Os desfazedores da opinião pública
16/02/2006
- Opinión
Vamos falar baixinho, para que não nos escutem. Os colunistas, os repórteres, os
mais bem pagos periodistas brasileiros moram bem longe do povo do Brasil. Ouviram
com os olhos e ouvidos abertos, raros leitores? O povo no Brasil reconhece na
grande imprensa um estranho, quando não um inimigo, que lhe sopra afirmações sem
nexo, sem valor, sem crédito. E aqui, talvez mais que em outra parte, e aqui,
neste caso de divórcio, bem se exibe a sociedade de classes que nos oprime. Aqui
estamos diante de mundos diferentes em um mesmo território. Aqui ...aos fatos,
aos fatos, já, para que não nos acusem de texto opinativo sem fundamento algum na
realidade.
Acompanhem por favor as últimas notícias da semana que, ninguém notou, já foi
embora. No jornal da TV Record, em 8.2: “Lei Seca no Planalto: ministro revela
que o presidente Lula está sem beber há 40 dias”. No outro dia, no jornal O
Estado de São Paulo: “Bar no Aerolula? ‘Ele não bebe há 40 dias’...” . No jornal
O Globo, no mesmo dia: “Lula está abstêmio há 40 dias, revela Furlan”, e mais
revelaram as repórteres, que teriam ido cobrir a viagem do Presidente ao
continente africano: “ARGEL e BRASÍLIA. Animado com a dieta à base de proteínas
que já lhe fez perder 12 quilos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abriu mão
de um de seus prazeres confessos, a cachacinha”.
Lindo, não? Antes que adentrem a intimidade presidencial, e revelem outros
prazeres, inconfessos, prazeres até maiores, mesmo para um viciado em álcool,
vejam que da viagem presidencial, dos acordos que firmou, do estreitamento da
política externa com países antes sequer visitados, vejam que o fato jornalístico
mais importante foi o fato de um alcoólatra, por acaso e injustiça na
presidência, estar angustiosa e ansiosamente sem álcool há terríveis e tenebrosos
40 dias. Vejam, isto que acabamos de escrever não é uma inferência, não é um
livre interpretar, como o fez Clóvis Rossi, na Folha de São Paulo em 8.2.2006:
“A ópera-bufa Brasil
SÃO PAULO - Uma vez iniciada a ação judicial que o PT quer propor contra Fernando
Henrique Cardoso por ter dito que "a ética do PT é roubar", as coisas
desenvolver-se-iam assim, conforme a Folha apurará: FHC convoca Luiz Inácio Lula
da Silva como testemunha de defesa. O juiz estranha. FHC explica: "Bom, não foi o
Lula quem disse, no horário nobre da TV, que o PT estava desmoralizado? Ninguém
fica desmoralizado por ter comportamento ético irreprochável, certo? Então, Lula
está dizendo o mesmo que eu disse, com mais conhecimento de causa porque é um dos
fundadores do PT e seu presidente de honra".
O juiz cede à lógica fernandohenriquista e chama Lula, que acusa o governo FHC de
ter sido também corrupto. FHC se defende: "Minha corrupção foi pontual, não foi
sistêmica como a sua".
O juiz estranha. Corrupção é corrupção, acha, mas toca o bonde, que afinal ele é
juiz, não candidato.
Lula, furioso, grita: "Mas eu não sabia, eu não sabia, eu juro que eu não sabia.
A culpa é do PT".
