Dívida, doença crônica das nações

13/01/2006
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
A dívida externa é um instrumento de dominação, imposto pelos países ricos aos pobres. Por um lado, institucionaliza a transferência de capital dos povos do Terceiro Mundo para os credores do Norte. Por outro, cria canais de pressão política, mantidos por instituições financeiras internacionais, que coagem governantes a se submeter ao esquema. A análise é de Damien Millet, presidente do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), da França. Em entrevista por correio eletrônico, ele informa que a dívida brasileira aumentou 42 vezes entre 1964 e 1985, passando de 2,5 bilhões de dólares para 104 bilhões de dólares. Esta dívida, diz Millet, foi contraída de modo ilegal, geralmente repassada, diretamente, para os cofres dos ditadores que governaram o país durante o período. Para alterar esse cenário, analisa, é preciso reverter a correlação de forças entre os beneficiários da dívida e os que são sujeitos a ela. Brasil de Fato - O Brasil é o país em desenvolvimento mais endividado. Sua dívida externa é superior a 230 bilhões de dólares. Como isso é possível? Damien Millet - A ditadura militar, que vigorou entre 1964 e 1984, teve grande impacto no endividamento do país. Aliada estratégica do bloco ocidental em plena Guerra Fria, ela recebeu amplos benefícios dos grandes credores e a dívida do Brasil passou de 2,5 bilhões de dólares em 1964 a 104 bilhões de dólares em 1985 - aumentou 42 vezes, em 20 anos. Sobretudo, a dívida serviu para reforçar a junta militar que estava no poder, para reprimir a oposição, para engordar certas contas bancárias no estrangeiro ou para financiar megaprojetos - barragens, termoelétricas, a Transamazônica etc. - inadequadas às necessidades da população, mas reclamados pela transnacionais instaladas no país. Em vez de rejeitar essa dívida odiosa, os governantes que chegaram ao poder depois de 1984 a assumiram. Mais do que isso: fi zeram novos empréstimos, desencadeando uma espiral infernal, que levou a dívida a crescer. Ela mais do que dobrou, em vinte anos. BF - Quais são os países mais endividados? Millet - Entre os países em desenvolvimento, cuja dívida externa ultrapassa os 100 bilhões de dólares, o Brasil está à frente da China, Rússia, Argentina, Turquia, México, Indonésia e Índia. Mas não devemos esquecer os ricos: Estados Unidos, países da União Européia e Japão têm, cada um, uma dívida pública superior a 7,5 trilhões de dólares. A dívida pública de todos os países ricos é da ordem de 25 trilhões de dólares, 14 vezes mais do que a soma da dívida externa pública dos 165 países em desenvolvimento. BF - Por que o impacto é mais negativo nos países pobres? Millet - A dívida dos países do Norte é sobretudo interna. Essas dívidas são, em geral, contraídas nas moedas locais. Assim, para pagá- la, podem recorrer a certos mecanismos (impostos, aumento das taxas de juro, emissão de títulos etc.). Os países do Sul, cujas dívidas são sobretudo externas, precisam exportar para captar as divisas necessárias aos pagamentos. Tornam-se dependentes de suas exportações, cujos parâmetros são fixados pelo Norte. A situação é mais difícil de administrar e a soberania desses países é abalada. BF - Qual é o total das dívidas do mundo? Millet - Somadas as dívidas dos Estados, das empresas e das famílias, passa de 60 trilhões de dólares. Só nos Estados Unidos, as dívidas passam os 36 trilhões de dólares. É claro que o montante das dívidas dos países em desenvolvimento, pesadas em relação às suas economias, é modesto em comparação com os fluxos financeiros internacionais. A anulação da dívida do Terceiro Mundo seria, então, um mecanismo usado pelos credores para preservar a dominação que exercem sobre os países do Sul. BF - Quais são os principais credores dos países do Sul? Millet - No que concerne à dívida externa pública, 42% dos credores são privados, principalmente investidores dos mercados financeiros. Seguem-se 31% de