase impossível falar neste “lugar de horror”, especialmente como um papa alemão. Porém, mais importante do que essa comunhão com o silêncio divino, foi o sentido para ela encontrado por Bento XVI: tornar nosso silêncio súplica por perdão e reconciliação, em pedido para que Deus nunca mais deixe tal coisa acontecer novamente. Diante do lugar da morte, o Papa relembrou que o desejo de Deus para a humanidade é a vida. Mas apenas depois de ter assumido, em nome do povo alemão que é o seu, a responsabilidade pelo que ali aconteceu. O silêncio de Deus e o silêncio do Papa, 60 anos depois do holocausto, se somaram para fazer memória do passado e abrir caminho para um futuro feito de paz e reconciliação. - Maria Clara Bingemer é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
https://www.alainet.org/pt/articulo/115470?language=es
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