A citação acima é um pouquinho mais que o livre-inferir. Com mais propriedade,
dir-se-ia um livre-ferir. Observem que nesse passo, em nome da independência, que
depende da política da empresa, um colunista de um dos maiores jornais
brasileiros manda aos infernos um dos deveres sagrados da grande imprensa, o de
ser objetivo, o de se ater ao acontecido. E tamanha é a gana, que não se vexa em
danar a recomendação de citar os fatos sem falsificar o contexto. Compreensível,
dirão, aqui o colunista exerce a sua veia de ficcionista, com a devida licença de
Machado de Assis. Compreensível, mas nos importa mais destacar que em nome da
luta política, que neste ano assume o papel de uma luta eleitoral, a imprensa
brasileira vai do acessório, que obedece a um preconceito, ao livre-ferir, que
obedece a velhos conceitos. E nisto, reconheçamos, há um improviso que raia a
criação, porque repórteres e colunistas já têm a notícia pronta, antes até da
realidade. É coisa de gênio o que conseguem escrever com as idéias que têm antes
do conhecimento de qualquer fato. Vejam se há engano.
Alêm de bêbado, supersticioso, bruxo
Depois de resistir à tentação de beber até cair, no avião e do avião, o
presidente conseguiu chegar ao segundo destino na África. Para quê? Para receber
os títulos de algumas, com o devido perdão da palavra, reportagens, do sábado 11
de fevereiro. No Jornal do Brasil:
“Lula fecha o corpo contra a 'urucubaca’' no governo - Presidente participa
de ritual vodu em Benin, na África, e se diz ‘mais leve’
OUIDAH, BENIN - Com o Portal do Não Retorno ao fundo, no vilarejo praiano de
Ouidá, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganhou ontem uma ajuda contra a
''urucubaca'' que diz atrapalhar o seu governo. Esteve num ritual de vodu, fechou
o corpo e afirmou que ficou ‘mais leve'”.
Jornal O Globo, mesmo dia:
“Lula participa de ritual vudu no Benin
OUIDÁ, Benin. Os tambores da África bateram forte ontem pelo presidente Luiz
Inácio Lula da Silva. Se estava preocupado com a urucubaca lançada pelos
adversários no Brasil, como disse recentemente, ele pode ter saído do Benin,
berço do vudu, com o corpo fechado para enfrentar a ferrenha disputa eleitoral. O
presidente passou a tarde toda sendo reverenciado com orações e danças feitas por
feiticeiros vudus, líderes tribais e pelos descendentes de escravos brasileiros
que formam uma espécie de colônia em Ouidá, nos arredores de Cotonou, capital do
paupérrimo Benin”. Com a devida ressalva do vodu que se enfeitiçou num “vudu”,
deveríamos acrescentar esse título do colunista Josias de Souza, em seu blog de
11.2, “Lula ‘corpo fechado’ da Silva”, para maior glória da informação e notícia.
E, se a inteligência do leitor permite, esta pérola:
“Há coisa de um mês e meio, Lula queixara-se de que seu governo vinha sendo alvo
de “urucubaca”. Pois Sua Excelência tratou de aproveitar a visita à África para
“fechar o corpo.” De passagem pelo vilarejo de Ouidá, no litoral do Benin, o
presidente tomou parte de um ritual vodu”.
Permitam, não se trata aqui de um passeio masoquista por uma imprensa
provinciana, ela, sim, digna do maior banho de alfinetes, fetiches, magias e
vodus. Estamos falando, estamos nos referindo aos maiores jornais de um país que
honra o mundo por sua diversidade e cultura. Estamos nos referindo a
profissionais de imprensa com mais de 40 anos de exercício, e que ainda assim se
referem aos leitores como
“Os descerebrados da teoria da conspiração deveriam incluir nela o ministro Luiz
Fernando Furlan. Cada vez que vai ao exterior, produz uma frase que nem a
oposição imaginaria utilizar. Primeiro, foi o reconhecimento de que o país estava
‘desanimado’ (dezembro). Depois, que o Brasil perdera o momento internacional,
atropelado por China e Índia (janeiro). Agora, devolve ao noticiário a questão
etílica, ao dizer que Lula não bebe há 40 dias. Bom, e antes?, é a pergunta
inevitável seguinte. Que, por sua vez, remete ao episódio Larry Rother, como bem
lembrou Nelson de Sá em sua coluna de ontem. Parece inesgotável a capacidade do
governo de fabricar trapalhadas”. (Clóvis Rossi, Folha de São Paulo, 10.2)
Colunistas assim não levantam o cérebro da cadeira e desenvolvem suas colunas a
partir do que os repórteres montaram em reportagens, que estão prontas antes que
se escrevam. Em que situação, qual foi mesmo a resposta, em que contexto foi dito
que o Presidente não bebe há 40 dias? - Não importa. O que se disser, quer
apenas dizer: o presidente é um desqualificado, e isto quer dizer, é um
analfabeto, um alcoólatra, e agora, por cima, burro, estúpido, que viaja ao
continente africano com o objetivo de mergulhar numa sessão de bruxaria. Um
típico homem do povo, corrupto e corrompido. Quem não vê isso é um descerebrado,
isso, um doido que acredita em teoria de conspiração das classes dominantes, um
paranóico que julga a grande imprensa uma defensora dos interesses do velho
capital. Descerebrados e paranóicos que jamais compreenderão o jogo da barganha:
“se perdoas minhas dívidas, se me concedes crédito que jamais pagarei, então
terás a imprensa que sonhas”.