dívidas junto a instituições multilaterais, em especial o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, e 27% são bilaterais. BF - Diz-se que o pior não é a dívida, mas os juros. Qual a sua opinião? Millet - Os juros representam os lucros dos credores. Ainda que as taxas de juros tenham estado baixas nos anos 1960 e 1970, o que beneficiou os países do Sul, elas triplicaram em poucos meses no início dos anos 1980, impulsionadas por políticas dos Estados Unidos, gerando a crise da dívida. A armadilha se fechou. Quando um país pobre deseja um empréstimo, o credor lhe impõe uma taxa de risco, por conta de sua fragilidade e da possibilidade do não reembolso. Durante a crise brasileira de 1999, as taxas subiram mais de 40%, o que tornou o crédito praticamente inviável. Além disso, as políticas impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial, por solicitação dos países do Norte, implicam taxas de juros elevadas nos países do Sul para atrair os capitais estrangeiros. BF - Por que os governantes são contrários a uma auditoria da dívida? Millet - A exemplo do Brasil, numerosos países conheceram regimes ditatoriais e corruptos, que contraíram dívidas em seus próprios interesses, sem qualquer benefício para a população. A idéia da auditoria é central para demonstrar o caráter odioso dessas dívidas, assim como daquelas que foram contraídas posteriormente para pagá-las. Nessa perspectiva, não há argumento para não anular as dívidas. Um governo realmente preocupado com os interesses do povo tem como seguir essa linha. Isso está previsto na Constituição brasileira, mas, de modo injustificado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não se manifestou sobre a questão. BF - Qual o papel das dívidas na dinâmica do sistema financeiro? Millet - A dívida é um mecanismo de transferência de riqueza dos povos do Sul para os credores do Norte. Seu fluxo é garantido pelos potentados locais, que ganham comissão no processo. A diferença entre os novos empréstimos e o total de reembolso em um dado período, é negativa para os países em desenvolvimento: em média, menos 81 bilhões de dólares, nos últimos seis anos. Em 2003, foi de menos 8 bilhões para o Brasil, o que mostra a hemorragia de capitais que representa a dívida. Por meio da dívida, a finança mundial aspira as riquezas produzidas pelas populações, jogando-as em uma miséria que não para de crescer. BF - Que retorno recebem os países que pagam suas dívidas? Millet - Não há retorno. A ajuda pública dos países ricos ao desenvolvimento é um dinheiro que acaba indo, quase integralmente, para o pagamento da dívida. BF - A dívida internacional atinge a soberania dos países e os impede de controlar sua economia. Por que a pagam? Millet - Diferentemente do que se costuma dizer, a dívida não é uma questão das relações Norte-Sul. Há os que lucram com a dívida e os que se beneficiam dela. Os poderosos do Sul, prisioneiros do molde neoliberal, são cúmplices dos credores, a quem servem sem pestanejar, até mesmo porque têm os mesmos interesses. No geral, as elites do Sul colocam suas fortunas no exterior, e com elas compram títulos da dívida de seu próprio país. Por isso, os governantes do Terceiro Mundo pagam a dívida sem hesitar, e se preocupam mais em seduzir os mercados financeiros do que em garantir as necessidades fundamentais de seus países. BF - O que acontece se um país do Sul não pagar sua dívida? Millet - Do lado dos credores, um vento de pânico, pois vão perder um instrumento muito sutil de dominação, que lhes permite impor aos países do Sul decisões tomadas em Washington, Londres, Bruxelas, Paris ou Tóquio. Do lado das populações, um vento de esperança, pois a colonização econômica poderá, enfim, acabar. A mobilização dos povos poderá abolir a lógica neoliberal reinante. Um outro mundo estará ao alcance da mão - tudo terá que ser construído, mas tudo será, mais uma vez, possível. BF - Quais os mecanismos usados pelos credores para obrigar os países a pagar sua dívida? Millet - Muitas