Judas Iscariotes: discípulo, amigo, traidor?
09/04/2006
- Opinión
Não é de hoje que os cristãos especulam sobre a figura de Judas Iscariotes, um dos doze apóstolos que acabou por entregar Jesus nas mãos daqueles que o mataram. Agora, a tradução e análise de um manuscrito com mais de 1700 anos levanta a hipótese de que Judas, ao contrário de um traidor, seria o discípulo preferido de Jesus. As revelações foram feitas ontem pela National Geographic Society, numa conferência de imprensa que deu a conhecer ao mundo, pela primeira vez, algumas páginas do famoso Evangelho de Judas. Redigido em língua copta, o manuscrito - ou códice - data dos séculos III ou IV e constitui a única cópia conhecida do Evangelho de Judas, cujo original terá sido escrito em grego por um grupo de gnósticos, antes do ano 180. A análise das 26 páginas do papiro sugere que Judas estaria, afinal, cumprindo os desejos de Jesus quando o entregou às autoridades. Não é difícil imaginar o rebuliço que esta descoberta suscita na imaginação de muitos. Estaria sendo derrubado definitivamente o mito sustentado durante tanto tempo de que Judas teria traído Jesus e por isso seria uma figura maldita? Mas as especulações do documento vão mais longe. Trazem uma interpretação gnóstica para explicar a relação entre Jesus e Judas. Este seria não um traidor, e sim o apóstolo privilegiado que teria a missão de entregar o Mestre a fim de libertá-lo do corpo que o revestia e liberar a divindade que o habitava. Nada mais distante daquilo que mais de vinte séculos de cristianismo experimentaram e proclamaram como o núcleo mais profundo da Boa nova do Evangelho. A Encarnação de Deus em Jesus de Nazaré em nenhum momento é um peso abrumador ou algo negativo do qual é preciso libertar-se. O mistério da Encarnação diz justamente que o amor de Deus pela humanidade é tanto que Ele não se contenta em amá-la desde a sua divindade, mas vem ao encontro de sua criatura e entra na sua condição finita e mortal, fazendo-se carne e nascendo de mulher como qualquer outro ser humano sem deixar de ser Deus. A maravilha do mistério de Jesus Cristo é justamente revelar que o único caminho autêntico e coerente para a comunhão com o verdadeiro Deus passa pela pobre carne humana, finita, mortal, limitada e sensível. E é assim que aquele que tinha a condição divina aprende a falar, a caminhar, sente frio, fome, come, bebe, vai a festas, chora pelo amigo morto, alegra-se por ver que aos pobres é anunciada a Boa Nova. E finalmente enfrenta o conflito que sua pessoa provoca, sendo fiel e obediente até a morte de cruz. As Escrituras cristãs são sóbrias porém claras ao mostrar um Jesus que caminha para Jerusalém sabendo o que o espera e assumindo a angústia e a dor de sua hora, confiante no amor do Pai que nunca o abandonara, mas que lhe permite ir até o fim em sua entrega amorosa e total. Em nenhum momento pretende escapar de sua condição humana naquela que entende ser a sua ³hora². Nem renega sua solidariedade total e absoluta ao ser humano. E porque assumiu em tudo a condição humana, a tudo redimiu. A Ressurreição será a palavra definitiva de Deus Pai sobre aquela vida e aquela morte, iluminando com luz definitiva a pessoa de Jesus e proclamando a retumbante novidade de que o amor é mais forte que a morte. Os discípulos que acompanham assustados o drama que não entendem têm diferentes tipos de atitudes. Muitos fogem, poucos ficam. Sobre Judas, as informações que se tem são muito poucas. Algumas correntes da exegese bíblica identificam seu nome Iscariotes como uma corruptela de sicário, que seria uma facção radical daqueles que se opunham à ocupação romana e acreditavam na retomada de Israel por caminhos inclusive violentos. Talvez Judas esperasse que Jesus fosse o Messias que finalmente derrubaria o poder que oprimia seu povo. Ao constatar que o Mestre optava por um messianismo de serviço humilde e uma entrega não violenta da vida se decepcionara e o entregara. O relato posterior que os evangelhos fazem de sua morte por enforcamento sugere que se arrependera de seu gesto. Judas foi escolhido por Jesus para segui-lo onde ele fosse, tal como os outros. No meio do caminho, a relação se rompeu, passando Judas de amigo a traidor. Jesus foi até o fim no destino que sentia como sendo o seu. E, certamente, sua última palavra sobre o amigo perdido foi de misericórdia, amor e perdão. Não há que invocar privilégios para Judas a fim de resgatá-lo do lugar de maldição que a tradição lhe designou. Basta para isso a fé na misericórdia de Deus que salva traidores e traídos, carrascos e vítimas, e que quer vida em abundância para todos. - Maria Clara Lucchetti Bingemer , teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. È autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
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