Desfazedores da opinião
Em mais de um sentido, alguns repórteres e colunistas se tornam desfazedores da
opinião. Em um sentido familiar, nordestino, desfazem de, zombam, diminuem,
depreciam a opinião pública. A verdade, acreditam, é aquilo que o jornal
noticiar. A verdade é a sua versão, repetida até o limite que sature, até um
limite que, aí sim, gere descerebrados. “O sucesso de um jantar é o que sair no
jornal”. Ou seja, o leitor é um perfeito idiota, uma tábula rasa, que receberá
passivo a imagem e as palavras que lhe forem impressas. A opinião pública é a
opinião da imprensa, acreditam.
Em outro sentido de desfazer, ela, a grande imprensa, crê que possui a força da
destruição, de reduzir a pó o que estava feito, construído, ou em processo de
construção. Existe até uma nova palavra para isso, “desconstruir”. Esta é a
opinião dos mais sábios, dos colunistas, dos editores aos publicitários, a crença
no poder destruidor, desfazedor da mídia. Um aventureiro, qualquer um, pode se
tornar um caçador de marajás, e governar depois com todos os marajás e jóias que
caçar, para estar a seu lado.
Em um e outro sentido, do mais radical ao mais ponderado, colunistas, editores,
repórteres, a partir do poder de fogo dos seus veículos acreditam que constroem,
que fazem opinião, que fazem cabeças. É até possível que em muitas situações
assim aconteça. Se estiverem como peixes no oceano, se os valores que pregam e
difundem, sim, os periodistas fazem opinião. Melhor dizendo, reforçam, estimulam
e fazem crescer como fermento a massa de crenças da população. Mas jamais
conseguirão impor a índios nas selvas, imersos nas selvas, por exemplo, o valor
da beleza das modelos das passarelas. Dirão, os homens e mulheres indígenas,
“aqui em nossa tribo essa mulher não conseguiria marido”. Magras, esquálidas,
pálidas, altas e com aquele andar, nos caminhos da selva, não.
Isto é o que nos passa, por vezes, a “desconstrução” da imagem de Lula no meio do
povo brasileiro. Uma profunda inadequação de valores, de querer passar
desqualificação para um homem que ainda retira o seu peso do que representa para
os “desqualificados”. Para os que gostam de beber, para os que freqüentam
terreiros de pais e mães-de-santo, para os trabalhadores que sonham um dia vestir
também um terno com a sua “galega”, com a sua nega ao lado. Em Canudos, nunca é
demais lembrar, frades capuchinhos, contra o Conselheiro, chegaram pregando
jejum, a forte e pesada abstinência de tudo, menos de comer bacalhau e farinha.
Os sertanejos caíram na gargalhada, e gritaram para os santos frades:
- Isto para nós é fartura!
https://www.alainet.org/pt/articulo/114362?language=es
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