A (falta de) ética rouba a cena

02/04/2006
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Dias sombrios vive o Brasil. A língua negra da corrupção parece nunca mais se cansar de poluir o mar de almirante onde o país esperava navegar depois de décadas de espera e credulidade em uma proposta que tinha a ética como centro. A vitória acontecida em 2002 enlouqueceu de esperança um povo que acreditava enfim poder viver com parâmetros de dignidade, valores, moralidade, honradez. E, no entanto, há um ano este mesmo país, este pobre povo tem de assistir em crescente perplexidade o recuo da ética, da decência e da honestidade para o fundo mais fundo da obscuridade e da insignificância em um cenário onde a falta de ética e de princípios ocupa a linha de frente do espetáculo. Esforçando-se para não sucumbir ao próprio desencanto, o país se pergunta pela ética tão prometida e tão pisoteada. Em momentos assim, vale voltar à fonte das palavras e “pedir-lhes esmola” para tentar entender o que acontece. Mais: para tentar entender o que querem dizer pessoas e grupos quando dizem “ética”. Mais ainda: o que queremos dizer nós mesmos quando afirmamos que a política brasileira perdeu a ética. O que seria, então, a ética? Que segredos contém essa palavra tão usada e malbaratada nos últimos tempos no cenário nacional? Primeiramente, entende-se por ética os sistemas de valores e costumes instituídos nas vidas de grupos particulares. Mas também o termo é usado para se referir a um desses sistemas em particular: a moralidade ´, que envolve noções como retidão, injustiça, culpabilidade, vergonha, e assim por diante. Finalmente, ética ' pode, dentro desse sistema de moralidade, referir-se a princípios morais reais, tais como: respeitar a propriedade alheia, tratar com deferência toda forma de vida, comportar-se segundo os parâmetros que regem a vida da comunidade, estruturar a própria vida de acordo com valores nos quais se acredita. Em suma, ética é um conjunto de valores e princípios elaborados pelo próprio ser humano, aplicado por este mesmo ser humano para tornar sua vida mais humana. Se assim for, compreende-se a perplexidade do país inteiro ao ver, através da televisão e da grande imprensa, uma deputada eleita legitimamente pelo voto e integrante do Conselho de Ética dançar alegremente comemorando exatamente o contrário do que foi comissionada para defender. A deputada eleita dançou para comemorar a injusta absolvição de seu colega de partido. Guardiã da ética, celebrava o triunfo da impunidade. O país ainda não se recuperara das melancólicas imagens da chamada “dança da pizza” quando o desfecho do caso que culminou na queda do ministro Antonio Palocci foi-lhe desfechado, qual golpe de misericórdia após o fuzilamento. O ministro comparecia impávido a todas as sessões de seu processo, com sua aparência digna e o apoio explícito do Presidente. Em segundo plano, no entanto, a testemunha de suas irregularidades ­ um humilde caseiro - tinha seu segredo bancário violado e as manobras se sucediam para que mais uma vez a ética saísse humilhada e vencida. A deputada foi afastada do Conselho de Ética, o ministro deixou o ministério e nele foi substituído. Mas o sabor amargo permanece na boca e no estômago de todo um povo que apostou na esperança contra o medo e agora se sente miseravelmente defraudado, desapontado, desalentado. Impossível clima pior para um ano eleitoral. Difícil pensar situação mais inadequada a um final de governo que começou sob aclamação e respeito generalizados, trazendo bem alta a bandeira da moralidade e da ética. E, no entanto, é preciso seguir adiante. Os candidatos em campanha já começam a visibilizar suas propostas. Promessas, discursos e programas de governo se sucederão nos palanques e microfones. A palavra ética será novamente e inúmeras vezes usada em vão, insistentemente invocada para captar votos e benevolência dos incautos. É de se esperar, porém, que após toda essa via sacra de decepções e quedas, de malversações e mal entendidos, de mentiras e danças, de ascensões e quedas, o povo brasileiro esteja mais maduro, menos crédulo e, portanto, mais apto a ter um verdadeiro discernimento com vistas às eleições que se avizinham. O foco da esperança que deverá vencer o medo agora é que a ética possa ser resgatada, intacta, ilesa, do mar de lama onde foi jogada e arrastada, para novamente ocupar o lugar que lhe corresponde no debate político: o centro do jogo, a frente da cena. - Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. È autora de "Violência e Religião" (Editora PUC-Rio/Edições Loyola), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
https://www.alainet.org/pt/articulo/114763?language=es
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