vezes, os governos do Sul são marionetes dos credores, que têm meios financeiros e midiáticos para favorecer a chegada ao poder dos que atendem seus interesses. A corrupção é a mesada que oferecem para recompensá-los. Se um desses governantes tenta sair dessa tutela, ou escolhe uma via alternativa, sofre intensas pressões diplomáticas e comerciais, como aconteceu com Néstor Kirchner, da Argentina. Se insiste, pode ser considerado um pária. Por isso, Cuba sofre um duro embargo há 40 anos. Thomas Sankara, presidente do Burkina Faso, foi assassinado em 1987. Verdadeiras resistências, como a de Hugo Chávez, na Venezuela, são poucas. Para chegar ao poder, os políticos do Sul, como Lula, tiveram que se comprometer com aquele sistema. BF - Qual o papel das instituições financeiras internacionais? Millet - As duas principais, o FMI e o Banco Mundial, se revezam para garantir os interesses dos países ricos e das grandes empresas. Obrigam as nações do Sul a aceitar reformas de ajuste estrutural de cunho neoliberal: redução de investimentos sociais, extinção de subsídios para produtos de consumo básico, desenvolvimento de exportações e redução da produção de subsistência, privatizações desenfreadas, liberalização da economia... Tudo para atrair capitais estrangeiros e reduzir as despesas do Estado para que possa pagar a dívida. Aquelas reformas geram pauperização e aumento das desiguldades em todas as regiões onde são feitas. Joseph Stiglitz, antigo economista do Banco Mundial e Prêmio Nobel de Economia, explica por que medidas tão nefastas foram impostas: "Se examinarmos o FMI como se seu objetivo fosse servir aos interesses da comunidade financeira, encontraremos sentido em suas ações. Sem isso, estas parecerão contraditórias e intelectualmente incoerentes". BF - Nesse contexto, parar de pagar a dívida parece não depender só da decisão de um governante. O que mais é necessário? Millet - É preciso reverter a correlação de forças entre os que se beneficiam da dívida e os que estão sujeitos a ela. As lutas sociais devem conscientizar os povos sobre as conseqüências nefastas da dívida, mas também pressionar os governos do Sul a rejeitar o pagamento da dívida. Uma auditoria da dívida pode ser um instrumento fantástico para colocar essa luta no campo do direito internacional. BF - Há casos em que a dívida realmente foi anulada? Millet - Nos anos 1930, o Brasil e outros 13 países latino-americanos suspenderam, por um tempo, os pagamentos. Quando o Brasil negociou a solução do litígio com o cartel dos credores estrangeiros, em 1943, obteve uma redução de algo como a metade do estoque da dívida. À época, para apoiar sua decisão unilateral, o governo brasileiro criou uma auditoria, que revelou a existência de várias irregularidades nos contratos. Antes disso, em Cuba, em 1898, ou Costa Rica, em 1923, a dívida fora qualificada de odiosa, e anulada. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) repudiou sua dívida em 1917. Mas, no período recente, a não ser algumas dívidas anuladas pela Rússia nos anos 1990 e a fi rmeza da Argentina em não se deixar pilhar, os credores tem se mantido em vantagem. Os movimentos precisam estimular mais mobilizações para fazer essa correlação de forças mudar. -------- Quem é Matemático de formação, Damien Millet é presidente do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM) da França. A entidade pressiona governos de países ricos para cancelar a dívida dos pobres, argumentando que ela aumenta a crise social no Terceiro Mundo. Millet integra a organização internacional Ação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos (Attac). É autor de Os tsunamis da dívida, de 2005, e 50 perguntas e 50 respostas sobre a dívida, o FMI e o Banco Mundial, de 2002, ambos em co-autoria com Eric Toussaint, presidente do CADTM da Bélgica. - Brasil de Fato Edição Nº 149 - De 4 a 10 de janeiro de 200 http://www.brasildefato.com.br
https://www.alainet.org/pt/articulo/114103?language=en
Subscrever America Latina en Movimiento - RSS